“Il Boemo”, o divino compositor tcheco que conheceu a glória, foi vítima de sífilis e de cruel ostracismo

Por Maria do Rosário Caetano

Na obra-prima “O Leopardo”, Luchino Visconti mostra, em sequência de imenso valor documental, dependência do palácio do Príncipe de Salinas, onde convidados de baile monumental encontram pequenos vasilhames de cerâmica. Neles, ao longo da noite, poderão satisfazer suas necessidades fisiológicas básicas.

Há um vasilhame sanitário de fina cerâmica em “Il Boemo”, longa ficcional de Petr Václav, em cartaz nos cinemas de dez cidades brasileiras. A sequência que gira em torno do urinol reúne o compositor e maestro tcheco Josef Mysliveček, o “Divino Boemo”, e o rei de Nápoles (os diálogos finos e cortantes neutralizarão qualquer desvio escatológico). Esta, porém, não é a sequência mais impressionante de “Il Boemo” (em bom português, “O Bohêmio”, referência à origem do compositor, nascido na Bohêmia tcheca, e radicado nos reinos que, unificados, formariam a futura Itália).

A sequência de maior impacto documental de “Il Boemo” tem a ver com a sífilis, doença que causará o martírio do compositor Josef Mysliveček, morto aos 43 anos. Um imenso grupo de pacientes sifilíticos tem seus corpos (marcados por terríveis lacerações) submetidos a tratamento brutal. Só vendo para vislumbrar o que era a medicina no século 18.

O filme de Petr Václav, que visitou o Brasil semana passada e participou do Festival Ópera na Tela, é uma ficção de beleza rara, que beira o sublime. Que ninguém se desespere com sequências duras como a do tratamento dos sifilíticos, pois elas são breves. O que “Il Boemo” pretende é desenhar um grande afresco do mundo musical do Setecento, que teve nos reinos de Nápoles, Bolonha e Roma – e na República (libertina) de Veneza – seus cenários privilegiados.

Petr Václav, que dedicara um longa documental a Josef Mysliveček (1737-1781), desenha sua poderosa narrativa ficcional sem nenhum academicismo. Constrói afresco do mundo operístico-lírico europeu, sem perder a dimensão íntima da vida do artista, que conheceu a glória e, depois o mais silencioso dos olvidos.

Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), 19 anos mais novo que o compositor tcheco, conheceu o “Divino Boemo” e com ele  manteve significativa correspondência. Mas ninguém pense que assistirá a uma ficção espetaculosa como a de Milos Forman (“Amadeus”, 1984).

O menino prodígio nascido em Salzburgo, na Áustria, conhecerá o tcheco e dialogará com ele em italiano (idioma do filme e, junto com o alemão, “esperanto” da ópera do século 18). Um italiano com forte sotaque germânico (e sem a histeria de Tim Hulce, o Mozart oscarizado). Ao apresentar trecho de uma de suas composições à família austríaca, “Il Boemo” saberá por que o menino Mozart encantava os que o cercavam. Mais tarde o divino Amadeus concluiria obra do maestro vítima de sífilis devastadora (a ponto de só aparecer em público, em seus anos derradeiros, com o rosto coberto por máscara).

O filme contextualizará seu tempo histórico ao mostrar a dependência dos artistas ao mecenato de reinos e principados. Mas não perderá sua dimensão íntima, incluindo cenas de sexo, seja em alcovas ou prostíbulos. O realizador tcheco dará atenção especial aos camarotes da nobreza, símbolos de poder e glória dos patrocinadores da arte operística e sinfônica.

Até as óperas encenadas em palcos reais serão vistas em planos aproximados. Para felicidade dos espectadores, que poderão desfrutar de figurinos de beleza arrebatadora. As imagens do fotógrafo espanhol Diego Romero valorizam as cores barrocas (o dourado e o vermelho, em especial) e dão filme calor único.

As mulheres que participam da vida de Il Boemo oferecem rico retrato da condição feminina no período. Há prima-donnas do Bel Canto, uma delas tão geniosa, que decidirá abandonar seu ofício para tornar-se “noiva de Cristo”. “Marido mais famoso não poderia encontrar”, ironizará o compositor, descontente com tal matrimônio, pois necessitava da diva para interpretar sua nova peça lírica.

Outra mulher importante na narrativa ama a música, toca piano e é muito culta – e parece ter sido o grande amor do artista. Casada com um macho tóxico, tornar-se-á a principal interlocutora de Mysliveček. A correspondência entre os dois é um dos esteios do filme (assim como as missivas de Mozart, também serviram de matéria-prima ao roteiro (do próprio Petr Václav).  A intelectual oprimida pelo marido possessivo recomendará ao amado Bohêmio, que se dedique ao estudo dos filósofos, em especial ao tratado sobre a música lírica de Diderot. E seguirá rumo à tragédia.

“Il Boemo” é, antes de tudo, um filme para melômanos. Sua trilha sonora expõe, com abundância, trechos das óperas, sinfonias e peças de câmara do artista tcheco, ao longo de seus céleres 140 minutos. O espectador poderá, portanto, inferir de moto próprio, se Josef Mysliveček é mesmo digno do culto que lhe devota seu conterrâneo Václav. Que, afinal lhe dedicou dois longas-metragens.

 

IL Boemo
República Tcheca e Itália, 2022, 140 minutos
Direção: Petr Václav
Elenco: Vojtech Dyk, Bárbara Ronchi, Elena Radonicich
Direção musical: Grupo Collegium 1704
Participação: os solistas Raffaela Milanesi, Emöke Barath, Simona Saturová e Philippe Jaroussky (disponivel no Spotify)
Regência orquestral: Maestro Václav Luks
Em cartaz: São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília,  Recife, Salvador, Maceió, Curitiba, Porto Alegre, Florianópolis e Campinas Prêmios e festivais: Seis “leões” tchecos, representante da República Tcheca no Oscar
Distribuição: Bonfim

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