Guédiguian homenageia Homero e Marselha em “E a Festa Continua!”

Por Maria do Rosário Caetano

O cineasta francês, de origem armênia, Robert Guédiguian, realiza com “E a Festa Continua!” – em cartaz nos cinemas desde quinta-feira, 18 de abril – mais um filme humanista, politizado e suavemente bem-humorado. E, felizmente, nada panfletário, nem saudosista.

Ambientado mais uma vez em Marselha, às margens do Mediterrâneo, o filme, além de prestar tributo à cidade natal de seu diretor e atores, cultiva a memória do rapsodo Homero, autor da “Ilíada” e da “Odisseia”. Há quem duvide da existência do narrador grego, cujo nascimento e morte são datados – pelos crentes em sua existência – no século VIII antes de Cristo. Teria nascido na Jônia e, cego, compilaria, em poemas épicos, a história do mundo helênico que o circundava.

O Homero de Guédiguain é uma estátua de pedra plantada em pedestal de bairro de marselhês. E servirá como força renovadora do discurso político de uma das personagens do filme, a jovem Alice. Ela acatará sugestão do pai (Henri, um homem apaixonado pelo poeta cego) para defender os moradores, quase todos imigrantes, que vivem em prédios sem nenhuma segurança. Aliás, o filme começará com imagens documentais, que registram o desabamento de dois velhos edifícios, ocorrido em cinco de novembro de 2018, na Rue Aubagne. E que deixou vítimas fatais.

A história ficcional gravita em torno de duas gerações: um grupo de sexagenários e uma turma na faixa dos trinta e tantos anos. A enfermeira Rosa (Ariane Ascaride, parceira matrimonial e artística de Guédiguian) tem 60 anos e se dá muito bem com seu irmão Tônio, um militante comunista, interpretado por Gérard Meylan. Outro coroa chegará à metrópole franco-mediterranea. Ele é Henri (Jean-Pierre Darroussin), um homem apaixonado pela literatura e pela filha, a quem visita para atenuar saudades. Esses três atores – vale lembrar — são parceiros fiéis e inseparáveis de Guédiguian.

A geração mais jovem compõe-se com Alice (Lola Naymark) e os dois filhos de Rosa, Sarkis (Robinson Stévenin) e Minás (Grégoire Leprince-Ringuet). Há, ainda, Laetitia, uma jovem enfermeira afro-francesa (Alice Da Luz Gomes), que ocupa um quarto na casa de Tônio e trabalha na equipe de Rosa, em hospital público, cheio de problemas.

O sonho da enfermeira Rosa (tributo a Rosa Luxemburgo) é unir os vários grupos de esquerda que militam no bairro marselhês. Missão quase impossível, pois os Verdes, os Insubmissos, os Socialistas e os Comunistas (ou o que restou destes) estão sempre em confronto pelos mais diversos motivos. A ponto de Rosa, que pensa em ser candidata de uma frente de esquerdas, lamentar: “Não podemos ganhar, quando fazemos tudo para perder”.

Depois de décadas dedicadas aos filhos, ao trabalho e à militância política, a viúva Rosa pensa em acomodar-se, deixar a disputa eleitoral pra lá e ir viver sua maturidade em paz. Mas a chegada de Henri, o pai de sua futura nora Alice, vai mudar seus planos. Depois de longos anos de viuvez, ela redescobre o amor maduro.

E os filhos? Os dois cultivam suas origens armênias (a mesma de Guédiguian). Um deles difunde a cultura, em especial, a música e a culinária, do país asiático em seu animado bar marselhês. Não vê a hora de casar-se com Alice e ser pai de muitos filhos. O outro pensa em regressar à Armênia para ajudar o país a enfrentar a guerra contra o Azerbaijão (pelo domínio de Nagorno-Karabach).

Com sabedoria, Guédiguian constrói um filme coral, sedimentado no afeto familiar e na militância política, na solidariedade com os imigrantes e numa busca esperançosa de horizontes utópicos. O tom de comédia salva o filme do ranço pedagógico. Como resistir a personagens tão envolventes e nada niilistas?

Com “E a Festa Continua!”, o cineasta e sua trupe seguem os caminhos trilhados nos ótimos “As Neves do Kilimandjaro”, “Uma Casa à Beira-Mar”, “O Mundo de Glória” e, em certa medida, no dançante “Twist à Bamako” (“Mali Twist”). Aos 70 anos, Guédiguian pode orgulhar-se de encontrar bons personagens para velhos parceiros de tantas caminhadas. Ariane fará 70 anos em outubro. Darroussin tem 71. Mesma idade de Meylan.

Como faz filmes de custo modesto, sem astros famosos, o diretor francês pode continuar realizando um novo longa-metragem a cada dois anos. Com liberdade para contar histórias da gente comum de sua Marselha ensolarada e, como toda cidade portuária, destinada a receber novos moradores vindos de todos os cantos do mundo.

 

E a Festa Continua! | Et la Fête Continue!
França, 2023, 106 minutos
Direção: Robert Guédiguian
Elenco: Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan, Lola Naymark, Robinson Stévenin, Grégoire Leprince-Ringuet, Alice Da Luz Gomes
Roteiro: Serge Valletti e Robert Guédiguian
Fotografia: Pierre Milon
Música: Laurent Lafran
Figurino: Anne-Marie Giacalone
Produção: Marc Bordure e Robert Guédiguian
Classificação: 12 anos
Distribuição: Imovision

 

FILMOGRAFIA
Robert Guédiguian (Marselha/França, 3 de dezembro de 1953)

2023 – “E a Festa Continua!”
2021 – “Twist à Bamako” (Mali Twist)
2019 – “O Mundo de Glória”
2017 – “Uma Casa à Beira-Mar”
2015 – “Une Histoire Fou”
2014 – “O Fio de Ariadne”
2011 – “As Neves do Kilimandjaro”2009 – “L’Arme du Crime”
2007 – “Lady Jane”
2006 – “Uma Viagem à Armênia”
2005 – “O Último Mitterand” (doc)
2004 – “Le Promeneur du Champ de Mars”
2003 – “Mon Pére Est Ingénieur”
2001 – “Marie-Jo e seus Dois Amores”
2000 – “A Cidade Está Tranquila”
1999 – “À l’Attaque”
1998 – “A la Place du Coeur”
1997 – “Marius e Jeanette”
1995 – “À la Vie, à la Mort!”
1993 – “L’Argent Fait le Bonheur”
1989 – “Dieu Vomit les Tièdes”
1985 – “Ki lo sa?”
1983 – “Rouge Midi”
1981 – “Dernier Été”

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