Mark Cousins, o cineasta do olhar e da memória, filma no Brasil parte de seu épico dedicado ao cinema documental

Foto: Mark Cousins, Helena Solberg e Sergio Treffaut © MRC

Por Maria do Rosário Caetano

O cineasta irlandês Mark Cousins, que vive no eixo Edimburgo-Londres, quando não está com o pé na estrada, deu com os costados no Brasil, para cumprir dias de muitos afazeres.

Como é de seu irrequieto feitio, ele desempenha por aqui, múltiplas e incessantes atividades. Participa do Festival de Documentários É Tudo Verdade, como integrante do júri internacional (ao lado de Helena Solberg e Sérgio Tréffaut), ministra duas masterclasses, uma em São Paulo, outra no Rio, derrama simpatia e posa para centenas de fotos com seus muitos admiradores. Ele e sua extensa obra já foram tema até de tese de doutorado do brasileiro Fabiano Pereira.

E o que mais faz, em sua vida cotidiana e no Brasil, Mark Cousins, que completará 59 anos no próximo dia 3 de maio, é assistir a filmes, filmes e mais filmes. Não só por obrigações como integrante do corpo de jurados, mas por ser um cinéfilo obstinado.

Quem conhece parte ou a totalidade dos quase 50 filmes de curta, média, longa e longuíssima-metragem (sua “Odisseia do Cinema” dura 15 horas) do irlandês, sabe que ele vive para o cinema. Para municiar-se de imagens de títulos anglo-saxões, mas também iranianos, indianos, japoneses, chineses, albaneses, russos, nórdicos, africanos, mexicanos, enfim, de todos os cantos do mundo.

Nesse exato momento, Mark Cousins prepara, no Brasil — um dos países-cenário de seu novo épico, um longuíssimo documentário sobre mais de 100 anos de história do cinema não-ficcional — filmagens que incluirão nossa paisagem física e política, social e fílmica.

Quem compareceu à sua masterclass na Cinemateca Brasileira, pôde assistir aos oito minutos iniciais dessa nova narrativa, que será, como sua “Odisseia do Cinema” (ficcional), exibida, em 16 capítulos de uma hora cada, em emissoras de TV e plataformas de streaming espalhadas pelos cinco continentes.

Cousins abrirá sua odisseia documental com imagens de “Nanook, o Esquimó”, de Robert Flaherty, e — como é prática de seu cinema — somará ao mundo anglo-saxão imagens asiáticas, africanas, europeias e latino-americanas. Ele se interessa tanto pelo restante do mundo, que assegurou a Amir Labaki, diretor do ÉTV e moderador do encontro na Cinemateca Brasileira, que já não gosta do livro “Imagining Reality: The Faber Book of Documentary”, que escreveu com Kevin MacDonald (diretor de “O Último Rei da Escócia” e “O Mauritano”) e foi publicado em 2006. E por que? Foi sintético na sua justificativa: sente nele “imensa falta do cinema asiático”.

Os oito minutos que servem de prefácio à odisseia do cinema documental fixam-se, com humor e acuidade, em animal que causa espanto e encanto, o elefante. Primeiro, vemos um bebê-elefante, na Índia, tentando (com uma escavadeira mecânica a seu lado) safar-se em terra que desmorona. Quando ele consegue, resolve brigar com a escavadeira. Na cena seguinte, vemos um elefante num filme de Edwin Porter, realizado em 1903. E, depois, um elefante que parece dançar para a câmera de um dos maiores documentaristas do mundo, o francês Chris Marker.

Um elefante feito de matéria mineral e postado, em forma de estátua, defronte a um belo edifício, é, então, escrutinado pelo olhar-câmera de Mark Cousins. Uma ode ao imenso animal tão querido do povo indiano. E, vê-se agora, do documentarista irlandês. A plateia, que lotou a Sala Oscarito, na Cinemateca Brasileira, ficou em estado de encantamento com os minutos iniciais de sua nova série e com a saga dos elefantes do cinema.

Amir Labaki colocou, para Mark Cousins, série de perguntas sobre sua vasta obra e alguns de seus filmes, que se fizeram quase todos acompanhar dos respectivos trailers (“Marcha sobre Roma”, registro do triunfo do fascismo mussoliniano na Itália, “A História do Olhar”, “Eu Sou Belfast”, “Os Olhos de Orson Welles” e “Meu Nome é Alfred Hitchcock”).

Labaki fez reflexões sobre o cinema-performance de Cousins, a importância de sua recorrente voz off (subjetiva, apaixonada e por ele revalorizada), de lista de grandes documentários (“Dez Filmes que Mudaram o Mundo”) por ele preparada para o BFI e sobre a rejeição (por Cousins) do documentário como gênero. Para o irlandês, o cinema documental pode ser uma comédia, uma ficção científica etc., etc.

Com muito bom humor e respostas sintéticas, Cousins falou de seu cinema de viajante, dos filmes inspirados em “Berlim, Sinfonia de uma Cidade” (caso de “Eu Sou Belfast”, “Estocolmo, meu Amor”) e de seu método de trabalho. Que consiste em colocar suas intenções em imensas folhas de papel, coladas umas nas outras. Ali ele expõe seus anseios e os filmes (ou imagens) que vai recortar (para depois embaralhar).

Os imensos papiros-rascunhos são guardados em tubos semelhantes àqueles que preservam projetos de arquitetos. Mas, ao contrário de Sergei Eisenstein (que ele citou) e de Orson Welles, que lhe serviu, com seus quase 800 esboços deixados para a filha Beatriz, de matéria-prima no vibrante “Os Olhos…”, Cousins não desenha. Escreve, resume, estrutura seus filmes com palavras escritas à mão. Nada de computador na hora da concepção.

Sobre ser um cineasta viajante, o irlandês ponderou: “sou um homem branco, que fala sobre o mundo, que mostra objetos históricos”, mas que faz questão de buscar desafios, fugir de cânones. Por isso, viaja (e filma). Para o Irã, a Albânia, a Índia, a Sardenha, Estocolmo, Belfast…. Agora, pelo Brasil.

Sobre os filmes dedicados à trágica Marcha sobre Roma, que entronou o ditador Benito Mussolini, e aos cineastas Welles e Hitchcock, Marc Cousins comentou: “Meu primeiro filme, de 1988, foi sobre a presença de neonazistas na Europa. Com ‘Marcha sobre Roma’, vi que se falasse de Mussolini, teria que falar de Hitler, Salazar e chegar a Bolsonaro e outros líderes da extrema-direita contemporânea”.

Como encontrar rumo original para documentários sobre cineastas hiperfamosos como Welles e Hitchcock?

Cousins definiu seus caminhos: “Busco fugir do cânone. No caso de Hitchcock, minha solução foi fazê-lo sair do mundo dos mortos e realizar um documentário-comédia que, tenho certeza, ele ia adorar”. Depois de rever, durante a pandemia, todos os filmes do cineasta britânico, Cousins convocou um imitador (Alistair McGowan), “o melhor ouvido da indústria”, para dar voz (idêntica) ao diretor de “Psicose”.

“No filme sobre Orson Welles” — contou, depois de mostrar bota de cano médio do diretor de “Cidadão Kane”, adquirida em leilão, com palmilha e tudo — “pude tomar como ponto de partida os 800 desenhos que lhe foram confiados por Beatriz. E mostrar o olhar dele, Welles, pelo meu olhar, longe dos cânones estabelecidos”.

A Revista de CINEMA dirigiu duas perguntas a Cousins, durante o animado debate que se seguiu à sua masterclass paulistana:

— O que levou um anglo-saxão a romper as barreiras de sua poderosa indústria cinematográfica e voltar seu olhar também ao cinema do mundo, da Ásia, da África, da América Latina?

— Sou originário da Irlanda, uma pequena colônia. Isso é importante. Em 2001, peguei uma Kombi (e vi que há muitas no Brasil) e dirigi da Escócia (Edimburgo), onde vivo, até a Índia, passando pelo Cazaquistão, Irã, Rajastão e muitos outros países. Foi uma viagem densa, que se tornou o centro de gravidade da minha imaginação. As mesquitas do Irã, tudo que eu via ia me marcando. Com tais experiências, você passa a suspeitar do ponto de vista eurocêntrico. Foi a prova da qual eu necessitava para romper as cercas de minha cultura, a anglo-saxã, como você diz. Busco uma cultura sem fronteiras. Principalmente nesse momento em que tantos países levantam barreiras ao outro.

— No belo, sólido e cativante “Uma História de Crianças e Cinema” (2013), você nos mostra imagens de filmes centrados na infância nos mais diversos países do mundo. Revela imagens de filmes desconhecidos para nós (como o soviético “Alyonka”), conhecidos (“Los Olvidados”, “O Rolo Compressor e o Violinista”, os Balões — o Vermelho, da França, e o Branco, do Irã), e conhecidíssimos (como “O Garoto”, do Chaplin). Por que deixou de fora o menino Enzo Sataiola em cena antológica de “Ladrões de Bicicleta”, aquela em que o filho dá a mão ao pai ‘ladrão’ interpretado por Lamberto Maggiorane)?

— Porque eu quero, nos meus filmes, algo que seja esperado, mas também inesperado. Ao realizar um filme sobre crianças e cinema, utilizei trechos de ET (Spielberg), um filme muito esperado, e de muitos outros filmes de diversas partes do mundo, pouco esperados. Sempre quero liberar imagens que possam ser vistas por novos olhares.

Mark Cousins foi irônico (e amoroso) nessa última resposta. E muito breve, pois havia muita gente inscrita para fazer novas perguntas. Registro, aqui, que o filme dele sobre infância e cinema é maravilhoso, instigante, imperdível. Daqueles que renovam nosso olhar.

Admiradora juramentada de “Los Olvidados” (Buñuel, México, 1950), nunca percebera que Pedro (o menino de reformatório interpretado por Alfonso Mejía) jogava um ovo na câmera de Gabriel Figueroa. Jogava, metaforicamente, o mesmo ovo no espectador, como diz Mark Cousins em sua apaixonada narração em primeira pessoa. E que prazeroso resulta ver, por seu olhar de irlandês-cidadão-do-mundo, imagens de infantes que povoaram o cinema de Ozu (que sequência!), Lamorrisse, Truffaut, Chen Kaige, Kira Muratowa, Kiarostami, Panahi, Tarkowski e do mestre contemporâneo Koreeda. Este, um realizador apaixonado pelo mundo infantil.

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