Ceylan, o “Tchecov turco”, faz com “Ervas Secas” mais uma bela reflexão sobre os desvãos da alma humana

Por Maria do Rosário Caetano

“Ervas Secas”, nono longa-metragem de Nuri Bilge Ceylan, o “Tchecov turco”, chega finalmente aos cinemas brasileiros. Sua estreia acontece em 14 de março, e o filme – belo e denso como seus antecessores “Era Uma Vez na Anatólia” e “Sono de Inverno” – merece fruição serena e reflexiva. Afinal, o cinema de Ceylan deixa marcas profundas. Ele não é um realizador qualquer. É um dos grandes cineastas do mundo contemporâneo.

Em outubro do ano passado, “Ervas Secas” foi exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, mas, por sua duração (3h17′), acabou apertado entre os horários da maratona paulistana. Quem o viu, deve revê-lo com a calma merecida. Quem não o viu, pode agora programá-lo como uma visita a uma catedral, ao Museu do Louvre, do Prado ou do Vaticano. Assumindo a redundância: o cinema de Ceylan é epifânico, profundo, fascinante e constitui-se em programa obrigatório para quem vê o cinema fora dos limites do entretenimento.

Há que se lembrar que os filmes do realizador turco não são herméticos. Se fazem entender e propõem ao público discussões importantes. Seja o papel do intelectual em sociedades tradicionais, a luta coletiva confrontada com o individualismo, as relações de poder. As relações humanas, enfim.

Depois de conquistar a Palma de Ouro com o magnífico e tchecoviano “Sono de Inverno”, Ceylan realizou “A Árvore dos Frutos Selvagens”, outro filme de imensas qualidades. Antes do laureado “Winter Sleep”, ele já somava importantes troféus no festival francês (Prêmio Especial do Júri para “Era Uma Vez na Anatólia” e “Distante”, e melhor direção para “3 Macacos”). Ao recente “Ervas Secas” coube o prêmio de melhor intérprete para Merve Dizdar. Com a láurea, ela tornou-se a primeira atriz turca a levar o ramo dourado para Istambul (e também para sua Esmirna natal, onde nasceu há 37 anos).

Nuri Bilge Ceylan é um artista de muitos ofícios. Formou-se em Engenharia e apaixonou-se pela fotografia. Resolveu estudar cinema e acabou dedicando-se integralmente ao audiovisual, seja como diretor, roteirista, montador, fotógrafo e-ou produtor. Em “Ervas Secas”, ele assina o roteiro e a montagem (com parceiros), a direção e a produção.

O amor ceylandense pela fotografia deixa marcas de “Ervas Secas”. O protagonista Sanet (Deniz Celiloglu) é, além de professor, um fotógrafo que registra as paisagens físicas e humanas que o circundam. E suas imagens batem na tela como uma rica fonte documental. A professora Nuray (Merve Dizdar), que atua em outra escola, é também desenhista e faz questão de registrar, com uma fotografia, o rosto de Kenan (Musab Eric). Servirá de base a um futuro desenho. O primeiro encontro do trio Nuray, Kenan e Samet dá-se por iniciativa deste. Formar-se-á, ali, um triângulo amoroso, que nada terá de folhetinesco.

“Ervas Secas” começa com o regresso de Samet, professor de Arte em escola para pré-adolescentes, do gozo de período de férias. Ele percorre imenso caminho nevado. Não se vê nada além da infinita brancura da neve. O intelectual está concluindo seu quarto ano de serviço obrigatório em vilarejo remoto, próximo a Erzurum, na Anatólia Oriental. De formação cosmopolita, ele é individualista, detesta aquele fim de mundo e não vê a hora de regressar a Istambul. Enquanto a hora de libertação não chega, divide sua moradia com o colega Kenan, este sim, um homem ligado à Turquia profunda. Que pretende casar-se, tão logo encontre a parceira ideal, para agradar à mãe, inconformada com a solteirice do filho.

Quando a bela Nuray entra na vida de Samet, ele resolve apresentá-la ao amigo. Marcará o encontro. Kenan já está avisado que a moça manca, pois, militante política, de espírito coletivista, ela foi gravemente ferida num atentado. Mais tarde, em cenas das mais belas do filme, a veremos nua e compreenderemos o que se passou com ela.

O insatisfeito Semat anda pela aldeia gelada (“na Anatólia Oriental”, diz o filme, “só há duas estações – inverno e verão”), conversa com o veterinário Vahit (Yuksel Aksu), visita o quartel e conversa com o comandante. Conversa, também, com o colega Kenan. Só não dá muita atenção aos outros integrantes do corpo docente. Os tem todos na conta de insuportáveis. Prefere ocupar cadeira e mesa num apertado almoxarifado. Nesse espaço, ele recebe a visita de alunas. Uma em especial, Sevim (Ece Bagci), a mais bonita e atenciosa. Para ela, o professor traz, findo o período de férias, um mimo (um estojinho de pó compacto).

Certo dia, o rigoroso diretor da escola, acompanhado de uma professora, promove inspeção na sala de aula de Samet, abrindo todas as mochilas dos alunos. A fiscalização é dura e carregada de moralismo. Encontram o estojo e uma carta de amor escrita por Sevim, a linda pré-adolescente. O professor de Arte acabará, logo depois, acusado de contato inadequado por duas alunas, uma delas, a própria Sevim.

O amigo Kenan também será acusado. Os dois acabam convocados pelo secretário de Educação da Anatólia a prestar conta de seus atos. Ficam perplexos. Diminuem, frente aos novos fatos, as esperanças do professor Semat de ser transferido para Istambul e, assim, fugir da vida medíocre que julga levar naquele fim de mundo. Mas, seu encontro com a professora Nuray acabará por envolvê-lo. Mesmo que tenha incentivado o amigo Kenan a aprofundar relações com ela para, quem sabe, desposá-la. E, assim, satisfazer a cobrança da mãe.

O filme seguirá sua construção centrada em conversas que revelarão muito das personagens, em especial de Semat, um homem contraditório, às vezes entregue a rompantes (ou desabafos de intelectual deslocado), que clama pela “civilização” e vê aquele povoado remoto como um castigo. Chega a vaticinar que o futuro de seus alunos será cultivar “batatas e beterrabas” para alimentar os donos do lugarejo.

A qualidade dos diálogos que Ceylan escreveu com parceiros (Akin Aksu e Ebru Ceylan) é primorosa. Não cansam jamais, mesmo que cada conversa se estenda por dez ou 15 minutos. Num de seus diálogos com o veterinário Vahit, o professor recebe condensada “aula” sobre a complexidade da natureza humana.

O veterinário conta que “curou duas vacas de um morador da região. E sabe o que ele fez? Matou meu cachorro! E sabe por que? Porque ele é humano”.

O filme reserva surpresa narrativa que não será revelada aqui, para não estragar o prazer de descoberta do espectador. Mas os que têm São Bertolt Brecht como padroeiro, que se preparem. Fruirão, com especial proveito, essa obra, às vezes melancólica, às vezes sanguínea. Enfim, um filme pouco comum nesses tempos de imagens banais e descartáveis.

Ceylan não está interessado em tecer intrigas, mas sim em revelar os desvãos da alma humana, as pequenas vidas daqueles seres que foram parar num fim de mundo. E isso ele consegue, mais uma vez, de forma prodigiosa. Não é à toa que muitos o definem como “o Tchecov turco”. Um diretor-roteirista tomado de paixão pela dramaturgia, mas sem esquecer jamais da importância da imagem. Afinal, a fotografia é uma de suas paixões e ofício.

 

As Ervas Secas | Kuru Otlar Üstüne
Turquia, 2023, 197 minutos
Direção: Nuri Bilge Ceylan
Elenco: Deniz Celiloglu, Merve Dizdar, Musab Ekic, Ece Bagci, Erdem Senocak, Yuksel Aksu
Roteiro: Akin Aksu, Ebru Ceylan, Nuri Bilge Ceylan
Produção: Nuri Bilge Ceylan
Fotografia: Cevahir Sahin, Kürsat Üresin
Direção de arte: Meral Akta
Música: Philip Timofeyev
Montagem: Oguz Atabas, Nuri Bilge Ceylan
Figurino: Gülsah Yüksel
Classificação: 14 anos
Distribuição: Imovision

 

FILMOGRAFIA
Nuri Bilge Ceylan, diretor, roteirista, montador, fotógrafo e produtor (Istambul, Turquia, 26 de janeiro de 1959)

2023 – “As Ervas Secas” (197 minutos) – melhor atriz (Merve Dizdar) em Cannes
2019 – “A Árvore dos Frutos Selvagens” (188 minutos)
2014 – “Sono de Inverno” (196 minutos) – Palma de Ouro em Cannes e Prêmio Fipresci (Crítica Internacional)
2011 – “Era Uma Vez na Anatólia” (150 minutos) – Prêmio Especial do Júri em Cannes
2009 – “3 Macacos” (109 minutos) – melhor direção em Cannes
2003 – “Distante” (110 minutos) – Prêmio Especial do Júri em Cannes
2006 – “Climas” (101 minutos)
1999 – “Nuvens de Maio” (126 minutos)
1997 – “A Pequena Cidade” (85 minutos)

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