Vandré emociona-se, no Canal Livre da Band, com imagens de documentário alemão e homenagem a “Che”
Por Maria do Rosário Caetano
A entrevista do recluso Geraldo Vandré ao programa Canal Livre, na Band, dividiu os espectadores. O crítico e pesquisador Tárik de Souza e Vitor Nuzzi, um dos biógrafos do cantor (“Geraldo Vandré – Uma Canção Interrompida”, Editora Kuarup) gostaram das respostas do artista, lacônicas, mas reveladoras. Outros espectadores, porém, continuam irredutíveis. Para estes, o compositor paraibano Geraldo Vandré, nascido em João Pessoa, em 1935, continua causando mal-estar.
Com barbas brancas, boné escondendo os cabelos e intrigantes óculos escuros, o artista quase nonagenário (fará 88 anos em setembro próximo) representaria a mais perfeita antítese do que fôra na década de 1960. Ao invés de criador e intérprete de canções épicas, de explícito teor político-social, hoje seria amigo e aliado dos militares. A estes ex-admiradores, escapam as sutilezas do discurso do artista. Escapam, também, as contradições já apresentadas pelo compositor nos tempos de “Disparada” e “Prá Não Dizer que Não Falei das Flores”.
Os entrevistadores de Vandré – os jornalistas Thays Freitas, Fernando Mitre e Sérgio Gabriel, somados a José Carlos Anguita, diretor de Operação da Band e amigo do entrevistado – despejaram dezenas e dezenas de perguntas sobre o artista. Mitre, então, tinha tanto a perguntar, que mal aguardava as respostas. Nem levava em conta questões antecedentes. Sérgio Gabriel havia colocado pergunta sobre o exílio de Vandré, ocorrido no pós-AI-5. O paraibano contou que só saíra do Brasil no Carnaval de 1969, portanto, mais de dois meses depois do Ato Institucional (decretado em 13 de dezembro de 1968). Ao invés de pedir mais detalhes, Mitre engatou pergunta aleatória, retrocedendo a 1964. O assunto “exílio” saiu de pauta.
E a questão que parecia central ao programa – as relações de Vandré com os militares, desde que conhecera o Hospital da Aeronáutica, onde teria sido muito bem tratado – acabou, circunstancial e difusa, em perguntas apressadas. Vale, no entanto, destacar que, visualmente, o Canal Livre foi bem interessante. Em especial pelo uso de trechos de documentário dirigido por Gunther Hassert, que Vandré gravou para a WWF (TV Bávara), em Munique, na Alemanha, exibido em nove de outubro de 1970.
O programa alemão está disponível no Youtube e reúne seis canções interpretadas pelo brasileiro, acompanhado por músicos que parecem latinos (chilenos?). São elas: “Modinha” (Rosa, Hortência e Margarida), “Prá Dizer que Não Falei das Flores (Caminhando), “De América” (cantada em espanhol), “Che” (Guevara), “Terra Plana” e “Vem Vem” (Maria). No número instrumental, fecho do programa, Vandré aparece trajando vistoso poncho chileno, tocando violão com seus músicos e assobiando.
O programa Canal Livre utilizou, também, imagens de festivais brasileiros (nos quais Vandré esteve na linha de frente), de solenidades cívicas (título de Cidadão Paulistano), de concerto com a pianista Beatriz Malnic e Orquestra Sinfônica da Paraíba (estas bem-recentes) e muitas fotos. Usou, ainda, imagens dos Mutantes, com Rita Lee em primeiro plano cantando “Panis et Circenses” (“Mas as pessoas na sala de jantar/ Essas pessoas na sala de jantar! (…)/ São ocupadas em nascer e morrer”). Tais imagens antecedem a pergunta que ganhou destaque em reportagens sobre o Canal Livre. Ou seja, qual a opinião de Vandré sobre o Tropicalismo?
Ele respondeu com expressão que nunca negou: “Não gosto”. Para Vandré, o movimento musical (liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil) parece “alienígena”. Mas, surpreendentemente, dessa vez, o artista saiu do tom monossilábico (de quase todas) suas respostas adicionando curioso complemento, quando indagado se a ojeriza se devia ao uso tropicalista das guitarras elétricas.
Vandré: “Não pelas guitarras elétricas, não por causa do som, o Heraldo do Monte utilizava guitarra elétrica no Quarteto Novo, mas (sim) pela imagem projetada da guitarra elétrica como um instrumento fundamental (na música popular brasileira). Não era”.
Aqui vale lamentar que os quatro entrevistadores tenham abandonado a deixa, para aí sim, iniciar a necessária incursão pelo universo musical, aquele que cercou Geraldo Vandré com instrumentistas de ponta, como os do Trio Marayá (Hilton Acioly, Behring Leiros e Marconi Campos), do Quarteto Novo (além de Heraldo: Hermeto Paschoal, Theo de Barros e Airto Moreira) e do Quarteto Livre (Geraldinho Azevedo, Naná Vasconcelos, Nelson Ângelo e Franklin da Flauta).
Se Heraldo tocou guitarra elétrica no antológico disco produzido pelo próprio Vandré (“Quarteto Novo”, Odeon, 1967) somos obrigados a indagar: por que tal instrumento não foi eliminado pelo produtor e autor da maior parte das composições do disco e responsável por vocais que o tornam ainda mais belo e impressionante?
Por que os entrevistadores da Band não perguntaram se Vandré fora à passeata contra a guitarra, comandada por Elis Regina? Aquela que contou com participação do tropicalista Gilberto Gil. Se não foi, por qual razão?
Contradições (e erros factuais) de Vandré não foram questionados pelos entrevistadores. Ele disse que saiu do Brasil, porque “tinha contrato assinado com TV da Alemanha para produção de um programa”. Agindo assim, minimiza a participação dos militares no angustiante cerco por ele sofrido.
Se o paraibano saiu do Brasil no Carnaval de 1969, via Uruguai, até chegar ao Chile de Eduardo Frei (Allende só tomaria posse em novembro de 1970), por que ele foi gravar o programa germânico tanto tempo depois?
Façamos as contas: o Carnaval aconteceu em fevereiro (ou março) de 1969. O programa, gravado em Munique, foi ao ar em outubro de 1970, portanto, um ano e oito (ou nove) meses depois. E por que Vandré não viajou direto para a Alemanha? Por que se montou operação sigilosa para retirá-lo de seu país, depois de esconder-se na Ilha Comprida (no extremo litoral sul de São Paulo), em casas de amigos (que preferiu não nominar) e pela casa protetora de Dona Aracy Moebius de Carvalho, viúva de João Guimarães Rosa?
Vandré argumenta que o Alto Comando das Forças Armadas (com poderes infinitos depois da decretação do AI-5) não parecia empenhado em prendê-lo. Que tal intenção restringia-se aos “guardas da esquina”, interessados em mostrar serviço. “Se os militares quisessem me prender” – repetiu o argumento – “por que não o fizeram, se permaneci no Brasil de 13 de dezembro de 1968, quando faria show (abortado) no Iate Club de Brasília, e regressei a São Paulo no meu carro Galaxy, até o Carnaval de 1969?”
Ao mesmo tempo, Vandré admite na entrevista ao Canal Livre que era “cabeça de chapa” entre os artistas mais procurados no pós-AI-5. Admite, também, que o teatro (onde fazia temporada com show escorado no imenso sucesso de “Prá Não dizer que Não Falei das Flores”) foi vítima da ação de forças fieis à “Ditadura Escancarada” (Elio Gaspari). Quem prestar atenção nas entrelinhas da entrevista, perceberá outras nuances.
Há que se ficar atento – muita atento – à visualidade do programa. No começo do interrogatório jornalístico, Vandré parece tenso. E suas respostas não passam de três ou quatro palavras. O boné escurece seu rosto. Mais até que os perturbadores óculos escuros. Na segunda parte, já mais descontraído, ele vai tirar os óculos e sorrir. Inclusive quando revelar seu ator preferido, o estadunidense Marlon Brando (e eu que pensava ser Leonardo Villar, o “Matraga” de Roberto Santos, filme que ele musicou). O paraibano vai divertir-se com o sarro que Brando tirou de insistente repórter.
Segundo Vandré, em seu relato à Band, Brando disse ao jornalista que “o maior ator do mundo morrera no século passado”. Ele, Marlon Brando “era um comerciante, que comprara uma ilha no Pacífico”. Ao insistente inquiridor, o protagonista de “Sindicato dos Ladrões” diria: “afinal, que outra profissão, que não a de comerciante, me permitiria comprar uma ilha no Pacífico, para assentar minha bunda e usar como cenário dessa entrevista?”.
O Vandré, que tremia os lábios sempre que via suas imagens projetadas (para que ele também as assistisse, como os telespectadores), sorriria mais algumas (poucas) vezes. A tensão máxima parece ter sido aquela em que ele se viu, grandiloquente e desafiador, cantando os versos de “Che” no documentário da emissora germânica.
Mais uma vez, quem prestou bastante atenção na letra de “Che” (Guevara de la Serna), viu que havia em sua enunciação um adjetivo totalmente destoante. Incômodo até. E que o poema-canção não resultara triunfalista.
Antes de cantar, Vandré declama: “Ontem, segundo informe oficial do Governo René Barrientos, o guerrilheiro PROFISSIONAL argentino-cubano Ernesto Che Guevara” foi capturado e morto.
Entram, em seguida, os versos feitos canção: “Che, Che/ Perdoa a minha canção/ Se canta só minha boca/ Se tem forma de oração/ Se a minha voz fica rouca/ Qual arma sem munição/ Se ela é franca mas é pouca/ Enquanto fica a canção// Sobe monte desce rio/ Vida e barbas por fazer/ Sobe monte desce rio// E um dia de repente/ Foi morto num amanhecer// Na frente de todo mundo/ Prá todo mundo aprender/ Quem afrouxa na saída/ Ou se entrega na chegada/ Não perde nenhuma guerra/ Mas também não ganha nada// Sobe monte desce monte (…)/ Quem temia teu caminho/ Não podia te prender/ E mesmo por traição/ Pensando que te matava/ No meu corpo americano/ Fincou mais teu coração// Che”.
Quando Vandré canta “De América”, homenagem aos povos originários da futura América Latina, na qual cita “Quechuas, Tamoios, Mapuches, Tabajaras, Guaranis/ Incas, Astecas e Maias/ Aimaras e Tupis/ De América, de América”, ouvidos atentos perceberão que – na gravação da TV alemã – ele inclui os Tupamaros. O biógrafo Vitor Nuzzi faz questão de lembrar que “os Tupamaros não são evocados no disco, que Vandré gravou na França (“Das Terras do Benvirá”, selo Maison de Chants du Monde, 1971)”.
Os Tupamaros foram, há que se lembrar, o nome abreviado do Movimento de Libertação Nacional do Uruguai, atuante nas décadas de 1960 e 1970 e que teve em suas fileiras o futuro presidente uruguaio José Mujica. O termo derivaria, etimologicamente, de expressão pejorativa dada pelos colonizadores aos que se insurgiam contra a Coroa Espanhola. Há, porém, versão mais conhecida: trata-se de contração do nome do líder mestiço peruano (de feições indígenas) Tupac Amaru II (1738-1781).
Quem, enfim, se dispuser a assistir à entrevista dada ao Canal Livre, pela segunda vez – e sem preconceitos – encontrará, saídas da boca de Vandré, revelações surpreendentes.
“A Paixão Segundo Cristino” foi uma cantata dedicada a um Cristo nordestino?
“Não”, dirá o compositor, que criou essa peça musical a convite de frades dominicanos, “a cantata tem no estudante Edson Luiz (assassinado no Calabouço) seu personagem principal”.
E verá o artista evocar os espetáculos de verão da Rhodia Fashion Show, poderosa grife francesa, que o contratou para percorrer o país cantando e dividindo o palco com “Lilian Lemmertz, Walmor Chagas e Carlos Zara”.
E saibam que ele tem novos planos musicais. Planos que deseja realizar em sua Paraíba natal.
Geraldo Vandré no Canal Livre
Duração:60 minutos
Entrevista a Sérgio Gabriel, Fernando Mitre, Thays Freitas e José Carlos Anguita
Acesso: https://www.youtube.com/live/4gy8z5OMjVs?feature=share
Vandré na TV Alemã
WWF, Munique, Bavária)
Duração: 26′ 21”
Versão original em alemão, pois o programa conta com narrador-locutor que fornece dados sobre a realidade brasileira. Vandré canta em português (só “De América”, em espanhol). Dirigido por Gunther Hassert, o programa reúne seis canções e um tema instrumental.
Acesso: https://youtu.be/kuFsY5BvGe8
Concordo com a sua leitura da entrevista de Vandré ao Canal Livre da Band. Embora telegráfico e dissimulado, ele acabou dizendo algumas coisas, porque o clima foi respeitoso e ameno. Talvez com cuidados demais, o que impediu que se discutisse, por exemplo, as condições no retorno ao Brasil
Enfim, algo pode ser dito em meio a tantas defesas e tanta preocupação em não incomodar o entrevistado renitente.