Mostra SP premia cinema feminino, o doc “Samuel e a Luz” e a ficção baiana “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”

Foto: Vinicius Girnys e equipe do documentário “Samuel e a Luz” © Natali Hernandes

Por Maria do Rosário Caetano

Dois filmes brasileiros ganharam significativo destaque na premiação da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – o paulista “Samuel e a Luz”, de Vinícius Girnys, que conquistou o Prêmio Bandeira Paulista (melhor documentário), e o baiano “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”, de Haroldo Borges, que terá sua distribuição facilitada pelos prêmios Netflix e Paradiso. A poderosa operadora de streaming distribuirá o filme em 190 mercados internacionais. E o Paradiso ajudará, com recursos financeiros, no lançamento da produção baiana no circuito brasileiro.

Para completar o destaque dado a filmes que têm o Brasil como locação privilegiada, mais duas produções mereceram destaque: “Somos Guardiões”, que os estadunidenses Chelsea Green e Rob Grobman realizaram na Amazônia, em parceria com o diretor indígena Edivan Guajajara (eleito pelo Público o melhor documentário brasileiro), e “Da Cor e da Tinta”, da sino-americana Weimin Zhang (escolhido pelo Público como o melhor documentário estrangeiro).

No campo internacional propriamente dito, o vencedor do Troféu Bandeira Paulista de melhor ficção coube ao belga “Quando Derreter”, da realizadora Veerle Baetens.

O júri, composto com a italiana Enrica Fico Antonioni, a holandesa Mariëtte Rissenbeek, a brasileira Bárbara Paz, o guinense-bissau Welles Bungué e o irlandês Lenny Abrahamson, resolveu atribuir duas menções honrosas: uma ao filme mongol “Se Eu Pudesse Apenas Hibernar”, da cineasta Zoljargal Purevdash, e outra à atriz não-binaria Jaya, protagonista do filipino “Asog”, de Sean Devlin.

A premiação do documentário “Samuel e a Luz” foi certeira. O filme, vencedor do Festival de Guadalajara, que o habilitou a disputar uma vaga ao Oscar, vinha se destacando em eventos internacionais como o prestigiado Vision du Réel-Suíça, Hot Doc Toronto e Doc Fest Itália. Agora foi laureado em seu país de origem.

O estreante Vinicius Girnys ambienta sua narrativa ao longo de seis anos em um paraíso no litoral atlântico: a praia de Ponta Negra, na costa de Paraty. Nas bordas da Mata Atlântica, há um pequeno vilarejo de pescadores, sem luz elétrica e outras benfeitorias urbanas. Entre os moradores, está a família de Samuel. O menininho vive com dois irmãos, o pai pescador e a mãe dona de casa. Suas vidas seguem o ritmo da natureza. As crianças brincam soltas. À noite, as casas são iluminadas com grossas velas. Todos os moradores sonham com a chegada da luz elétrica. Enquanto isto, a pesca artesanal vai perdendo espaço para barcos de arrastão.

A instalação da ansiada iluminação artificial mudará o destino dos moradores. O turismo tornar-se-á a razão de ser da outrora paradisíaca Ponta Negra. Samuel, que acompanhamos dos três aos nove anos, sua irmã, que chega à adolescência, seu irmão, sua mãe e seu pai, que amava a pesca, passarão por significativas mudanças.

Em sintéticos 70 minutos, Vinicius Girnys, embora estreante, mostrará perfeito domínio de seu ofício. As imagens (colhidas por quatro fotógrafos, entre eles Pedro Cortese e o diretor) são belíssimas e potentes. A montagem tem ritmo envolvente (assina por Vinicius e Tom Laterza). Os diálogos, rarefeitos, são reveladores. E a paciência de um realizador jovem (vê-se aqui que, nem sempre, juventude rima com impaciência) se mostrou muito oportuna. O filme ganhou muito em seu longo processo de convivência com a família do encantador Samuelzinho, que desde pequenino sabia enumerar nomes de muitos peixes e as capitais de diversos (e desconhecidos) países do mundo.

Outro brasileiro premiado pela mostra – o baiano “Saudade Fez Morada Aqui Dentro” – vem chamando atenção por onde passa. No começo de sua trajetória, triunfou no Festival de Mar del Plata, repetindo feito notável – havia mais de 50 anos que o cinema brasileiro não ganhava o prêmio principal do evento argentino. O último laureado fôra “Macunaíma” (Joaquim Pedro de Andrade, 1969). No Festival do Rio, encerrado semanas atrás, a ficção de Haroldo venceu a mostra Novos Rumos. Agora, ganha dois prêmios (Netflix e Paradiso) que ajudarão na sua difusão internacional e em sua estreia nos cinemas brasileiros (ainda sem data definida).

Diretor Haroldo Borges e equipe do filme “Saudade fez Morada Aqui Dentro” © Natali Hernandes

“Saudade Fez Morada…” tem num adolescente, Bruno (Bruno Jefferson), seu protagonista. Ele fazia vista grossa para o preconceito gerado pela cultura machista que o cercava. Porém, uma doença degenerativa provocará gradativa perda de sua visão. Essa nova e difícil circunstância, justo no transcorrer de sua adolescência – registra a sinopse do filme – “obrigará Bruno a aprender, com as diferenças, a enxergar a vida com outros olhos”.

A outra produção apresentada na Mostra a acumular dois prêmios – fato raro, pois a oferta de troféus, nesse festival, é bem reduzida – foi “Somos Guardiões”, de Chelsea Greene, Rob Grobman e Edvan Guajajara (Brasil-EUA), que, além de escolhido como melhor documentário brasileiro pelo voto do Público, fez jus ao Prêmio Cultures of Resistence (atribuído pelo Creative Activism).

Este longa-metragem documental acompanha Marçal Guajajara, indígena-guardião da floresta, e a ativista Puyr Tembé em suas lutas pela defesa de seus territórios. Que se encontram sob ameaça de madeireiro e por grande proprietário de terras. Enfim, Marçal e Puyr lutam contra exploradores, que vivem ilegalmente do extrativismo das riquezas de terras indígenas. Os diretores lembram que “Somos Guardiões” trata de “questões que vão desde a ciência da floresta amazônica e seu papel fundamental na estabilidade climática global até os motores econômicos do desmatamento, entrelaçando política, história, economia, ciência e consciência”.

Chelsea Greene, Edivan Guajajara e Marçal Guajajara © Natali Hernandes

Para o público da Mostra, o melhor documentário internacional foi o sino-americano “Da Cor e da Tinta”, com significativa participação brasileira em sua construção temático-narrativa.

Como o personagem central do filme, o pintor Chang Dai-chien (1899-1983), viveu no Brasil (em Mogi das Cruzes) por 25 anos, a diretora Weimin Zhang fez questão de realizar parte de seu documentário por aqui. Contou com apoio e produção executiva do jornalista e pesquisador da Unicamp, Guilherme Gorgulho. Afinal, além de ter feito importantes reportagens jornalísticas sobre a passagem do artista pelo Brasil, Gorgulho prepara tese de doutorado (sobre ele), a ser defendida, em 2024, na Unicamp.

Ele explicou à Revista de CINEMA a razão de ser de sua investigação universitária: “minha tese trata do intercâmbio cultural e artístico entre o Brasil e a China proporcionado pela presença do Chang Dai-chien em São Paulo, entre as décadas de 1950 e 1970”. E esclarece fato controverso na trajetória do pintor chinês em Mogi das Cruzes: “a represa que destruiu o Jardim das Oito Virtudes, criado pacientemente por Chang Dai-chien, situa-se no rio Jundiaí e foi empreendida pelo DAEE (companhia de saneamento), no distrito mogiano de Taiaçupeba”.

Há que se registrar que a inundação da obra artístico-paisagística de Dai-chien aconteceu depois de sua morte, ocorrida em Taiwan. Ele contava 83 anos. “Meu interesse pelo artista chinês”, lembra Gorgulho, “aconteceu a partir de 1999, quando fiz minha primeira reportagem sobre ele e sobre sua apagada passagem pelo Brasil. Nada por aqui rememorava suas vivências brasileiras, enquanto seus quadros atingiam valores recordes no mercado de arte mundial”.

O filme, que une os EUA a Taiwan e ao Brasil, deixa nosso país muito mal na fita. Além de ter destruído o Jardim das Oito Virtudes (que vem sendo em parte reconstruído na China continental e na insular), duas de suas obras estavam depositadas, sem identificação, nos museus Rubem Berta (em Porto Alegre) e no de Olinda, em Pernambuco. Neste último, trata-se de obra do espólio do empresário e colecionador Assis Chateaubriand, criador do MASP. Curadores das duas instituições desconheciam o autor (e valor) das obras guardadas em suas áreas de reserva.

Flávio Botelho e equipe do filme “A Metade de Nós” © Natali Hernandes

A melhor ficção brasileira, segundo a escolha do Público, foi “A Metade de Nós”, do paulista Flávio Botelho. O filme, protagonizado por Denise Weinberg, Cacá Amaral e Kelner Macedo, tem a perda como seu ponto de partida. O suicídio do filho único, Felipe, deixa seus pais, Francisca e Carlos, desnorteados. Eles se entregam, enlutados, a experiências radicais. O pai muda-se para o apartamento do filho morto e mergulha em seu mundo, alheando-se de todo o restante. A mãe, tomada pela culpa, vive de uma obsessão – desvendar o enigma do suicídio de Felipe.

A melhor ficção internacional, para o Público, foi o italiano “La Chimera”, de Alice Rohrwacher, mais um exemplar do singular cinema da realizadora. Mas, dessa vez, Alice, que sempre procura trabalhar com a atriz e irmã Alba, exagerou na quantidade de temas e parecia não saber como fechar sua intrincada narrativa. A inquieta realizadora peninsular chama atenção pela temática central de sua quimera (gangue de ladrões de objetos arqueológicos, inclusive etruscos) e pelo trabalho do numeroso elenco, que une o britânico Josh 0’Connor, a brasileira Carol Duarte e os italianos Isabella Rosselini, Vicenzo Nemolato, Giuliano Mantovani e Alba Rohwacher. Mas seus filmes anteriores (“As Maravilhas” e “Lazzaro Felice” ) eram bem mais cativantes.

O vencedor do júri oficial e do Troféu Bandeira Paulista na categoria ficção estrangeira – “Quando Derreter”, da diretora belga Veerle Baetens – mostra (e reafirma) a força do cinema feminino em competições internacionais e nacionais. Em sua estreia na direção, ela, que é também atriz, cantora e roteirista, adapta o romance “Her Smelt”, de Lize Spit, para contar a história de Eva. A protagonista retorna à pequena cidade onde cresceu, carregando um bloco de gelo no porta-malas do carro. Depois de verão sufocante, em que tudo saíra do controle, ela viverá o auge de inverno, durante o qual decidirá confrontar o passado e enfrentar seus algozes.

No terreno da Crítica, o vencedor como melhor filme brasileiro foi “O Dia em que te Conheci”, do mineiro (de Contagem) André Novais Oliveira. Trata-se de bem-humorada história de (futuro) amor entre Zeca, um bibliotecário de escola municipal com problemas de excesso de sono (Renato Novaes) e Luísa (Grace Passô), colega na instituição de ensino. O filme, de enxutos 71 minutos, foi escolhido entre a produção brasileira de diretores jovens e/ou veteranos.

Diretor André Novais de Oliveira © Natali Hernandes

Já o Prêmio Abraccine (da Associação Brasileira de Críticos de Cinema) elegeu “Sem Coração”, de Nara Normande e Tião. Nesse caso, o recorte restringiu-se a filmes de realizadoras estreantes. Caso da pernambucana Nara, diretora do curta de animação de mesmo nome, que colecionou dezenas de prêmios nacionais e internacionais. Em parceria com o também pernambucano Tião, ela recriou vivências autobiográficas de amor juvenil e homoafetivo, agora com atores (não mais com as diversas e fascinantes técnicas do cinema de animação).

O eleito internacional da Crítica foi “Afire”, de Christian Petzhold. O delicioso filme germânico (no original “Roter Himmel – Céu Vermelho”) estreia nessa quinta-feira, 2 de novembro, nos cinemas brasileiros. E o faz, incompreensivelmente, com seu nome em inglês (“Afire”, Em Chamas).

Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Berlim, “Roter Himmel” se insinua como uma comédia homoafetiva, mas tomará rumos surpreendentes. Dois jovens, um rechonchudo e branquíssimo escritor (Tomas Schubert) e um fotógrafo (Langston Uibel), de origem afro-germânica, vão usufruir dias de descanso numa casa em meio à floresta, próximo ao Mar Báltico. Descanso não é bem o termo, pois o encucado escritor necessita terminar o livro para discuti-lo com seu editor. O relaxado fotógrafo deverá preparar portfólio com imagens da região para submeter à aprovação de uma escola de arte. Além de ter o carro quebrado longe do novo pouso, a dupla será surpreendida pela presença de outra pessoa no local, a “faz-tudo” interpretada pela atriz Paula Beer (de “Em Trânsito” e “Undine”).

Com humor, sutileza, ótimos diálogos e história cheia de surpresas, Petzhold fará sua despretensiosa (apenas na aparência) reflexão sobre as mudanças climáticas (a Europa com suas florestas em chamas) e o amadurecimento literário (e emocional) de um escritor jovem, estressado e pretensioso.

Claro que havia filmes bem melhores que “Afire” na densa competição da Mostra SP. Basta citar o turco “Ervas Secas”, de Nuri Bilge Ceylan, e o finlandês “Folhas Secas”, de Aki Kaurismaki. Ou mais arriscados (caso do romeno “Não Espere Muito do Fim do Mundo”, de Radu Jude, e do chileno “Los Colonos”, de Felipe Gálvez Haberle). Com placar bem divido, venceu a aposta solar (e ardida em fogo) do alemão Petzhold.

O Coletivo de Diretoras de Arte do Brasil, que promoveu seminário na Mostra SP sobre seu ofício, laureou “Vale do Exílio”, da canadense de origem iraniana Anna Far, com o Prêmio Brada (de melhor direção de arte).

A repescagem da Mostra paulistana prossegue até a quarta-feira, 8 de novembro, no CineSesc. Haverá sessões também no Cine Bijou-Satyros. E itinerância por várias unidades do SESC pelo interior e litoral de São Paulo.

Confira os vencedores:

. “Samuel e a Luz”, de Vinícius Girnys (Brasil-França) – melhor documentário – Prêmio Bandeira Paulista
. “Quando Derreter”, de Veerle Baetens (Bélgica-Holanda) – melhor ficção – Prêmio Bandeira Paulista
. “Se Eu Pudesse Apenas Hibernar”, de Zoljargal Purevdash (Mongólia) – menção honrosa do júri oficial
. “Asog”, de Seán Devkin (Filipinas) – menção honrosa para a atriz não-binária Jaya
. “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”, de Haroldo Borges (Bahia) – Prêmio Netflix, Prêmio Paradiso
. “Somos Guardiões”, de Edivan Guajajara, Chelsea Greene e Rob Grobman (Brasil-EUA) – melhor documentário brasileiro pelo voto do Público e Prêmio Cultures of Resistence (atribuído pelo Creative Activism)
. “A Metade de Nós”, de Flávio Botelho (São Paulo) – melhor ficção brasileira pelo voto do Público
. “La Chimera”, de Alice Rohrwacher – melhor ficção internacional pelo voto do Público
. “Da Cor e da Tinta”, de Weimin Zhang (Taiwan, EUA, Brasil) – melhor documentário internacional pelo voto do Público
. “O Dia que te Conheci”, de André Novais Oliveira (Minas Gerais) – Prêmio da Crítica de melhor filme brasileiro
. “Afire”, de Christian Petzhold (Alemanha) – Prêmio da Crítica de melhor filme internacional
. “Sem Coração”, de Nara Normande e Tião (Pernambuco) – Prêmio Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) – recorte: para filme de realizadoras brasileiras estreantes.
. “Vale do Exílio”, de Anna Far (Canadá-Libano) – Prêmio Brada de melhor direção de arte atribuído pelo Coletivo de Diretoras de Arte do Brasil

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