“A Última Rainha” mostra tragédia shakespeariana ambientada numa Argel das “Mil e Uma Noites”

Por Maria do Rosário Caetano

Um filme argelino, falado em árabe, com atores do Magreb (exceção para a “escandinava” Nadia Tereszkiewicz) e ambientado em cenários dignos das fabulações das “Mil e Uma Noites”. Tudo isso (e muito mais) resumido em aliciante narrativa intitulada “A Última Rainha”, de Damien Ounouri e Adila Bendimerad, estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 14 de setembro.

Diretor e sua codiretora e protagonista (a bela argelina Adila Bendimerad), produtores (além da Argélia, destacam-se França, Taiwan, Arábia Saudita, Qatar) e técnicos de ponta (Shadi Chaaban, na fotografia, Samir Haddadi, na coordenação de combates, Feriel Gasmi Issiakhem, na direção de arte, e o craque taiwanês Tu Wei Ting nos efeitos especiais) prestigiaram a estreia do filme no Festival de Veneza, em 2022. A equipe saiu de lá com um prêmio (melhor direção) atribuído à dupla de realizadores (mostra Giornate Degli Autori). Nada mal para a Argélia, país do norte da África e pátria de “A Batalha de Argel” (Gillo Pontecorvo, 1965) e de outras produções que não conseguiram tamanha ressonância.

“A Última Rainha” é vendido como um épico histórico, baseado, portanto, em fatos reais (temperados com algumas invenções míticas), situado nos estertores do Medievo (no Ocidente, plena Renascença). Tudo começa em 1516, quando os espanhóis fustigam, com os exércitos do Rei Fernando, o católico, o Sultanato de Argel.

Para ajudar o dirigente humanista do povo afro-árabe (o sultão Salim Toumi), as fileiras argelinas passam a contar com grupo de corsários (piratas, sem eufemismo), liderado pelo audaz Aroudj Barberousse. Com seus guerreiros andrajosos e brutos, ele dá cabo dos espanhóis. Isto, depois de perder um braço em combate e substituí-lo não por um gancho, mas por braço-mão de rudimentar mecânica. Afinal, nas aventuras corsárias, não pode faltar o Pirata da Perna (nesse caso, da Mão) de Pau.

O vitorioso Aroudj Barberousse confraterniza-se com o Sultão, com quem fizera aliança para defender a terra argelina. E, também, com Zaphira, a mais bela (e preferida) das esposas do governante. O corsário, claro, vai interessar-se pela predileta do Sultão e garantirá (a seus piratas) que assumirá o controle de Argel e desposará a bela sultana (ou rainha, como dizem os ocidentais).

A trama, que tem muito mais de invenção do que de história real (é controversa a existência da última sultana ou “última rainha”), vai mudar de rumo quando Zaphira perder o marido-sultão, pai de seu filho, o menino Yahia (Yanis Aouine).

Naquele momento, ela se transformará numa mulher feminista e disposta a tudo para vingar a morte do marido e salvar o filho. Para atingir tais objetivos, não interessa (ao filme) se ela vive num país muçulmano, em pleno século XVI, se vem de família com tradições religiosas e morais muito rígidas e se um dia teve tempo de aprender a manipular punhais com rara coragem.

“A Última Rainha” é, mais que um épico histórico, um filme de aventura composto com muito das tragédias sanguinárias de Shakespeare e (alguns) condimentos de “Game of Thrones”.

As cenas de batalha são brutais e muito bem feitas. Ganham ainda mais relevo quando contrastadas com a beleza hipnotizante dos jardins internos do Palácio do Sultão, plenos de flores e com enorme fonte (uma piscina), onde Zaphira e suas damas de companhia se refrescam. Ah, elas também saboreiam neve com limão e essências (um “sorvete” avant la lettre). As paredes, arrematadas em arabescos das “Mil e Uma Noites”, e os canteiros luxuriantes compõem cenários perfeitos para exibição dos vestidos da nobreza árabe. Realçados por maquiagem também vistosa e fascinante.

Os piratas trucidam os espanhóis e a edição (de Matthieu Laclau e Yann-Shan Tsai), sem tempos mortos, alterna lutas de espadas, sangue aos jorros e membros decepados com os belíssimos e sinuosos arabescos, mosaicos, fontes e flores do palácio, sob os acordes musicais de Evgueni e Sacha Galperine.

As mulheres esperam, em seu paraíso doméstico, a devolução de “nossa Argel”, pois por ela todos os sacrifícios devem ser feitos. O filme assegura que o sultanato funciona como uma “república” (o governante Salim Toumi ouve seu Conselho de Notáveis, espécie rudimentar de Parlamento, antes de tomar qualquer decisão).

E quem matou o sultão Salim Toumi?

Ao se aproximar da “última rainha”, o corsário Aroudj garante que não foi ele. A sultana pede que comprove tal afirmação. Ele até promoverá “justiçamento” sangrento. Desconfiada, uma das esposas do governante assassinado, Chegga (Imen Noel), pede a Zaphira que aceite desposar o pirata, para matá-lo na noite de núpcias. Tudo que acontecer dali em diante trará muitas (e impressionantes) surpresas.

O épico de Damien Ounouri e Adila Bendimerad (ela, a estrela máxima do filme e também sua co-roteirista e coprodutora) avançará no terreno da violência (impactante a cena na qual o chefe dos corsários perde metade do braço e a mão), mas se contém no campo do sexo (tabu nos países muçulmanos). A sultana e suas damas de companhia se refrescam na fonte-piscina com belos vestidos em camadas. Não há cenas de alcova, nem mesmo beijos ardentes, quem dirá lascivos.

Os realizadores constroem o filme com boas doses de sutileza. O chefe dos piratas, que chega do campo de batalha com a cara rasgada por diversos cortes, vai aos poucos melhorando de aspecto e modos. E fazendo a corte à sultana Zaphira.

O filho do governante assassinado é um garoto rebelde e fujão. E será protagonista de importantes acontecimentos na trama, esses, sim, condizentes com a moral histórico-religiosa das primeiras décadas dos anos 1500. Os muitos irmãos de Zaphira virão cobrar dela o cumprimento dos preceitos muçulmanos, já que ela estaria se unindo ao suposto assassino do sultão. Por isso, vão levar para junto do avô o filho da sultana, já que não poderia permanecer naquele ambiente promíscuo.

Para dar ao longa argelino caráter mais aventuroso que histórico, “A Última Rainha” conta com personagem das mais exóticas – a escandinava Astrid (interpretada pela francesa Nadia Tereszkiewicz, a louríssima protagonista de “O Crime é Meu”, de Ozon). Decerto o corsário a encontrou (roubou?) em aventuras por mares vikings. Aroudj e Astrid formam um casal e ela fica indócil com a possibilidade de perdê-lo para a sultana.

O filme de Damien Ounouri e Adila Bendimerad não fez feio na França. Ganhou cinco estrelas de Band à Part e três da revista Cahiers du Cinéma e, também, dos jornais Le Monde e Libération. Foi visto por quase 100 mil espectadores e, milagrosamente, graças à Imovision de Jean-Thomas Bernardini, chega agora ao ocupado-dominado mercado brasileiro. Quem for assisti-lo terá pelo menos imensos prazeres visuais proporcionados por vestidos e joias de imensa beleza, sem falar nos cenários – estes sim, reais, pois o Governo da Argélia permitiu acesso aos mais fascinantes palácios do país.

“A Última Rainha” mistura política anticolonial, épico histórico e drama familiar-intimista-feminista com alta dosagem de aventura. Quer entreter, sem negar um pouco da rica história do país que, quatro séculos depois, protagonizaria a mais importante das revoluções africanas do século XX (a Argelina, imortalizada no – este sim – épico dirigido pelo italiano Gillo Pontecorvo, mas construído como um filme 100% do magrebiano).

 

A Última Rainha | La Dernière Reine
Argélia, 2002, 113 minutos
Direção: Damien Ounouri e Adila Bendimerad
Elenco: Adila Bendimerad (Zaphira), Dali Benssalah (o corsário Aroudj), Tahar Zaoui (o sultão), Imen Noe (esposa Chegga), Yanis Aouinic (o filho Yahia), Nadia Tereszkiewicz (Astrid), Dimitri Boetto (Ishak), Kader Affak (o Iman), Ahmed Zitouni (pirata Bosniaque)
Roteiro: Damien Ounouri e Adila Bendimerad
Produção: Adila Bendimerad, Roger Huang, Justine O., Damien Ounouri, Patrick Sobelman (Argélia, França, Twain, Qatar e Arábia Saudita)
Direção de fotografia: Shadi Chaaban
Direção de arte: Feriel Gasmi Issiakhem
Música: Evgueni Galperine, Sacha Galperine
Montagem: Matthieu Laclau, Yann-Shan Tsai
Figurino: Jean-Marc Mireté
Classificação: 12 anos
Distribuição: Imovision

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