Aruanda premia “Levante” paulista, o baiano “Saudade Fez Morada Aqui Dentro” e “Pulmão de Pedra” paraibano

Foto: Mano de Carvalho ©myimagem

Por Maria do Rosário Caetano, de João Pessoa-PB

O júri oficial do Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro, formado com a atriz Soia Lira e os cineastas Beto Brant e Rafael Conde, escolheu o adrenalinado “Levante”, de Lillah Halla, como o melhor filme da competição nacional. O júri popular preferiu o longa documental “Peréio, Eu te Odeio”, de Allan Sieber e Tasso Dourado.

Na mostra Sob o Céu Nordestino, dedicada a filmes dos nove Estados da região, o escolhido foi o baiano “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”, de Haroldo Borges. O júri, composto pela atriz Norma Góes, a professora californiana Kristal Bivona e a jornalista Simone Zuccolotto, atribuiu cinco troféus Aruanda ao fascinante longa protagonizado por garoto de Poço de Fora, cidadezinha situada no sertão baiano.

Bruno Jefferson, premiado como melhor ator, interpreta o adolescente Bruno. Ele vive, em estado de agonia, o drama da perda precoce da visão, diagnosticada por médica da cidade grande. Além dele, foram laureados a atriz “circense”, como gosta de se autodefinir a própria Wilma Macedo, e o menino Rony (Ronnaldy Gomes). Estes dois como coadjuvantes.

Carregando os próprios prenomes, os três laureados interpretam mãe e dois filhos poço-fundenses. Eles são novatos em seus ofícios e foram preparados por Fátima Toledo, de quem Haroldo Borges é ex-aluno e admirador juramentado. Trabalhou com ela em suas duas ficções (“Filho de Boi” e “Saudade…”). O elétrico cineasta baiano chama a parceira de Toledão.

Só Wilma, que participou do documentário “Jonas e o Circo sem Lona“ (Paula Gomes, 2015) – fotografado e produzido por Haroldo Borges e coletivo Plano 3 – tivera contato prévio com o cinema.

“Sou circense”, reafirmou ela no debate de “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”. Para, em seguida, detalhar: “como nosso circo foi cenário do filme da Plano 3 e meu filho Jonas, o protagonista, acabei envolvida no projeto. Tanto que Haroldo me convidou para ajudar nos bastidores de sua estreia na ficção, ‘Filho de Boi’. E, no filme seguinte, me convidou para o papel de Wilma, tão significativo nesse ‘Saudade’“.

Wilma conta que o filho Jonas viu o novo filme em São Paulo e ligou de pronto para “elogiar meu desempenho, que qualificou de muito bom”. A atriz-circense, ou “circense-atriz” (como prefere) só pôde ver “Saudade…” no Fest Aruanda. No palco do Cinépolis Manaíra, com o troféu na mão, ela foi econômica e espirituosa em suas falas de agradecimento. Até brincou: “estão me considerando uma atriz de verdade!”. E, para fazer troça com a hiperatividade de Haroldo Borges, revelou: “Já estão dizendo que ele anda mais circense que eu”. O baiano, com seu inseparável chapéu branco, caiu na gargalhada.

Para provar sua força estética, ética e temática, “Saudade…” segue em feliz trajetória de reconhecimento pelos mais diversificados festivais. No Aruanda, conquistou, também, o Prêmio da Crítica, atribuído pela Abraccine, representada por Neusa Barbosa, Bertrand Lira e Fabrício Duque.

O encantamento com o filme de Haroldo Borges começou em Mar del Plata, na Argentina, prosseguiu no Festival do Rio (vencedor da mostra Rumos), na Mostra Internacional de São Paulo (Prêmios Netflix e Paradiso) e em São Miguel do Gostoso (melhor filme pela Crítica).

No campo do curta-metragem, a Paraíba passou o rodo. O melhor filme brasileiro foi o poderoso “Pulmão de Pedra”, de Torquato Joel. E o melhor curta regional, “Céu”, de Valtyennya Pires. Torquato viu, ainda, um discípulo de suas oficinas itinerantes (Fernando Abreu, diretor de “Alvará”), conquistar os troféus Aruanda de melhor direção, roteiro, montagem e trilha sonora.

E não houve nenhum protecionismo (ou bairrismo) na premiação dos paraibanos.

“Pulmão de Pedra” resulta de potente soma de rigor estético (Torquato Joel é artista dos mais inspirados), da excelente direção de fotografia (de Rodolpho Barros, melhor a cada dia que passa) e tema dos mais importantes (a doença do pulmão de ferro, causada pela lavra em minas). Para tornar tudo ainda mais apaixonante, Torquato e Rodolfo descobriram e revelaram Joãozinho, ator natural e iluminado, lavrador metido com o garimpo da cassiterita. Verdadeira força da natureza.

Torquato conta que realizava seu segundo longa-metragem ficcional (”Corpo da Paz”, em fase de finalização), quando resolveu filmar determinada sequência em mina de Nova Palmeira, pequeno município paraibano. Foi aí que conheceu Joãozinho, dono de temperamento exuberante, poeta popular de verve certeira e trabalhador incansável. Decidiu, então, documentar sua faina diária, com a picareta em punho e em busca frenética pela cassiterita (ou mica). O resultado vem mobilizando sensibilidades e muitos (e merecidos) prêmios.

Além de dirigir seus próprios filmes, Torquato vem ministrando dezenas de oficinas (ou Residências) em cidades e povoados paraibanos. Em um deles, a minúscula Serra da Raiz, teve como aluno Fernando Abreu, dedicado ao teatro de rua, que engendrou o roteiro de “Alvará”. E o fez a partir de história tocante, cuja força-motriz é o aprisionamento (de pássaros e de homens). Uma mãe vive com filho-menino, que herdou do pai o costume de engaiolar pássaros.

O garoto aguarda o regresso do distante genitor-migrante, operário da construção civil no Sudeste. O roteiro, simples na aparência, chama nossa atenção por apostar em solução-surpresa. Muito merecidos os troféus do estreante de Serra da Raiz. Em especial, pelo engenhoso roteiro.

“Céu”, o documentário de Valtyennya Pires, melhor curta nordestino, é um documentário sobre louceiras da Serra do Talhado, o quilombo onde Linduarte Noronha filmou, há 63 anos, o clássico “Aruanda”. E Maria do Céu, líder das ceramistas talhadenses, morreu cedo, queimada pelo companheiro. Um ato brutal de feminicídio. As ceramistas de Santa Luzia, no Talhado, relembram o quanto Céu lutou pela valorização e direitos das artesãs dedicadas à transformação da argila em caprichadas peças utilitárias.

Dois longas-metragens femininos obtiveram imenso destaque na premiação brasileira e nordestina. Ambos são fruto de produção internacional. O paulistano “Levante” uniu produtores brasileiros, franceses e uruguaios. O pernambucano “Sem Coração” somou a Cinemascópio, de Kleber Mendonça e Emile Lesclaux, a produtores franceses e italianos.

Nara, ao agradecer os seis prêmios conquistados por “Sem Coração”, incluindo direção (dela, em parceria com Tião), lamentou que houvesse poucos filmes dirigidos ou co-dirigidos por mulheres. E sugeriu que a curadoria aruandense passe a colocar realizadoras e realizadores em proporção igualitária.

Lillah Halla se fez representar no Festival Aruanda pela mineira Zora Santos, integrante de seu elenco. A atriz deixou o palco do Cinépolis Manaíra com seis troféus e se viu obrigada a batalhar por uma caixa de papelão de forma que pudesse levá-los às destinatárias e destinatários finais. Caso da protagonista Ayomi Domenica, Troféu Aruanda de melhor atriz.

Ayomi interpreta uma jovem de 17 anos, que joga vôlei em time da periferia paulistana. Seu talento no esporte chama atenção de uma “olheira”. Mas a atleta se descobre grávida justo nesse momento definidor de sua vida (próxima de final de campeonato e com convite para atuar em equipe profissional).

A garota decide fazer um aborto. Conta com a ajuda das amigas e, depois, do pai (Rômulo Braga). Mas terá que enfrentar verdadeira via-crucis. O filme, que acaba de ser lançado na França, traz pulsão eletrizante, cores fortes e ritmo denso e tenso. Deve causar alvoroço quando chegar aos cinemas brasileiros. E provocar urticária em conservadores e seguidores da ex-ministra (hoje senadora) Damares “Goiabeira” Alves.

“Sem Coração”, de Nara e Tião, mostra um grupo de meninas e meninos que cresce numa praia alagoana. Uma das garotas, conhecida como Sem Coração (por causa de válvula implantada nesse órgão vital) vive da pesca. Interpretada por Eduarda Samara, ela cruza com a tímida Tamara (Maya Vicq), alterego de Nara Normande, adolescente de classe média, que, em breve, deixará sua região natal para estudar na UnB (Universidade de Brasília).

Os adolescentes vivem suas primeiras experiências sexuais. Um deles descobre sua homoafetividade e será perseguido por tal opção. Tamara também descobre sua preferência por meninas. E um dos garotos, Galego (Alaylson Emanuel), que passou pela Febem e mantém relação dificílima com o pai, viverá de perto o mundo da criminalidade.

A dupla de cineastas dirige o filme com sutileza e afeto, somando momentos realistas e incursões oníricas. Ambientado na década de 1990 (nos tempos em que PC Farias e Susana Marcolino foram assassinados em praia alagoana), “Sem Coração” se constrói como filme sensorial e ganha cores e vida com as belas imagens de sua diretora de fotografia, Evgenia Alexandrova.

O longa pernambucano-alagoano traz sutil parentesco com “O Som ao Redor”, mesmo que o filme de Kleber Mendonça, 55 anos, seja bem mais politizado que o de Nara, de 37. Homoafetiva assumida e militante, daquelas que se definem como “sapatona”, a cineasta está mais interessada em um cinema dos afetos e identidades. Tião, de 39 anos, é mais ligado em metáforas políticas. Basta lembrar do irreverente “Animal Político” (2016), protagonizado por uma vaca. Sim, um ser bovino.

Outro filme que recebeu muitos, e significativos, troféus Aruanda foi “Saudosa Maloca”, de Pedro Serrano (quatro no total, incluindo melhor direção e ator). O cineasta, premiado também pela trilha sonora (parceria com Nammur e Alvarez), ironizou os que sentiram falta de hits de Adoniran Barbosa em sua narrativa construída, intencionalmente, com personagens inventados pelo compositor-cronista da Pauliceia ítalo-brasileira.

O júri, além de destacar a trilha e direção de arte de “Saudosa Maloca”, laureou o titã Paulo Miklos como melhor protagonista. Em participação à distância (a banda Titãs está em excursão pelo país) o músico-ator despejou simpatia e afeto pelo reconhecimento. E até brincou com o cineasta Beto Brant, integrante do júri, que apostou nele como um possível ator. Isto, 21 anos atrás, quando o diretor de “O Invasor” o escalou justo para o papel de Anísio, um marginal vindo da periferia para se intrometer na casa de rica patricinha paulistana (a louríssima Mariana Ximenes).

O júri não devotou grande apreço aos documentários. “Othelo, o Grande”, de Lucas H. Rossi, e “Peréio, Eu te Odeio”, de Sieber e Dourado, quase passaram batido. Vale lembrar que a ousada e inquieta saga do ator de chanchadas, do Cinema Novo, de Welles e Herzog era citada como um dos favoritos a importantes prêmios da décima-oitava edição do festival paraibano.

A cerimônia dos Troféus Aruanda foi marcada pela exibição (na presença do compositor, de 88 anos) do documentário alemão “Vandré no Exílio” (TV da Baviera, 1973) e pelo longa documental “Black Rio! Black Power!”, de Emílio Domingos, que contou com a carismática presença de Dom Filó. O artista da black music e militante pela autoestima dos pretos brasileiros foi aplaudido calorosamente por público que fez questão de festejá-lo com abraços efusivos.

Confira os premiados:

MOSTRA DE LONGAS BRASILEIROS

. “Levante”, de Lillah Halla (SP) – melhor filme, atriz (Ayomi Domenica), atriz coadjuvante (Loro Bardot), roteiro (Maria Elena Morán e Lillah Halla), som (Waldir Xavier), figurino (Nicole Dravieux e Nina Maria)

. “Saudosa Maloca”, de Pedro Serrano (SP) – melhor direção, ator (Paulo Miklos), trilha sonora (Pedro Serrano, André Nammur e Mariano Alvarez), direção de arte (Claudia Terçarolli)

. “Peréio, Eu te Odeio”, de Allan Sieber e Tasso Dourado (RJ) – melhor filme pelo Júri Popular.

. “Ana”, de Marcus Faustini (RJ): Prêmio Especial do Júri e melhor ator coadjuvante (Gustavo Luz)

. “Othelo, o Grande”, de Lucas H. Rossi (RJ) – melhor montagem (Willem Dias e Lucas H. Rossi) e menção-homenagem (in memoriam) a Grande Otelo

. “Citrotoxic”, de Júlia Zakia (SP) – melhor fotografia (Julia Zakia e Dafb)

MOSTRA DE CURTAS-METRAGENS (Brasil)

. “Pulmão de Pedra”, de Torquato Joel (PB) – melhor curta pelo júri oficial, melhor curta pelo Público, ator (Joãozinho), fotografia (Rodolpho de Barros), som (Bruno Alves e Ester Rosendo)

. “Vão das Almas”, de Edileuza Penha de Souza e Santiago Dellape (DF): Prêmio Especial do Júri

. “O Presente”, de Úrsula Marini (RJ) – melhor atriz (Helena Varvaki)

. “Feira da Ladra”, de Diego Migliorini (SP)- melhor figurino (Anita Blumenschein), menção honrosa para a atriz Vera Valdez

. “O Brilho Cega”, de Carlos Mosca (PB) – melhor direção de arte (Carlos Mosca)

MOSTRA Sob o Céu Nordestino

Longa-metragem:

. “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”, de Haroldo Borges (Bahia): melhor filme, ator (Bruno Jefferson), atriz coadjuvante (Wilma Macedo), ator coadjuvante (Ronnaldy Gomes), roteiro (Haroldo Borges e Paula Gomes)

. “Sem Coração”, de Nara Normande e Tião (PE): melhor direção, fotografia (Evgenia Alexandrova), trilha sonora (Tratenwald), direção de arte (Thales Junqueira), figurino (Preta Marques), som (Lucas Caminha, Riccardo Spagnol e Gianluca Gasparrini).

. “Memórias da Chuva”, de Wolney Oliveira (CE): Júri Popular, melhor montagem (Tiago Therrien e Wolney Oliveira)

. “Cervejas no Escuro”, de Tiago A. Neves (PB) – melhor atriz (Edna Maria)

Curta-metragem:

. “Céu”, de Valtyennya Pires (PB): melhor filme, roteiro (Valtyennya Pires), montagem (Gabriel Heitor Alves), Prêmio da Crítica (Abraccine).

. “Abrição de Porta”, de Jaime Guimarães (PB) – melhor direção, figurino (Jaime Guimarães)

. “O Orgulho Não é Junino”, de Dimas Carvalho (PB) – melhor atriz (Agata Gabriella), ator (Alex Castro, o Xuxa), fotografia (Óscar Araújo), trilha (Dimas Carvalho), som (Jonas Tadeu)

. “Pantera dos Olhos Dormentes”, de Cristall Hannah e Ingsson Vasconcelos (PB): Júri Popular, melhor direção de arte (Cristall & Ingsson)

MOSTRA UNIVERSITÁRIA E INDEPENDENTE

TV Universitária:

Melhor documentário: O Marco do Cariri, de Niutildes Batista Pereira
Melhor reportagem: Licenciatura em Física – Caraúbas, de Passos Júnior
Melhor programa de TV: Singular, de Charlotte Cruz, Dinorá Melo e João Paulo Magalhães
TCC: Auto dos Orixás, de Cleyton Ferrer
Menção Honrosa: Parahyba Vanguarda, de Matheus Melo (pela relevância do tema) e Negro Espírito, de Andryelle Araújo (pela qualidade técnica)
Caleidoscópio universitário: Afro da pele, de Andrews Lucena e Will Rocha — Menção Honrosa: Arlinda, de Jonny Herbert, pela qualidade técnica e importância do tema

MOSTRA LUSÓFONA

Melhor Filme: Rodrigo Pedras [Cliché]
Melhor Diretor: Diogo Bento [Esqueci-me que Tinha Medo] e trilha sonora: Rodrigo Bórgia e Ivan Bértolo [Esqueci-me que Tinha Medo]
Melhor Roteiro: Kelton Smith [Strawberry Shake] e melhor ator: Ursel Tilk [Strawberry Shake]
Melhor Fotografia: Rodrigo Pedras [Filhas da Pátria) e Prêmio Especial: Catarina Almeida [Filhas da Pátria)
Melhor Atriz: Isabél Zuaa [Rumo ao Nada]

Laboratório Aruanda Energisa

. “Bença”, de Vanessa Passos
. “Do Outro Lado da Parta”, de Aleksander Aragão

Menção Honrosa para:

. ‘Rô’, de Rodrigo Vaz
. ‘Comadrio’, de Rayssa Medeiros

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