“Casa Vazia”, longa protagonizado por peão obrigado a trocar seu cavalo por bicicleta, chega do Sul

Por Maria do Rosário Caetano

“Casa Vazia”, um western contemporâneo, que dialoga com o drama social, chega aos cinemas nessa quinta-feira, 3 de agosto, depois de passar pelos festivais do Rio e de Gramado.

O filme, dirigido pelo gaúcho Giovani Borba, é protagonizado por um peão de estância, o carismático Hugo Noguera, e contrói-se como híbrido de ficção e documentário. Ambientado em locações naturais (o pampa gaúcho em especial), “Casa Vazia” foi filmado nas amplas plantações e pastos da rio-grandense Santana do Livramento e na uruguaia Riveira. Portanto, em zona de fronteira entre o Brasil e o país platino.

A trama, contida e substantiva, mostra um peão desempregado, de nome Raúl, que se vira para arrumar algum dinheiro. Sua casa, isolada, insere-se em região habitada por gente empobrecida, já que tanto a atividade pastoril, quanto as plantações (de soja e eucalipto são as hegemônicas) passam por grandes mudanças. Máquinas potentes substituem a mão-de-obra humana. O avanço tecnológico enfeita a paisagem com enormes colheitadeiras, que sozinhas desempenham o trabalho de dezenas de camponeses. As desigualdades sociais se acentuam.

Raúl é casado e tem filhos. É, no entanto, pressionado por familiares da mulher a dar algum conforto aos seus. Ele acabará, nas noites escuras, agregando-se a um bando de ladrões de gado.

Ninguém espere um bangue-bangue nos moldes da Hollywood de outrora. Embora se ambiente em amplas paisagens, tenha peões como personagens e presença notável de armas – o filme vai colar-se nas angústias e atos rarefeitos de seu protagonista. E terá um final dos mais inesperados e surpreendentes.

A fotografia inventiva de Ivo Lopes de Araújo se destaca, em especial, nas sequências de roubo de gado, quando faróis, lanternas e outras parcas fontes de luz surgirão em noites pampeanas muito escuras. O trabalho do fotógrafo cearense será fundamental na composição desse filme sensorial e sintético.

Os diálogos são secos e se resumem ao necessário. A trilha sonora potencializa a vastidão da paisagem e o vazio que tomará conta do lacônico Raúl, quando ele regressar à sua casa e não mais encontrar esposa e filhos.

O peão de estância se locomoverá em sua bicicleta (modesta substituta do cavalo de outrora). Não poderia haver metáfora mais eloquente da condição existencial-financeira de Raúl. Quem tem poder no campo cavalga belos cavalos ou dirige caminhonetes de última geração. Com elas, os proprietários simbolizam o poder do agronegócio, orgulhoso de ser a grande fonte do progresso do país, desde que indústria perdeu seu lugar de honra.

Raúl, quando entrar num carro, o fará como caroneiro. O banco da frente do caminhãozinho permitirá, ao conduzi-lo de um lugar a outro, que troque diálogos rarefeitos com o motorista. Falam dos filhos, da idade que têm e ficam por aí. Outro veículo, também sem exuberância, o levará, com os parceiros, noite escura adentro, em busca de rezes, que roubadas, serão esquartejadas para facilitar o transporte.

Mesmo em ato que implica adrenalina, Raúl continuará distante e melancólico, com seu perfil baixo. Só o exuberante Roberto Oliveira, com sua figura robusta e voz melodiosa, se destacará na paisagem humana daqueles infratores. Curioso o nome técnico dado à transgressão dos ladrões de gado – abigeato. Seus praticantes furtam animais domesticados. E a lei os enquadra. Não o faria se os animais fossem selvagens, ou seja, não tivessem um proprietário que os marcou a ferro quente com suas iniciais.

Hugo Noguera contracena, além de Roberto Oliveira, com os experientes Araci Esteves e Nelson Diniz, este em papel dos mais difíceis, pois se integrará à vigilância armada (uma espécie de “milícia” pampeana), para defender a propriedade (e as rezes) do pecuarista. Liane Venturella, que preparou o elenco, completa o time principal. Todos em ótimos desempenhos.

Por ser um ex-estanceiro, Hugo Noguera, com sua pele castanha e seu gestual contido, impregna o filme com significativa força documental.

Houve um tempo em que diretores gaúchos (a geração Jorge Furtado) abandonaram os pampas para fugir do “cinema de bombacha”, tão bem tipificado nos filmes de Teixeirinha. Apostaram tudo na produção urbana. Hoje, mais matizado, o cinegautchê investe, também, em narrativas ambientadas nos vastos campos pampeanos. Mas o faz com pegada moderna, a anos-luz do folclore gaudério, com suas vestimentas típicas, canções e folganças.

Um detalhe a se notar: assinam a montagem de “Casa Vazia”, dois cineastas: a carioca Marina Meliande, de (entre outros) “Mormaço”, e o gaúcho Bruno Carboni, de “O Acidente”.

 

Casa Vazia
Brasil, 2021, 88 minutos
Direção: Giovani Borba
Elenco: Hugo Noguera, Araci Esteves, Nelson Diniz, Roberto Oliveira, Liane Venturella, Lucas Daniel Soares Rodrigues
Montagem: Bruno Carboni e Marina Meliande
Música: Renan Franzen
Produção: Giovani Borba em parceria com Tatiana Sager e Beto Rodrigues
Distribuição: Panda Filmes
Prêmios: melhor fotografia (Ivo Lopes Araújo, no Festival do Rio 2021), e cinco Kikitos na Mostra Gaúcha do Festival de Gramado: ator (Hugo Noguera), roteiro (Giovani Borba), trilha sonora (Renan Franzen), desenho de som (Tiago Bello e Marcos Lopes) e fotografia (Ivo Lopes Araújo).

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