“Ferrari” soma melodrama de “mamma italiana” encarnada em Penélope Cruz ao cinema viril de Michael Mann

Por Maria do Rosário Caetano

O já octogenário Michael Mann consumiu mais de 15 anos de sua vida tentando viabilizar a cinebiografia de Enzo Ferrari, o “engenheiro” dos carros mais cobiçados do mundo. Ele sabia que não seria fácil.

O diretor de “Colateral” e “O Último dos Moicanos” iniciou sua saga automobilístico-cinematográfica em parceria com Sidney Pollack (1934-2008), mas só colocou sua “Ferrari” nas pistas em setembro de 2023, no Festival de Veneza. Teve recepção comedida e não ganhou nenhum prêmio.

O filme – que chega nessa quinta-feira, 22 de fevereiro, aos cinemas – custou mais de 100 milhões de dólares e foi lançado nos EUA em tempo de concorrer ao Oscar. Mas não conseguiu nenhuma indicação. Até no Bafta, versão europeia do prêmio norte-americano, cavou apenas uma vaga (e de consolação: melhor som). Não que o filme tenha sido desprezado.

Os admiradores do cinema viril de Mann detectaram muitas qualidades em seu novo longa-metragem. Esperavam ao menos uma indicação da academia hollywoodiana para a espanhola Penélope Cruz (como atriz coadjuvante). Afinal, sua performance como a esposa amargurada de Enzo Ferrari é realmente notável.

Parceira do empresário na implantação da montadora dos automóveis mais cobiçados da Itália (e quiçá do mundo), Laura desempenhou papel dos mais relevantes na vida do marido. Não foi – a se julgar pelo que é mostrado no filme, recriação do livro “The Man an the Machine” – uma apagada dona de casa.

A atriz, uma das preferidas de Almodóvar, apresenta-se como verdadeira “Mamma Módena”, similar ibérico da “Mamma Roma”, de Anna Magnani (e de Pasolini). Penélope deu tudo de si ao compor a esposa controladora, mas infeliz, que vigia os gastos da escuderia, e sofre a perda precoce do filho Dino.

O rapaz morreu de doença degenerativa aos 23 anos. Filho único do casal, a dor será imensa para a loba de Módena. E também para o marido. Mas ele terá o direito peninsular (e histórico) de usufruir de outras regalias sexuais e parentais. Laura, não. Mesmo peitando a sogra vigilante, ou, com um revólver, o marido que não cumpre acertos conjugais, ela terá que conviver com muitas perdas e dores.

Praticamente sem maquiagem, a protagonista do “Volver” almodovariano representa bem a mulher italiana da década de 1950, nascida para ser mãe e tolerar as infidelidades do marido. Sem o filho e sem o cônjuge, que optou pela filial, ela terá que buscar saídas, abraçada a seu rancor.

Além de Penélope, o filme conta com outro ator latino em papel de relativo destaque, o brasileiro Gabriel Leone. Lindo e sensual na pele do jovem (e intrépido) piloto espanhol Alfonso de Portago, ele já entra em cena ganhando closes hollywoodianos. Mas seu papel é de coadjuvante. Será protagonista na saga de outro piloto, o brasileiro Ayrton Senna (1960-1994), em produção seriada para a Netflix.

O protagonista absoluto de “Ferrari” é o estadunidense Adam Driver, de “Infiltrado na Klan” (Spike Lee, 2018). Com os cabelos prateados – beirava os 60 anos em 1957, ano-chave da narrativa – e corpo esguio, Driver (que sucedeu Christian Bale e, depois, Hugh Jackman, escalados em fases anteriores do projeto) faz o que pode para convencer na pele do empresário peninsular.

A escolha, porém, nos faz indagar: por que fazer um filme sobre “ícone italiano” – um comendador festejado por poderosos governantes – com atores norte-americanos? E falado em inglês macarrônico?

Depois que a Netflix e outras plataformas de streaming abraçaram produções gravadas em turco, árabe, chinês, coreano, francês ou espanhol, fica posta a questão – por que insistir no padrão “filme gringo”? Michael Mann e seus produtores não abriram mão dessa proposta tão recorrente.

A narrativa de “Ferrari” se concentra em momento crucial na vida de Enzo. Sua fábrica de carros vermelhos, que encantavam, além dos fãs de corridas, a sheiks e outros integrantes do jet-set, vivia impasse econômico. O empresário estava investindo recursos desmedidos em arriscadas corridas e os títulos eram acumulados pela escuderia rival, a Maserati. Seus contadores (e a esposa Laura) vigiavam suas folhas contábeis. Mesmo assim, as dívidas se avolumavam.

Para complicar, no ano anterior (1956), morrera o jovem Dino Ferrari, o que deixara a Signora Laura em luto profundo. Para complicar mais ainda, o marido anda cada vez mais distante da esposa. E a matriz desconfia que o parceiro tem uma filial. Irá, decidida como ela só, em pessoa, investigar o caso.

Frente a tantos contratempos, a solução adotada pelo ousado Enzo consiste em colocar cinco bólides da Ferrari na Corrida das Mil Milhas. É vencer ou vencer. Ao recriar a perigosa prova automobilística realizada em 1957, Mann e sua equipe técnica fazem o que realmente sabem fazer: cinema de muita ação e velocidade.

Para atrair o público feminino, o ‘cinema viril’ de Michael Mann foi compelido a dar grande destaque a Laura Ferrari, a Lina Lardi (a insossa Shailene Woodley) e a Adalgisa Ferrari (Daniela Piperno). E, para desespero dos ‘macho man’, investiu boa parte da metragem do filme em melodrama familiar, que envolve uma esposa abandonada, uma amante bem mais jovem e um filho que quer a assinatura do pai agregada a seu nome. Só que Laura não deseja ver a assinatura Ferrari associada a ninguém, a nenhum “intruso”, enquanto ela estiver viva.

O fãs do Michael Mann de “Fogo Contra Fogo” ficaram desgostosos com o amplo espaço consumido com a trama melodramática. Queriam ação, adrenalina, velocidade, acidentes (haverá um dos mais terríveis). Não ver a trama consumida com mulheres lutando por honra, fidelidade e sobrenomes.

O melhor de “Ferrari” está em sua promissora abertura, que soma imagens “documentais” em preto e branco, embaladas por deliciosa canção peninsular. E, também – para desespero dos adictos por carros velozes –, na ótima cena de cama (ou melhor “de mesa”) entre a enlutada Laura e o amado marido que já não a deseja, mas resolve pagar em moeda erótica os imensos serviços que ela continua prestando a ele (e à escuderia familiar).

“Ferrari” tem um olhar curioso sobre a vida mundana dos milionários do automobilismo, em especial, na relação destes mesmos milionários com os meios de comunicação. Pena que o assunto seja secundário na trama.

 

Ferrari
EUA, 2023, 130 minutos
Direção: Michael Mann
Roteiro: Troy Kennedy Martin (a partir do livro “Enzo Ferrari: The Man an the Machine”, de Brock Yates)
Elenco: Adam Driver, Penélope Cruz, Gabriel Leone, Shailene Woodley, Sarah Gadon, Jack O’Connell, Patrick Dempsey
Fotografia: Erik Messerschmidt
Montagem: Pietro Scalia
Música: Daniel Pemberton

 

FILMOGRAFIA
Michael Mann (Illinois, Chicago, 5 de fevereiro de 1943)

2023 – “Ferrari”
2015 – “Blackhat”
2009 – “Inimigos Públicos”
2006 – “Miami Vice, o Filme”
2004 – “Colateral”
2001 – “Ali” (sobre Cassius Clay)
1999 – “O Informante”
1995 – “Fogo Contra Fogo”
1992 – “O Último dos Moicanos”
1989 – “Os Tiras de Los Angeles”
1986 – “Caçador de Assassinos”
1983 – “A Fortaleza Infernal”
1981 – “Ruas de Violência”
1979 – “Condenado à Vitória”
1972 – “17 Days Down the Line”

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