Documentário apresenta Biblioteca de Umberto Eco, que reuniu 32 mil volumes antigos e modernos em Milão
Por Maria do Rosário Caetano
O escritor Umberto Eco, que morreu, aos 84 anos, num dia de fevereiro de 2016, vivia cercado de admiradores. E de livros. Em sua casa, em Milão, o mais midiático dos intelectuais italianos de nosso tempo, percorria satisfeito labirintos cercados de estantes. Nelas estavam depositados os 32 mil volumes de sua colossal biblioteca particular, soma de dois mil livros antigos, alguns raríssimos, e 30 mil obras modernas.
O autor do best seller “O Nome da Rosa”, transformado em filme de grande sucesso por Jean-Jacques Annaud, era — como os monges de sua narrativa medieval-noir — um bibliófilo apaixonado. E daqueles que faziam questão de manusear o livro, realizar anotações em suas margens e, quem sabe, até manchá-lo (claro que suavemente). Parte de sua fúria contra as hordas digitais estava, claro, ligada à sua devoção ao estudo e a seu infinito amor pelos livros.
A história da biblioteca de Eco deu origem ao longa documental “Umberto Eco, La Biblioteca del Mondo”, de Davide Ferrario, um dos 15 pré-finalistas ao Prêmio David di Donatello, o “Oscar italiano”, cuja sexagésima-nona cerimônia de premiação está marcada para ocorrer em Roma, em maio, sob os auspícios da Accademia Nazionale de Cinema. O anúncio dos finalistas em todas as categorias artísticas, técnicas e especiais está marcado para a próxima quarta-feira, 3 de abril.
A lista de 15 pré-finalistas reúne outro nome exponencial da cultura italiana – o ator napolitano Massimo Troisi (1953-1994). Ele, como Umberto Eco, era apaixonado por livros. E, poucos meses antes de morrer, protagonizou, com Philippe Noiret, o filme britânico “O Carteiro e o Poeta” (“Il Postino”, 1994). Sob direção de Michael Radford, Troisi interpretou um modesto funcionário dos Correios, apaixonado por linda jovem (Grazia Cucinotta), a quem não tinha coragem de declarar seu amor. Como lhe cabia entregar a intensa correspondência destinada a Pablo Neruda (papel de Noiret), o carteiro fez do poeta chileno seu aliado. O filme inspirou-se em livro de Antonio Skarmeta.
“Laggiù Qualcuno mi Ama” (Lá Alguém me Ama”), dirigido por Mario Martone, relembra a rica trajetória de Massimo Troisi, que partiu muito cedo (aos 41 anos), por duas horas e oito minutos. Mais extenso é outro concorrente, “Raffa”, sobre a cantora e atriz Raffaella Carra (1943-2021), que reinou soberana na TV italiana nas décadas de 1970 e 80. Para registrar sua atribulada trajetória, Daniele Luchetti, de “Meu Irmão É Filho Único”, consumiu três horas e recorreu a arquivos de todos os cantos da Itália.
Outro documentário – “Fela, o meu Deus Vivente”, de Daniele Vicari – tem mais um astro como tema, o africano Fela Kuti (1938-1997). O artista colocou a Nigéria no mapa do pop mundial ao comandar a revolução afrobeat.
O nigeriano conquistou fãs apaixonados pelos diversos cantos do mundo. Um deles — o italiano Michele Avantario — sonhou produzir um filme sobre o cantor e compositor que mantinha em Lagos, capital da Nigéria, sua base musical, espiritual e familiar. Não conseguiu levar seu projeto a termo. Agora, Daniele Vicari relembra Fela Kuti pelas memórias do amigo e fã italiano, que visitou o pai do afrobeat, dezenas de vezes, em seu “santuário” plantado na periferia de Lagos.
Voltando à “Biblioteca del Mondo” de Umberto Eco. O filme de Davide Ferrario começa com uma obra familiar. Viúva e filhos evocam a memória do escritor, semiólogo, linguista, professor e filósofo nascido em Alessandria, no Piemonte. Eles relembram a vida cotidiana do cidadão que correu mundos e vendeu mais de 30 milhões de exemplares de “O Nome da Rosa”. E fez de “A Obra Aberta” e “Apocalípticos e Integrados” leitura obrigatória de estudantes universitários de vários cantos do planeta.
Umberto Eco já era famoso quando publicou, em 1980, um romance, que mesclava literatura policial (para muitos, “mero entretenimento”) e erudição (“O Nome da Rosa”). Veio o estouro comercial dessa sua inusitada obra ficcional.
O piemontês, que escolheu Milão como sua cidade adotiva, continuou ministrando centenas de conferências e concedendo múltiplas entrevistas, fosse em sua Itália natal, na França, Inglaterra ou EUA. E sempre provocando seus interlocutores com ideias progressistas e inovadoras. Temperadas com seu inescapável bom-humor. Trechos de algumas delas estão no filme.
Quando o professor-escritor não estava correndo mundos, ele mergulhava em sua gigantesca biblioteca, para revisitar obras que organizou, sistematicamente, sem perder seu espírito inquieto e livre. Claro que guardava obras-primas da literatura italiana e de todo o Ocidente. Mas nunca restringiu sua imensa coleção de livros a poucos temas e origens geográficas. Havia em sua “Biblioteca del Mondo” espaço para Alquimia, Ocultismo, Magia, Demonologia, Esoterismo, Alma dos Animais… e temas assemelhados.
Para dar vida à Biblioteca de Eco, o documentarista Davide Ferrario recorreu a imagens de algumas das mais belas bibliotecas do mundo – a Arturo Graf, a Norberto Bobbio e a Accademia delle Scienze, as três da Universidade de Turim, a Braidense, de Milão, a Comunale, de Ímola, a Biblioteca de Ulm e a Kloster Wiblingen, ambas suecas, a Statbibliothk de Stuttgart, na Alemanha, a Stiftsbibliotek St Gallen, na Suíça, a Biblioteca José Vasconcelos, do México, e a Binhai Library, de Tianjin, na China.
Ao final do filme, saberemos que a Biblioteca de Umberto Eco foi cedida por seus herdeiros ao Estado italiano, graças a acordo que prevê sua manutenção e revitalização garantidas pelas Biblioteca Universitária de Bologna e pela Biblioteca Nacional Braidense de Milão.
O espectador guardará, ao final do sintético documentário, a imagem daquele intelectual que amou os livros e lutou, sem trégua, pela difusão do conhecimento. Sem fraque e cartola. Eco fazia questão de se comunicar com o outro sem pedantismo.
Para embalar os enxutos 80 minutos de “Biblioteca del Mondo”, foram usadas composições musicais do alemão Carl Orff (1895-1982). Afinal, como Eco, Orff era apaixonado pela Idade Média.
Os Pré-Finalistas:
. “Umberto Eco, a Biblioteca do Mundo”, de Davide Ferrario
. “Fela, o meu Deus Vivente”, de Daniele Vicari
. “Lá Alguém me Ama” (“Laggiù Qualcuno mi Ama – Massimo Troisi”), de Mario Martone
. “Raffa”, de Daniele Luchetti
. “Roma, Santa e Dannata”, de Daniele Cipri
. “Enzo Jannacci – Vengo Anchi’o”, de Giorgio Verdelli
. “Io, Noi e Gaber”, de Riccardo Milani
. “Kripton”, de Francesco Munzi
. “Le Mura do Bergamo”, de Stefano Savona
. “Mur”, de Kasia Smutniak
. “N’en Parlons Plus (Non ne Parliamo Più)”, de Cécile Khindria e Vittorio Moroni
. “Chutzpah – Qualcosa Sul Pudore”, de Monica Stambrini
. “Sconosciuti Puri”, de Valentina Cigogna e Mattia Colombo
. “Semidei”, de Fabio Mollo e Alessandra Cataleta
. “Taxibol”, de Tommaso Santambrogio