Filme desenha retrato do tímido Verissimo, cronista de fina ironia e tocador de saxofone

Foto: Diretora Luzimar Stricher do longa-metragem documental “Luis Fernando Verissimo” © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado-RS

A quinquagésima-primeira edição do Festival de Cinema de Gramado encerrou sua mostra competitiva de longas documentais com a prata-da-casa. Ou seja, com 120 minutos de imagens e sons sobre a trajetória de um ícone do estado, o escritor, quadrinista, tradutor, humorista e saxofonista Verissimo.

O quinto e último documentário da competição, dirigido pela psicanalista e cineasta, também gaúcha, Luzimar Stricher, carrega nome simples e direto – “Luis Fernando Verissimo, o Filme”.

O que se vê na tela é narrativa construída com as reduzidas palavras e  gestos do biografado.  Ele, que foi lapidando a língua portuguesa em busca da síntese perfeita,  é realmente um sujeito mais interessado em ouvir e observar.

Com protagonista tão lacônico, a documentarista, que já realizou filmes sobre Érico Verissimo, pai de Luís Fernando, de Drummond, Bandeira e Quintana — foi obrigada a recorrer ao testemunho de muitos dos amigos de seu biografado.

Hoje Verissimo – que completará 87 anos mês que vem e vive recluso com a esposa Lúcia no casarão portalegrense herdado dos pais – pode orgulhar-se dos amigos fiéis que conquistou ao longo de oito décadas. São publicitários e jornalistas (Ruy Carlos Ostermann, Hiran Goidanich), escritores (Flávio Loureiro Chaves, Claudia Laitano, Zuenir Ventura), humoristas e chargistas (Vásques, Ziraldo, Chico e Paulo Caruso), apresentadores de TV (Jô Soares) e cineastas (Jorge Furtado). Todos esses nomes, e alguns mais, compõem legião de respeitosos conhecedores de sua timidez. O gaúcho educado nos EUA, apaixonado por jazz, cinema e, acima de tudo, por livros, não posa de tímido. É realmente uma pessoa introspectiva, que gosta mais de escutar histórias e observar os que o cercam. Prefere, mesmo, não encarnar o ser falante e exibicionista da roda. Ziraldo, que se filia a esta maneira de ser, chega a admirar o jeito discreto do amigo.

O filme de Luzimar Stricher poderia ter resultado num típico (e superficial) “cabeças falantes” se ela não tivesse iniciado, há dez exatos anos, sua busca pelo Veríssimo perdido (em sua discrição).  A documentarista teve a sorte de contar com a cumplicidade de Lúcia, companheira de Verissimo há 59 anos. E com a paciência do próprio escritor.

Sentado à mesa, onde se destaca vaso com belo arranjo floral, o filho de Érico Verissimo vai se auto-depreciando. Diz que era péssimo aluno, que trocava as aulas por livros, que era feio (com essa estampa, eu não podia conquistar as mulheres), que vivera fase de playboy sem rumo, que preocupava o pai, pois largara os estudos… Ao encontrar, no Rio de Janeiro,  a bela e jovial Lúcia, reduziu tempo de namoro e de noivado e deu logo seu “golpe de estado” (em março de 1964, mês e ano da Intentona Militar) desposando-a. Como ela é sociável e gosta de comunicar, ele a toma por porta-voz.

Os amigos só têm coisas boas para dizer de Verissimo, pois ele se saiu bem na publicidade e no jornalismo (incluindo o efêmero “Pato Manco” e menos-efêmero “Pasquim”, somados aos maiores jornais e revistas brasileiros). Brilhou, também, nas tiras de humor (“As Cobras”, “Família Brasil”), nos roteiros de TV (e como matriz de filmes), e, principalmente, nas crônicas. Aliás, quem escreveu a poderosa-sintética-e-subversiva “Nossa Senhora dos Destoantes” e criou Nossa Senhora do Contexto, tem mesmo que ser estudado nas escolas e respeitado por seus muitos amigos e (poucos) inimigos.

Quem conta as melhores (e mais sintéticas) histórias do filme é o jornalista Ruy Ostermann, pois foi amigo de Érico e de Luís Fernando. Sabia que o pai temia pelo futuro profissional do filho, tímido, dispersivo, meio sem-rumo. Já que não quisera estudar, que fosse trabalhar. Érico arrumou emprego para o filho sem diploma na MPM, importante agência de publicidade. Ali, Verissimo aprenderia o valor da síntese. E passaria a persegui-la pela vida inteira.

No começo do filme, Luzimar nos mostrará, com belas imagens, o músico que habita dentro do escritor gaúcho. Ele diz que queria ser “o Louis Armstrong do trompete”. Acabou ganhando um saxofone e resolveu, então, “ser um Charlie Parker”. Claro que não voou tão alto. Mas o sexteto de Veríssimo nos encanta com seu jazz melodioso e repertório sofisticado. Que inclui um João Donato de fina carpintaria (“A Rã”, que um dia Caetano Veloso letraria, também com excelência rara).

No debate do documentário, Luzimar Stricher revelou ter-se apavorado quando descobriu que teria que pagar pelas composições tocadas pelo sexteto. “Na base de dois mil dólares por minuto”, quantia “muito alta” para quem foi fazendo o filme “aos poucos e com recursos próprios”. Por sorte, uma amiga se dispôs a ajudá-la e encontrou patrocínio providencial.

“Luís Fernando Veríssimo, o Filme” acerta em cheio na exposição da face musical de seu personagem. E, também, na apresentação de seus desenhos econômicos, que ele mesmo chama de “preguiçosos” (“escolhi as cobras, porque não há bicho mais fácil de desenhar”).

O documentário só deixa a desejar no que diz respeito à rica contribuição de Verissimo aos roteiros de TV e como matriz de longas-metragens (“Ed Mort”, “O Clube dos Anjos”). Jorge Furtado evoca o sucesso da série “Comédia da Vida Privada”, que causou sensação na Rede Globo e no mercado editorial. Mas não vemos trechos de nenhum dos filmes, séries ou programas de TV (“Satyricon”, “Planeta dos Homens”, “TV Pirata”) que o têm nos créditos. “Foram muitos”, lembrará Verissimo, “pois fui o roteirista mais demitido e recontratado (para nova demissão) da Globo”.

Luzimar conta que não dispunha de recursos para adquirir direitos autorais de obras cinematográficasoubtelevisivas. Fez uma tentativa, mas “o custo do trecho desejado beirava os 30 mil reais”. Preferiu centrar sua narrativa no amplo material que captou com seus dois diretores de fotografia (Bruno Polidoro e Fernanda da Costa).

A quase totalidade das imagens usadas no documentário é, pois, da lavra de sua equipe. “Filmamos” — lembrou ela — “até o desfile da Escola de Samba Imperadores, vermelha como o Internacional, o amado time de futebol de Verissimo”. Mas, claro, “não podíamos dispor de grua e outros recursos mais complexos e caros”. Por sorte, a RBS, repetidora da Globo no Rio Grande Sul, disponibilizou imagens que dão surpreendente encanto  ao filme. Acreditem, o tímido Luiz Fernando, filho de Érico Verissimo, subiu em suporte solitário de carro-alegórico. Sem nenhum jogo de cintura,  mesmo assim acenou e sorriu seu riso tímido para a multidão. A escola ganhou o campeonato.

Quem for aos cinemas (Luzimar espera que seu décimo-quarto documentário chegue ao circuito exibidor e, depois, ao streaming), que vá prevenido. “Luís Fernando Verissimo, o Filme” nada tem de renovador. Nem busca a síntese tão perseguida por seu personagem.

A narrativa, de corte clássico, aproveita com prazer cada fala de seu principal entrevistado. E muitas das falas de seus coadjuvantes (algumas poderiam ser podadas na ilha de edição. Luzimar cultiva, com muito gosto,  as nuances dos testemunhos de cada depoente, mesmo que o tema seja recorrente —  caso da tão propalada timidez de Verissimo. Ela não se incomoda com a camada didática que o filme incorporou em sua narrativa.

“Luis Fernando Verissimo é um exemplo para os jovens” – faz questão de registrar – “pois foi (e é) um grande leitor, pela vida inteira”. Por isso, “queremos que o filme seja visto por milhares de estudantes”.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.