“Sociedade da Neve”, que disputa o Globo de Ouro e indicação ao Oscar, narra “milagre dos Andes” sem nenhum sensacionalismo

Por Maria do Rosário Caetano

Tragédia ou milagre? Qual é a definição mais precisa para dar conta do que se passou na Cordilheira dos Andes, ao longo de 72 dias iniciados em 13 de outubro de 1972, quando acidente partiu ao meio avião da Força Aérea Uruguaia, matou 18 passageiros, e deixou, nas condições mais adversas, outros 27?

A resposta está no filme “A Sociedade da Neve”, de J.A. Bayona, representante da Espanha na busca de vaga ao Oscar internacional. E finalista ao Globo de Ouro, na mesma categoria. O filme, que parecia ter poucas chances no começo da corrida pela estatueta de Hollywood, só vem crescendo e aparecendo.

Quando a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles divulgou, no último 21 de dezembro, as listas de pré-finalistas, “A Sociedade da Neve” estava presente entre os 15 escolhidos e ainda conquistou vaga em mais três categorias (trilha sonora, efeitos visuais e cabelo-maquiagem). Especialistas têm o filme espanhol, produzido em parceria com a poderosa Netflix, como um dos favoritos a permanecer na lista de apenas cinco produções internacionais, a ser anunciada dia 23 de janeiro.

Visto com ligeireza, o longa-metragem de Bayona, catalão de 43 anos, pode ser classificado como um ‘disaster movie’. Visto com a devida atenção, ele se transformará em apaixonante drama de fundo filosófico-existencial, já que discute questões cruciais ao homem, desde sua origem. A principal delas: para garantir a sobrevivência um ser humano poderá alimentar-se do corpo (da carne) de seu semelhante?

Bayona realiza, no campo da ficção, um filme que se equipara, em grandeza, ao longa documental “A Sociedade da Neve”, mesmo título portanto, realizado pelo uruguaio Gonzalo Arijón, e laureado com o prêmio máximo do IDFA (Festival Internacional de Documentários de Amsterdã 2007), na Holanda. E, infinitamente, melhor que as ficções que o antecederam: “Os Sobreviventes dos Andes”, de René Cardona, e “Vivos!”, de Frank Marshall.

A ficção espanhola começa com jovens bem-nascidos, que brilham nas universidades e no time de rúgbi (o Old Christian’s Club) do país platino. Eles paqueram, se reúnem para beber e jogar conversa fora em mesas de bar. E para falar da viagem que os levará a Santiago do Chile, onde disputarão partida amistosa.

Como o ano é o de 1972, o país andino tem como governante o socialista Salvador Allende. O filme de Bayona nos lembra desse tempo histórico, mas os jovens uruguaios não estão preocupados com política. Vão à missa numa igreja muito ampla e bonita e repassam bilhete, de mão em mão, fileira a fileira. Na cabeça, os belos planos de viagem. No corpo, toda a adrenalina da juventude. Eles tinham entre 19 e 24 anos.

Depois do embarque, os jogadores, familiares e amigos brincam no avião, tiram sarro uns dos outros, até que vem o momento sinistro. Sobre a Cordilheira dos Andes, a visibilidade é péssima, o avião se choca violentamente com a montanha e divide-se ao meio. Na parte da frente estarão os sobreviventes. E alguns mortos. Não se encontra o serviço de rádio da aeronave, nem a parte traseira. A comida vai rareando. A água é retirada de blocos de neve.

Quando a fome começa a enlouquecer os sobreviventes, muitos com uma cruz cristã pendurada no pescoço e os corpos já emagrecidos por privações (e doenças), surge a questão crucial dessa narrativa que nunca recorre ao sensacionalismo: as proteínas necessárias poderão ser retiradas dos corpos dos companheiros mortos e congelados pela neve? Quem os cortará em pequeninos nacos? Quem, realmente, se dispõe a nutrir-se de tal alimento?

O filme mostra o acidente da aeronave com recursos de ponta e nos aflige. A tecnologia marcará presença, também, nas alucinantes sequências em que os sobreviventes permanecerão soterrados pela força das avalanches. Três dias sob grossa camada de neve, com ar rarefeito. Como pode o ser humano resistir a tantos desafios?

“A Sociedade da Neve”, já a partir do título, nos mostrará que não está em busca de sensações proporcionadas por filmes de terror ou thrillers que buscam, sempre e cada vez mais, aumentar a overdose de suspense.

O que Pablo Vierci – hoje com 73 anos, autor do livro que deu origem ao filme (publicado, no Brasil, pela Companhia das Letras) – quis foi mostrar que os sobreviventes se organizaram, coletivamente, para buscar saídas. Mesmo sabendo (por um pequeno rádio) que as autoridades haviam interrompido as buscas. Afinal, não acreditavam que houvesse alguém vivo depois de acidente tão brutal e de tantos dias sem nenhuma pista.

Vierci foi colega de escola (ou vizinho) de muitos dos que embarcaram no Vôo 571. O filme, ao contrário das ficções que o antecederam, preocupa-se também com os 29 outros passageiros (incluindo a tripulação), que morreram quando o avião acidentou-se nas montanhas (entre Argentina e Chile). Ou depois de dias e semanas (muitas semanas) de terríveis privações.

Outro mérito do filme é seu elenco. Há argentinos e uruguaios nos papeis masculinos (em maioria) e femininos (quase figurantes). Para nós, são rostos totalmente desconhecidos. Não encontraremos astros como Ricardo Darín, César Troncoso, Alfredo Castro ou Javier Bardem entre os personagens, mesmo que secundários. Mas, sim, os jovens jogadores e seus amigos e mães desorientados com tantas adversidades acumuladas. E com o interminável passar dos dias. Afinal, foram mais de dois meses de privações.

Quando as mais de duas horas de eletrizante narrativa chegarem ao fim, o espectador poderá responder à questão inicialmente posta pelo filme – o que se viu (e se viveu) naquele trecho da Cordilheira dos Andes, 51 anos atrás, foi uma tragédia ou um milagre?

 

A Sociedade da Neve
Espanha, 135 min., 2023
Ficção de Juan Antonio Bayona. Baseado no livro de mesmo nome, de Pablo Vierci, que entrevistou os 16 sobreviventes
Idioma: espanhol
Elenco: Enzo Vogrincic (Numa Turcatti), Matías Recalt (Roberto Canessa), Carlos Paes Rodríguez (Carlos Páez Vilaró), Agustín Pardella (Nando Parrado, Rafael Federman ( Eduardo Strauch), Esteban Kukuriczka (Adolfo Strauch), Estevban Bigliardi (Javier Methol), Alfonsina Carrocio (Susana Parrado), Paula Baldini (Liliana Methol), entre outros
Roteiro: Bernat Vilaplana, J.A. Bayona, Jaime Marques e Nicolas Casariego
Fotografia: Pedro Luque
Trilha sonora: Michael Giacchino
Produção: Misión de Audaces, El Arriero Films e Netflix

 

FILMOGRAFIA DE BAYONA
Barcelona, Espanha, 09/05/1975

2007 – “O Orfanato”
2012 – “O Impossível”
2016 – “Sete Minutos Depois da Meia-Noite”
2018 – “Jurassic World: Reino Ameaçado”
2023 – “A Sociedade da Neve”

Séries:

2014 – “Penny Dreadful”  (Temporada 1)
2022 – “O Senhor dos Anéis; Os Anéis do Poder” – Temporada 1 (episódios 1 e 2)

 

OUTROS FILMES SOBRE O ACIDENTE NOS ANDES

. “Os Sobreviventes dos Andes” (México, 1976, 85 min.), ficção de René Cardona. Baseado no livro “Survive!”, de Clay Blair Jr. Com Hugo Stiglitz, Norma Lazareno, Luz Maria Aguilar, Fernando Larrañaga, Pablo Ferrel, Leonardo Daniel, Sara Guasch. História do time urguaio (o Old Christian’s Club) que ia, de avião, para Santiago do Chile, onde disputaria partida amistosa de rúgbi. Com a queda do avião os sobreviventes lutam para viver, enquanto aguardam socorro. Idioma: espanhol.

. “Vivos!” (Alive) – (EUA, 1993, 126 min.) – Ficção de Frank Marsahall. Baseado no livro “Alive: The story of the Andes”, de Paul Read. O filme detalha o acidente aéreo que envolveu equipe uruguaia de rugby durante o vôo 571 da Força Aérea uruguaia nas montanhas dos Andes, em 13 de outubro de 1972. Com Ethan Hawke, Vicent Spano, Josh Hamilton, Bruce Ramsay, John Haymes Newton, Ileana Douglas, Dannu Nucci, narração de John Malkovich. Um sobrevivente, Nando Parrado (interpretado por Ethan Hawke) atuou como consultor técnico do filme. Idioma: inglês.

. “A Sociedade da Neve” (Uruguai, 113 min., 2007). Documentário de Gonzalo Arijón (direção e roteiro). O filme, premiado no Festival de Amsterdã, Meca do cinema documental, traz depoimentos dos sobreviventes do avião que caiu nos Andes em 1972. Os 16 sobreviventes contam como se mantiveram durante os 72 dias perdidos nas montanha geladas, precisando se alimentar dos corpos mortos e suportando avalanches até a chegada do resgate. Idioma: espanhol.

 

A TRAGÉDIA EM DADOS

*** Passageiros e sobreviventes: 45 uruguaios embarcaram no avião das Força Aérea Uruguaia, incluindo os jogadores de rugby, familiares e amigos, o técnico-treinador, um médico, um enfermeiro, o piloto, o copiloto e três comissários de bordo. 12 morreram na hora do acidente. Cinco morreriam no dia seguinte e um, após uma semana. Os outros (27 no total) lutaram pela vida, mas só 16 resistiram às doenças, ao frio (temperaturas de até 30 graus negativos) e às avalanches.

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