“Noite cearense” de Gramado revela perdas afetivas e materiais de Jaguaribara, cidade submersa

Foto: Elenco do longa-metragem “Mais Pesado é o Céu © Ticiane da Silva/Agência Pressphoto

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado-RS

Dois filmes vindos do Ceará, ambos ambientados nas cercanias de cidade submersa, marcaram a terceira noite da mostra competitiva do Festival de Cinema de Gramado. A cidade se chamava Jaguaribara e foi engolida pelas águas da represa do Castanhão, responsável pelo abastecimento hídrico de Fortaleza (e do Polo Industrial de Pecém).

O primeiro filme – “Mais Pesado é o Céu”, de Petrus Cariry – é uma ficção protagonizada por dois seres errantes, Teresa (Ana Luiza Rios) e Antônio (Matheus Nachtergaele). E por um bebê, vítima de abandono, encontrado num barco.

O segundo – “Memórias da Chuva”, de Wolney Oliveira – é um documentário sobre as perdas afetivas e materiais dos jaguaribaras, que viram as águas do Castanhão cobrirem suas casas, igreja, cemitério e escolas.

“Mais Pesado é o Céu”, nono longa-metragem do diretor, roteirista e fotógrafo Petrus Cariry, teve recepção gélida por parte do público, que lotou o Palácio dos Festivais. O mesmo público que recebera, efusivamente, a equipe, composta pelo diretor, pela produtora Bárbara Cariry e elenco (além de Matheus Nachtergale e Ana Luiza Rios, subiram ao palco Sílvia Buarque, que interpreta dona de casa de boa índole, e Buda Lira, um caminhoneiro, também de afabilidade a se notar).

E por que razão o público reagiu com frieza glacial?

Porque Petrus Cariry construiu o mais inesperado e desconcertante desfecho da história do cinema brasileiro. Que não será aqui revelado, mas que deixou a plateia atônita, sem chão e muda.

O novo filme de Petrus Cariry constrói-se como narrativa realista, nos moldes de seu premiado e tocante “O Grão” (2007), que marcou sua estreia no formato. Na viagem de regresso de Antônio à terra natal, depois de temporada como biscate em solo paulistano, ele se dispõe a limpar bosta de vaca na carroceria do caminhão cujo motorista lhe dera carona.

Em determinado momento, enquanto procura Nova Jaguaribara, Antônio encontrará Teresa, também uma desterrada (da mesma cidade). Ela carrega uma criança no colo. Ambos não têm dinheiro para nada. Nem para comprar leite para a criança, que ele julga ser filho dela.

A dupla improvável encontrará algum suporte na solitária personagem de Sílvia Buarque, que os encaminhará a uma casa abandonada. Para conseguir algum dinheiro, Teresa se prostitui na estrada. Antônio, com o bebê no colo, pede esmolas na mesma rodovia.

O público é induzido a acreditar que aquelas duas “vidas secas” construirão laços de afeto, tendo o “filho” (aliás, um bebê cativante e fotogênico) como força motivadora. Teresa, que vende o corpo a brutos caminhoneiros, encontrará numa vendedora de pequeno comércio (a atriz transexual paraibana Danny Barbosa) uma voz amiga.

O desfecho de “Mais Pesado é o Céu” pareceu, a muitos de seus espectadores, despropositado. Os diálogos (ainda que duros e sintéticos), os perfis psicológicos e afetivos dos protagonistas e a presença da criança apontavam para final em aberto ou menos trágico. Mas Petrus, como anunciara na apresentação do filme, quis realizar um retrato do Brasil que ambienta o filme: o da era Bolsonaro (e da pandemia). Quis entender por que um povo, tido como gentil, cordial e hospitaleiro, escolheu para representá-lo, na presidência da República, um líder da extrema-direita.

“Memórias da Chuva” se passa em outro registro: o da cumplicidade do diretor Wolney Oliveira com as histórias e vidas afetivas de seus personagens, os desterrados da inundação da mesma Jaguaribara.

A cidade, situada a 162 Km de Fortaleza, foi devorada pelas águas e recriada, artificialmente, em região próxima e com o mesmo nome. Aliás, referendado por plebicito que recusou a proposta de “Tassilândia” (homenagem ao então governador Tasso Jeireissati, visto no filme, assim como o então presidente FHC).

Wolney alterna imagens de arquivo – registradas por câmaras de televisão e, por isso, sem as qualidades dos planos aéreos contemporâneos, de grande beleza – que dão voz aos desterrados. No melhor momento do documentário, o cineasta ouve cientistas sociais e ecológicos, que explicam “o fracasso” da represa (ou super-açude) do Castanhão, Hoje, ele não lembra a aparente potência de outrora. Com baixa capacidade de abastecimento hídrico, não pode mais esconder os vestígios do que restou da velha Jaguaribara. E, devido à falta de chuvas – somada à reduzida profundidade da represa – a Natureza cobra seu preço. Sem a profundidade necessária, a água evapora.

“Memórias da Chuva” – assim como “Soldados da Borracha”, o documentário anterior de Wolney, premiado com a Margarids de Prata da CNBB – poderia ter se aprofundado mais nas causas do desastre anunciado. Ou deixado o espectador sob o impacto das ideias dos cientistas que questionavam a obra do Castanhão. Estes defendiam a criação de vários açudes em trechos diversos do rio. E não a imensa (embora rasa) represa.

O final do filme, em postura oposta à da ficção de Petrus Cariry, volta a dar voz (em tom de lamento) aos desterrados, que revisitam as ruínas de Jaguaribara e buscam vestígios de suas casas, comércios, escolas e da igreja matriz. Que nem sabiam que era “tombada pelo patrimônio histórico”.

Wolney Oliveira e equipe de “Memórias da Chuva” © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

Dois curtas-metragens, um gaúcho e um baiano, completaram a “Noite Cearense” do Festival de Gramado. O primeiro, “Sabão Líquido”, de Fernanda Reis e Gabriel Faccini, já causara boa impressão no Gauchão, mostra competitiva de curtas patrocinada pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.

Dedicado ao mundo do trabalho, o único filme “kenloachiano” das duas competições (a gaúcha e a brasileira), rendeu o Prêmio Assembleia Legislativa a seus dois realizadores (melhor direção). Mas a dupla perdeu o troféu principal para “Concha de Água Doce”, filme de perfil identitário, força em alta nas cinematografias planetárias.

O curta-metragem de Fernanda e Gabriel é de excelente qualidade estética e temática. Um trabalhador negro (colombiano? venezuelano?), de longos cabelos presos num rabo de cavalo, é alojado por atravessador (um “gato”) no meio da mata. Lá deverá falsificar produto de limpeza e proteger-se de ladrões, municiado com arma de fogo que lhe chegara junto aos ingredientes do sabão líquido.

O que acontecerá em seguida soma o íntimo ao épico. O roteiro e o desfecho são primorosos. Em poderosos 20 muitos, a dupla de diretores revela a complexa face do Brasil e de seus trabalhadores, outrora integrantes do proletariado e, agora, do “precariado”. Forte concorrente ao Kikito.

O baiano “Jussara”, de Camila Cordeiro Ribeiro, é a única animação selecionada para a mostra nacional de curtas. Sua protagonista é uma senhora negra, que guarda a memória de seu vilarejo. Contadora de histórias, ela espalha conhecimento entre todos. O desenho é bonito e, mesmo sem palavras (o pouco que se ouve é uma especie de “fonemol”), e em menos de nove minutos, dá seu valioso recado.

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