CineBH abre competição de filmes da América Latina, ocupa sete espaços culturais e a histórica Praça da Liberdade

Foto: Cena de “Toda Noite Estarei Lá”, de Tati Franklin e Suellen Vasconcelos

Por Maria do Rosário Caetano

O drama político “Zé”, de Rafael Conde, sobre a tortura e morte do militante político José Carlos Novaes da Mata Machado (1946-1973), ocorrida no momento mais grave da ditadura militar brasileira, é o filme inaugural da 17ª edição da CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte.

O jovem, interpretado por Caio Horowicz, trocou sua confortável vida de filho de respeitado intelectual (o jurista e professor da UFMG, Edgard da Mata Machado) e foi assassinado aos 27 anos, depois de dez dias de sessões de tortura num DOI-CODI nordestino, o de Recife. Ele militava na Ação Popular Marxista-Leninista.

O evento belo-horizontino, que a partir deste ano contará com competição de alcance latino-americano – soma de oito longas-metragens vindos da Argentina, Cuba, Colômbia, Peru,  Paraguai, Brasil e Chile (único país a participar com dois títulos) –   acontecerá em oito espaços culturais espalhados pela capital mineira (incluindo a Praça da Liberdade).

A solenidade de abertura, que exibirá “Zé” e homenageará seu diretor, o cineasta e professor da UFMG Rafael Conde, e a mais luminosa presença feminina de seu elenco, a atriz Yara de Novaes (intérprete da mãe de Zé, Yedda Novaes da Mata Machado),  acontecerá na terça-feira, 26 de setembro, no hipercentro de Belo Horizonte.

O festival prosseguirá até o domingo, 1o de outubro, com exibição de mais de 90 filmes de curta, média e longa-metragem,  distribuídos em diversos segmentos (Mostra Continente, Mostrinha, pré-estreias, mostra-homenagem, curtas brasileiros, filmes infantis-escolares, Cine Praça, Cine Mundi e, para os resistentes, Cine Fôlego).

Que ninguém espere filmes de Lucrécia Martel, Claudia Llosa, Pablo Trapero, Michel Franco, Pablo Larraín, Victor Gavíria, Ciro Guerra, Sebastián Lélio, Alonso Ruizpalacios, Fernando Pérez e da trinca oscarizada Cuarón-Del Toro-Iñarritu. Não faz parte do quadro das intenções da CineBH servir de vitrine para estrelas da América Hispânica, ou seja, aquelas que carimbam seus passaportes nos festivais de Cannes, Veneza e Berlim.

Como faz, historicamente, na Mostra de Cinema de Tiradentes (a cada janeiro), a curadoria da CineBH preferiu privilegiar o que o crítico Cléber Eduardo (seleção feita em parceria com Leonardo Amaral e Ester Fér) define como “filmes avessos a estereótipos de latinidades genéricas”. E mais: “realizações de múltiplas possibilidades de se atentar a um território concreto, local antes de (ser) nacional”, e “não deixar as pressões pelas justas representações asfixiar as autoralidades”.

O curador-titular destaca, ainda, que “os oito títulos selecionados para a Mostra Território não são, necessariamente,  representativos dos cinemas feitos em seus países”, mas, sim, “propostas alternativas ao que se supõe serem elementos típicos destes cinemas nacionais”. Daí que “a visibilidade que se dará aos filmes escolhidos significará nossa contribuição no desejo-dever de compartilhar aquilo que vislumbramos com empolgação”.

Os sete títulos vindos da América Hispânica constituem novidades para o público brasileiro. O Chile, que vive um bom momento cinematográfico – Larraín acaba de ver o roteiro de “O Conde”, protagonizado por um Pinochet vampiresco, premiado em Veneza – ocupa duas vagas com “A La Sombra de la Luz” , da dupla Isabel Reyes e Ignacia Merino, e “Otro Sol”, de Francisco Rodriguez Teare.

A Colômbia, outro país que vem brilhando no cinema feito abaixo do Rio Grande (lembremos os potentes “O Abraço da Serpente” e “Pássaros de Verão”, comparece com “Puentes en el Mar”, de Patricia Ayala Ruiz.

A Argentina, que divide com o México e o Brasil a condição de mais importante polo produtor das Américas Hispânica e Lusitana, compete na Mostra Território com “Moto”, de Gastón Sahajdacny. O Peru, que teve no Grupo Chaski e em Francisco Lombardi – e depois nos Irmãos Vega (Diego e Daniel) – seus pilares, marcará presença com “Diogenes”, de Leonardo Barbuy.

Cena do argentino “Moto”, de Gastón Sahajdacny

Cuba, outrora uma potência artística do cinema latino-americano (com Tomás Gutierrez Alea, Santiago Álvarez e Humberto Solás), anda em momento de modesto brilho. Daí a importância de conferirmos “Llamadas desde Moscu”, de Luis Alejandro Yero. O Paraguai, país bilíngue e pátria da realizadora Paz Encina, terá um filme feminino na CineBH – “Guapo’y”, de Sofia Paoli Thorne.

E o Brasil?

Esta é a primeira edição competitiva da mostra mineira e o escolhido para representar nossa produção foi o documentário capixaba “Toda Noite Estarei Lá”, de Tati Franklin e Suellen Vasconcelos, protagonizado pela cabeleireira transexual Mel Correia, uma força da natureza. Ela nasceu numa família de oito irmãos, de pai ausente e mãe muito religiosa (Testemunha de Jeová). A filha, que foi um menino na infância, desdobra-se em atos cidadãos para conquistar curioso direito: professar sua fé numa Igreja Evangélica. Uma igreja comandada por pastores e auxiliares que não a querem em seus cultos. Como ela é dura na queda, vai recorrer à Justiça e defender seus propósitos com a afirmação que dá título ao filme: “toda noite estarei lá!” (protestando).

O filme de Tati e Suellen já participou do Festival Internacional de Curitiba (Olhar de Cinema) e do Festival de Cinema de Vitória. Resta torcer para que, em anos vindouros, a “Território” possa contar com produção nacional 100% inédita. Afinal, trata-se de vitrine simbólica do país anfitrião. Mas Cléber Eduardo e sua equipe curatorial terão que enfrentar grandes empecilhos na busca pelo ineditismo. E por que?

A resposta é de fácil anunciação. Produtores e realizadores brasileiros não gostam de competir com filmes assinados pelos “hermanos”. O Festival de Gramado, que ampliou o seu alcance, no início da década de 1990 (tempos da hecatombe Collor), para a produção latina, sofreu pressão subliminar (e depois explícita, quando o número de novos filmes se avolumou) para voltar ao formato unicamente brasileiro. O que foi feito (uma competição brasileira e uma hispano-americana) até que, este ano, o festival gaúcho trocou a mostra latina por competição de longas documentais (preservando a mostra de longas ficcionais brasileiros, a mais nobre de todas).

O júri da CineBH reunirá o cineasta André Novais Oliveira (“Temporada”), a produtora gaúcho-paulista Sara Silveira (“Alma Corsária”), o professor e crítico gaúcho-baiano Roberto Cotta, a pesquisadora e curadora mineira Carla Italiano e a jornalista e pesquisadora paulista Mariana Queen Nwabasili.

Fora da mostra competitiva, o festival belo-horizontino oferecerá filmes já vistos em outros festivais, mas que merecem ser revisitados. Caso do imperdível documentário confessional e pulsante “Nada sobre meu Pai”, da brasileira Susanna Lira, e do endiabrado longa colombiano “Anhell69” (algo como “Anjo do Inferno”, um ‘angel’ de número erotizado), do colombiano Theo Montoya.

Duas produções brasileiras merecem conferência, até por situarem-se em campos opostos: de um lado, o mineiro “Amanhã”, de Marcos Pimentel, que derrama seu olhar humanista (e utópico) sobre o mundo de crianças pobres em convivência (possível) com criança rica, e o pernambucano “Propriedade”, de Daniel Bandeira, pauleira pura (e muito controverso em sua proposta de somar drama social e zumbis).

Os admiradores de Júlio “O Anjo Nasceu” Bressane, poderão desfrutar de sete horas (e 10 minutos)  de “A Longa Viagem do Ônibus Amarelo”, fruto de parceria do veterano realizador com Rodrigo Lima. Por causa da duração (à moda do “Berlin Alexanderplatz”, de Fassbinder, e do “Satantango”, de Béla Tarr), o filme-trajetória de Bressane foi encaixado no segmento Cinema de Fôlego. Afinal, a maratona exigirá muita resistência e – como dizem os mineiros do interior – uma “boa matula” para aplacar a fome.

 

XVII CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte

Data: 26 de setembro a 1º de outubro
Locais: Casa da Mostra, Cine Theatro Brasil Vallourec, Fundação Clóvis Salgado (Cine Humberto Mauro, Sala João Ceschiatti, Sala Juvenal Dias, Jardim Interno), Salas de Cinema Minas Tênis Clube, Cine Sesc Palladium, Cine Santa Tereza, Teatro Sesiminas, Praça da Liberdade
Entrada Franca

 

FILMES SELECIONADOS

MOSTRA TERRITÓRIO (competitiva):

“Llamadas desde Moscu”, de  Luis Alejandro Yero (Cuba)
“Moto” , de Gastón  Sahajdacny (Argentina)
“A La Sombra de la Luz” , de Isabel Reyes e Ignacia Merino (Chile)
“Otro Sol , de Francisco Rodriguez Teare (Chile)
“Diogenes”, de Leonardo Barbuy (Peru)
“Puentes en el Mar”, de Patricia Ayala Ruiz (Colômbia)
“Guapo’y” , de Sofia Paoli Thorne (Paraguai)
“Toda Noite Estarei Lá”, de Tati Franklin e Suellen Vasconcelos (Brasil).

MOSTRA CONTINENTE (latino-americana, não-competitiva):

“El Reino de Dios”, de Claudia Sainte-Luce (México)
“El Grossor del Polvo”, de Jonathan Hernández, (México)
“Utopia”, de Laura Gómez Hinchapié (Colômbia)
“Vieja Viejo”, de Ignacio Pavez (Chile)
“Sean Eternxs”, de Raúl Perrone (Argentina)
“Las Preñadas”, de Pedro Wallace (Argentina/Brasil)
“Tan Inmunda”, de Wince Oyarce (Chile)
“Anhell69”, de Theo Montoya (Colômbia)
“Nada sobre meu Pai”, de Susanna Lira (Brasil)
“Rejeito”, de Pedro de Filippis (Brasil)
“Amanhã”, de Marcos Pimentel (Brasil)
“Propriedade”, de Daniel Bandeira (Brasil)
“O Estranho” (Flora Dias e Juruna Mallon, Brasil)
“A Longa Viagem do Ônibus Amarelo” , de Júlio Bressane e Rodrigo Lima (Brasil)

MOSTRA CURTAS (brasileiros):

“Big Bang”, Carlos Segundo (Uberlândia, MG)
“Febre”, de Márcio Abreu (MG)
“Lombrado”, de Ítalo Almeida (MG)
“Minha Vó Viajou prá Fora”, de João Pedro Diniz (MG)
“Não Há Coincidência Ocupando esta Carne”, de Júlia Elisa (MG)
“Sala de Espera”, de Paula Santos (MG)
“Temos Muito Tempo para Envelhecer”, de Bruna Shelb Corrêa (MG)
“Remendo”, de Roger Ghil (ES)
“Até a Luz Voltar”, de Alana Ferreira (GO)
“Deixa”, de Mariana Jaspe (RJ)
“Casa Segura”, de Allan Ribeiro (RJ)
“Mecanismo”, de Isaac Morais, Gabriel Lima e Maria Beatriz (CE)
“Thuë Pihi Kuuwi – Uma Mulher Pensando”, de Aida Harikariyona, Edmar Tokorino e Roseanne Yanomami

MOSTRA HOMENAGEM (a Rafael Conde e Yara de Novaes):

“Samba Canção” (longa, Conde, 2002)
“Fronteira” (longa, Conde,  2008)
“A Hora Vagabunda” (curta, Conde, 1998)
“Françoise” (curta, Conde, 2001)
“Rua da Amargura” (curta, Conde, 2003)
“A Chuva nos Telhados Antigos” (curta, 2006)
“Depois a Louca Sou Eu” (2021), longa de Julia Rezende (com Yara de Novaes no elenco)

DIÁLOGOS HISTÓRICOS (José Celso Martinez Corrêa – 1937-2023, ator, roteirista ou diretor):

“Prata Palomares”, de André Faria (1970)
“O Rei da Vela”, de Zé Celso e Noilton Nunes (1982)
“Fedro”, de Marcelo Sebá (2021)

MOSTRA CINEMUNDI

“Mato Seco em Chamas”, de Joana Pimenta e Adirley Queirós (DF)
“Paterno”, de Marcelo Lordello (PE)
“Tia Virgínia”, de Fábio Meira (RJ)

MOSTRA PRAÇA

“Andança – Encontros e Memórias de Beth Carvalho”, de Pedro Bronz  (longa, 2023)
“Lô Borges – Toda Essa Água”, de Rodrigo de Oliveira (longa, 2023)
“Gerais da Pedra”, de Diego Zanotti (longa, 2023)
“Senhores de Aruanda – Umbanda e Resistência”, de Caio Barroso, e “Folia dos Anjos”, de Kdu dos Anjos (curtas)

MOSTRINHA DE CINEMA

“Placa Mãe”, de Igor Bastos  (animação, Divinópolis-MG)
“Chef Jack, O Cozinheiro Aventureiro”, de Guilherme Fiúza Zenha (animação, BH-MG)

A CIDADE EM MOVIMENTO (“Olhar o Horizonte”):

Compõe-se com 16 filmes realizados em Belo Horizonte e região metropolitana, com pouco ou nenhum recurso financeiro, divididos em cinco sessões, seguidas de rodas de conversa com convidados especiais sobre os assuntos dos filmes selecionados.

SESSÕES CINE-ESCOLA

Programa “Cine-Expressão – A Escola vai ao Cinema”, composto com 13 filmes brasileiros  (divididos em seis sessões destinadas a crianças, adolescentes e educadores da rede pública).

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