“Pereio Eu te Odeio” servirá como testamento da rebeldia e talento do mais louco dos atores brasileiros

Por Maria do Rosário Caetano

O ator Paulo César Campos Velho, o Pereio, morreu nesse domingo, 12 de maio, aos 83 anos. A notícia foi confirmada por seu amigo, o também ator Stepan Nercessian, diretor do Retiro dos Artistas, onde Pereio viveu seus últimos anos.

Nascido em Alegrete, no Rio Grande do Sul, em 19 de outubro de 1940, Paulo César Pereio viria a radicar-se no Rio de Janeiro, onde se tornaria um dos nomes da linha de frente do Cinema Novo. Atuou em “Os Fuzis”, de Ruy Guerra, Urso de Prata no Festival de Berlim, integrou a equipe de “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, e protagonizou “O Bravo Guerreiro”, de Gustavo Dahl.

Protagonizaria, também, aí já no terreno do chamado Cinema Marginal, “Gamal, Delírio do Sexo”, de João Batista de Andrade, e “Bang Bang”, de Andrea Tonacci”. Tornou-se icônica sua imagem, com máscara de macaco, barbeando-se frente ao espelho e cantando “eu sonhei que tu estavas tão linda/ numa noite de raro esplendor”.

Em meados da década de 1970, Pereio causaria sensação na pele de Tião Brasil Grande, caminhoneiro que andava pela Amazônia e se relacionava com a jovem Iracema (Edna de Cássia), até abandoná-la, já prostituída, pela “estrada da integração nacional”. O filme “Iracema – Uma Transa Amazônica”, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, que estabeleceu fértil diálogo entre a ficção e o documentário, causou imenso impacto e, ainda hoje, encanta novas gerações de realizadores e cinéfilos. Mas sofreu nas mãos da Censura.

Outro papel – o do empresário falido Paulo – colocaria Pereio na condição luxuosa de protagonista. E, dessa vez, ao lado da maior estrela do cinema brasileiro nas décadas de 1970 e 80, Sônia Braga. Ela vinha de sucessos arrasadores como “Dona Flor e seus Dois Maridos” (Bruno Barreto, 1975), ao lado de José Wilker e Mauro Mendonça, e de “Dama do Lotação” (Neville D’Almeida, 1976), como objeto de desejo de uma dezena de homens rodriguianos.

Num gesto de atrevimento ímpar, Arnaldo Jabor escalou um anti-galã, o debochado Pereio, para fazer par com a escultural Maria (encarnada por Sônia Braga). Para curar a dor da separação da esposa, a médica Bárbara (Vera Fischer), que o deixara para viver com um cardiologista, Paulo sai pelas ruas da zona sul carioca e encontra Maria, que se diz prostituta. Os dois viverão noite de loucuras em apartamento cinematográfico e labiríntico (fotografia avassaladora de Murilo Salles), único bem que restara ao industrial falido. Para tudo terminar como se personagens (e espectadores) estivessem num sofisticado musical de Hollywood. O filme vendeu quatro milhões de ingressos.

Pereio seguiu sua carreira com um pé (ou os dois) no underground. Desbocado, cínico, talentoso, dono de voz talhada para a sedução e, por isso, a mais requisitada para sofisticados comerciais de televisão. Viveu muitos amores e dois casamentos (primeiro com a atriz Neila Tavares, depois com Cissa Guimarães, mães de seus filhos). Ficou devendo pensões e foi parar na cadeia. Viveu do jeito que quis e pagou seu preço.

Sua trajetória já foi contada no documentário “10 Centavos para o Número da Besta”, de 2017, dirigido por Guillermo Planel. Um filme apenas regular. O longa-metragem que realmente conta sua acidentada – e alucinada – história deve estrear ainda esse ano: “Pereio, Eu te Odeio”, iniciado há mais de 20 anos pelo quadrinista, cartunista e cineasta gaúcho (portanto seu conterrâneo) Allan Sieber, e concluído ano passado, pelo baiano Tasso Dourado.

Os dois gaúchos – Pereio e Sieber – eram doidos demais para levar o filme a termo. Tudo que foi filmado ficou guardado, de forma caótica. A trupe da empresa-produtora, a Toscographics, desagregou-se, o cartunista-cineasta, que nunca se dava por satisfeito com o material reunido, mudou-se para a Argentina e deu os trâmites da louca cinebiografia por findos. Ou melhor, por inconclusos. Foi aí que o baiano entrou em cena.

Tasso Dourado, com folha de serviços prestados à TV, como montador (ou editor), era fã ardoroso de Pereio. Ele se aproximara (e se afeiçoara) ao artista gaúcho, quando este aceitou participar de videoclipe de sua banda musical (de Tasso), interpretando hilária e irreverente velhinha, das mais doidonas.

O astral de Pereio e o do jovem baiano se alinharam. Tasso resolveu, então, ir atrás de Allan Sieber, predisposto a concluir o filme. De cara, impôs sua condição: montaria o material coletado pelo quadrinista ao longo dos anos e produziria novas entrevistas. Seria fiel ao espírito do projeto original, mas em troca exigia liberdade total. Não aceitaria vetos do cineasta gaúcho.

Pacto firmado, Tasso caiu na estrada. E encontrou o produtor ideal para a empreitada, Camilo Cavalcanti (não confundir com o cineasta pernambucano), produtor e diretor (com Natália Dias) do documentário “Belchior, Apenas um Coração Selvagem”. Ninguém, portanto, melhor que Cavalcanti, o único produtor-realizador, até agora, a conseguir finalizar um longa-metragem sobre o bardo cearense (1940-2017), chegado a errâncias e mistérios existenciais (além de contar com herdeiros complicadíssimos). Foi à luta com Viviane Mendonça, coprodutora e parceira fundamental na viabilização do projeto.

Tasso Dourado iniciou seu trabalho gravando depoimento do próprio Allan Sieber, que narrou, com sua irreverência costumeira, a gênese de seu inconcluso longa documental. E outros depoimentos foram registrados. Os dois mais impressionantes são os de Stepan Nercessian e de Cissa Guimarães. Ei-los, resumidos, abaixo, pois dizem muito dos estados d’alma de Paulo César Pereio, o gaúcho mais irreverente e doidão do Brasil:

Stepan Nercessian (em tom dramatizado, narra subida dele e de Pereio, ao morro carioca, para compra de aditivos sensoriais): “Eu estava montado na minha moto e só queria deixar meu amigo Pereio na boca-de-fumo, mas nós dois acabamos pegos quando tentávamos dar ‘um teco’ numa carreira de um pó branco. Pegos no ato, recebemos ordem de prisão” (…). Para se saber o final da história, só assistindo ao delirante relato do intérprete do Bereco de “A Rainha Diaba”.

Cissa Guimarães (primeiro, um dos filhos do casal – são dois, Thomaz e João Velho – lembra de ouvir contar que o pai, Pereio, incendiara o Túnel Rebouças). A mãe detalha a história real: “Pereio pegou o meu carro e subiu o morro. O automóvel foi mal estacionado e, com o freio avariado, caiu sobre a caixa de luz que clareava o túnel. Resultado, pane total, imenso engarrafamento. Até aulas foram suspensas por causa do acidente”.

O documentário dura 100 minutos e utiliza, além dos depoimentos, imagens de 60 filmes de longa, média e curta-metragem, nos quais Pereio foi protagonista (ou coadjuvante) e aos quais emprestou sua poderosa voz de locutor. Voz que sofreu forte abalo quando (outro) grave acidente de carro o vitimou. Neste, ele estava dentro do veículo. Perdeu os dentes e seu maxilar sofreu danos irreparáveis. A voz sedutora e aliciante que encantava os publicitários passou a não ser mais tão requisitada.

Além de “Pereio, Eu te Odeio”, o ator será visto no novo filme de Ruy Guerra, “A Fúria”. O cineasta brasileiro, nascido em Moçambique, que convocou Pereio para seu primeiro papel no cinema (no clássico “Os Fuzis”), encerra, com “A Fúria”, trilogia que prosseguiu com “A Queda”. O ator gaúcho está nos três. Lima Duarte em dois (no segundo e no terceiro). Maria Gladys, que participou do primeiro, deve estar no terceiro.

 

FILMOGRAFIA
Paulo César Pereio (Alegrete/RS, 1940 – Rio de Janeiro/RJ, 2024)

Alguns filmes:

1965 – “Os Fuzis”, de Ruy Guerra
1967 – “Terra em Transe”, de Glauber Rocha
1968 – “O Bravo Guerreiro”, de Gustavo Dahl
1968 – “Vida Provisória”, Maurício Gomes Leite
1969 – “Gamal, Delírio do Sexo”, de João Batista de Andrade
1970 – “Bang Bang”, de Andrea Tonacci
19 72 – “Os Inconfidentes” , de Joaquim Pedro de Andrade
1972 – “Toda Nudez Será Castigada”, de Arnaldo Jabor
1973 – “Vai Trabalhar, Vagabundo”, Hugo Carvana
1974-1980 – “Iracema, uma Transa Amazônica”, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna
1976 – “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, de Hector Babenco
1977 – “A Queda”, de Ruy Guerra
1977 – “Dama do Lotação”, de Neville D’Almeida
1978 – “O Bom Marido”, de Antônio Calmon
1978 – “A Lira do Delírio”, Walter Lima Jr
1978 – “Tudo Bem”, de Arnaldo Jabor
1978 – “Chuvas de Verão”, de Cacá Diegues
1980 – “Eu te Amo”, de Arnaldo Jabor
1982 – “Bar Esperança, o Último que Fecha”, de Hugo Carvana
1992 – “Vagas para Moças de Fino Trato”, de Paulo Thiago
2003 – “Harmada”, de Maurice Capovilla (melhor ator no Festival de Brasília)
2017 – “10 Centavos para o Número da Besta”, de Guillermo Planel (documentário)
2024 – “Pereio, Eu te Odeio”, de Alan Sieber e Tasso Dourado (documentário, inédito)
2024 – “A Fúria”, ficção de Ruy Guerra (inédito)

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