Festa do Cinema Italiano une “O Sequestro do Papa” a blockbuster feminista

Foto: “O Segredo do Papa” (“Rapito”), de Marco Bellocchio

Por Maria do Rosário Caetano

O festival 8 ½ Festa do Cinema Italiano inicia nessa quinta-feira, 27 de junho, sua décima-primeira edição, que reúne filmes de diversos gêneros. Do blockbuster feminista “Ainda Temos o Amanhã”, de Paola Cortellesi, visto por quase seis milhões de espectadores peninsulares, passando por “O Segredo do Papa” (“Rapito”), mais uma grande obra do mestre Marco Bellocchio, e desaguando em “Segredos”, de Daniele Luchetti, o homenageado do ano.

O cineasta Luchetti nasceu em Roma há 63 anos e dirigiu uma dezenas de filmes, entre eles “Meu Irmão é Filho Único” (2007), título que consolidou a carreira do astro Riccardo Scarmacio, “A Nossa Vida” (2020), “Anos Felizes” (2014), “La Escuola” (1995) e “Laços” (2020). Estes dois últimos, baseados em livros de Domenico Starnone, 81 anos, escritor napolitano de vida enigmática. Há quem o tome como marido da escritora Elena Ferrante, maior destaque contemporâneo da literatura peninsular. Ou como seu provável avatar.

O que se sabe de concreto sobre esse imbroglio literário italiano é que Starnone é casado com a tradutora Anita Raja. Seria esta, então, a verdadeira Elena Ferrante, autora dos best sellers “A Amiga Genial” e “A Filha Perdida”? Como esta questão não estrutura a Festa Italiana, dedicada primordialmente ao cinema, voltemos a Luchetti.

O realizador romano já fez palestra em São Paulo sobre tema estimulante — “Escrever para o Cinema: Da Literatura à Tela”. A mesma palestra será proferida no Rio de Janeiro, dia primeiro de julho. “Segredos” (“Confidenza”), o filme que Luchetti mostra na Festa Italiana, estreou no Festival de Rotterdan, na Holanda. No centro da narrativa está Pietro Vella (Elio Germano), um respeitável professor, que vive sob o risco de ser desmascarado por ex-aluna e ex-namorada, a bela e reconhecida matemática Teresa Quadraro (Federica Rossellini). As habilidades da cientista dos números a levou, inclusive, a receber prêmio das mãos do presidente da Republica Italiana.

O filme se constrói como retrato desse homem, o Prof. Pietro, que preserva sua imagem pública, mas vive de forma tóxica suas relações sentimentais. Nessa quinta-feira, 27, à noite (21h10), o cineasta apresentará sessão especial de “Segredos”, seguida de bate-papo com o público, no Espaço Augusta de Cinema, na Rua Augusta paulistana.

O festival, que evoca a obra-prima “8 1/2”, de Federico Fellini, em seu título, prossegue até três de julho, em mais de 20 cidades brasileiras (ver lista no final). Só João Pessoa, na Paraíba, e a fluminense Volta Redonda receberão os filmes em outro período (primeiro a sete de julho).

De todos os títulos programados, um é obrigatório: “Rapito” (rapto, sequestro) no original, mais uma realização Marco Bellocchio, de 84 anos. O filme ganhou, no Brasil, título ambíguo, mas – convenhamos – capaz de chamar atenção do público. E afastou-se da confusão que constituiria dar à narrativa bellochiana, o mesmo título de “Rapto” (“Le Ravissement”), realização da franco-iraniana Iris Kaltenbach (em cartaz no Brasil).

O título escolhido por André Sturm, da distribuidora Pandora, nos induz a acreditar que o Papa Pio IX, personagem do filme, é objeto de sequestro. O que ocorre é justamente o contrário. Sua Santidade comanda a Igreja Católica Apostólica Romana, durante o Oitocento peninsular, quando uma criança judia, batizada em templo católico, é sequestrada. Ou seja, arrancada do seio de sua família judia, portanto, não praticante da religião católica. Uma família que nada sabia do sacramento dado ao filho pequeno.

A história, ocorrida em Bologna, seria filmada por Steven Spielberg, realizador norte-americano de origem judaica. Ele acabou desistindo e os produtores buscaram o mestre Bellocchio para comandar a empreitada. Sábia decisão. Um italiano elabora história italiana com sua maestria demonstrada em três dezenas de filmes. Desde o perturbador “De Punhos Cerrados” (1965) até os magníficos e recentes “Vincere”, “Bom Dia, Noite” e “Exterior, Noite”.

O octogenário Bellocchio assemelha-se aos vinhos guardados nos melhores tonéis, quanto mais velho, melhor. A história que ele conta em “Rapito” é verídica. Tudo começa em 1858, no bairro judeu de Bolonha. Um menino de sete anos, Edgardo Mortara, é arrancado do convívio de sua família (pais e oito irmãos) por decisão do Papa Pio IX. Os dogmas da Igreja regem o inusitado sequestro da criança. Pelas leis católicas, quem é submetido ao batismo dentro de um templo católico só pode ser… católico. Este obtuso “procedimento” religioso permitia ao poder eclesiástico retirar uma criança de seu lar, tomá-la de seus pais, afastá-la de seus irmãos. Acima de tudo estava o sacramento do batismo.

Como a ama (católica) do pequeno Edgardo Mortara vira a criança adoentada, resolveu, de moto próprio, levá-lo, escondido, a um templo, onde ele foi submetido por autoridade religiosa ao sacramento na pia batismal.

Dali em diante, não tardará a hora do pesadelo da família Mortara. O batizado secreto será evocado pelos religiosos que virão, em nome do Papa, buscar o menino. Ele terá que ser submetido à educação católica. Ou seria considerado um apóstata. Este é o “rapto” que está no nome ao filme. O rapto de Edgardo Mortara. O Papa Pio IX, interpretado por Pablo Pierobon, terá papel de razoável destaque na trama (e brilhará no belo — e inocente — cartaz, no qual vemos o pontífice em seu trono, trazendo o menino Mortara, o cativante ator mirim Enea Sala, no colo). Já crescido, Mortara será interpretado por Leonardo Maltese.

Com a maestria costumeira, Bellocchio constrói complexo painel do que se passou na Bolonha oitocentista. Um menino judeu foi educado como servo de Deus e da Igreja Católica. E, depois de inúmeras tentativas de resgate empreendidas por sua família (em especial pela mãe desesperada), Edgardo Mortara irá ascender na hierarquia da Igreja Apostólica Romana, instituição que tem no Vaticano a sua força difusora.

“Ainda Temos o Amanhã”, de Paola Cortellesi

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O blockbuster de Paola Cortellesi, “Ainda Temos o Amanhã” (“C’è Ancora Domani”), foi reconhecido, na Itália, como “blockbuster autoral” e tornou-se um dos recordistas históricos de indicações (19) no Oscar peninsular, o Prêmio David di Donatello, atribuído pela Academia Italiana de Cinema.

Para se ter ideia do furor que o filme causou em seu país de origem, “Eu, Capitão”, de Matteo Garrone, escolhido para representar a Itália no Oscar de melhor filme internacional, com vaga garantida entre os cinco finalistas, obteve 15 indicações, seguido de “La Chimera”, de Alice Rorhwacher (com 13), “Rapito”, de Bellocchio (com 11), “Comandante”, de Edoardo Di Angelis, protagonizado pelo astro Gianfrancesco Favino (com 10) e “O Melhor Está por Vir”, a deliciosa comédia de (e com) Nanni Moretti (7 indicações).

Paola Cortellesi, atriz protagonista e realizadora de “Ainda Temos Amanhã”, converteu seis de suas 19 indicações em estatuetas. Foi eleita a melhor diretora estreante e a melhor atriz. Seu roteiro, escrito com Furio Andreotti e Giulia Calenda, derrotou os de “Eu, Capitão”, o grande vencedor da noite dos David, e de “Rapito”.

E mais: Emanuela Faneli foi laureada como atriz coadjuvante e dois troféus foram parar na estante da atriz-cineasta: o Prêmio David da Juventude e o Prêmio dos Espectadores. Este troféu era fava contada, pois o filme vendeu exatos 5.534.653. Bateu, em solo italiano, “Barbie” e “Oppenheimer”, campeões de bilheteria planetários, que tiveram o Oscar 2024 como poderosas vitrines.

“Ainda Temos Amanhã” é um drama, com pinceladas de comédia e musical, feminista, fotografado em preto-e-branco, empenhado em mostrar, no pós-Segunda Guerra Mundial, a trajetória de uma mulher, dona de casa romana, subjugada por marido tóxico. Ela irá, aos poucos, se libertando e empoderando-se. E sua emancipação pessoal acontecerá no ano em que a Itália, traumatizada pelo fascismo mussoliniano, promoverá o tardio advento do voto feminino (em 1946).

Os fãs do ator Gianfrancesco Favino (de “O Traidor” e do recente “Comandante”) poderão vê-lo em “A Última Noite de Amore”, de Andrea Di Stefano. Ele interpreta um policial às vésperas de sua aposentadoria, que se vê compelido a investigar a morte de um grande amigo. Dá um show na composição do personagem.

Professores deverão priorizar “Maria Montessori: Ensinando com Amor”, de Léa Todorov. Considerada um dos nomes máximos da educação mundial (ao lado de Piaget, Paulo Freire e outros), a criadora do método Montessori é vista, no filme, em seu encontro com a francesa Lili d’Aengy.

Mãe solteira, que se julga uma mulher de vanguarda, Lili vai viver na Itália. Lá, no alvorecer do século XX, conhecerá Montessori (1870-1952), que então implementava método revolucionário de educação infantil. Juntas, as duas mulheres vão conquistar seu lugar no mundo dos homens e fazer História. O longa tem como protagonista a atriz Jasmine Trinca, que esteve na edição de 2023 da Festa Italiana do Cinema, como convidada de honra. Ela é muito conhecida na Itália, mas no Brasil, é pequena a quantidade de cinéfilos capazes de identificá-la.

Os fãs da espanhola Penélope Cruz, atriz almodovariana, poderão vê-la em “L’Immensitá”, novo filme de Emanuele Crialesi. O filme disputou o Leão de Ouro no Festival de Veneza 2022. A produção aborda questões de gênero vividas por um adolescente. Crialesi, de 59 anos, causou sensação no circuito de arte brasileiro com “Respiro”, filme sensorial e de poderoso erotismo, que transformou Valeria Golino em estrela peninsular.

“Il Boemo”, de Petr Václav, é uma produção ítalo-tcheca, já lançada no circuito comercial brasileiro. Quem não o assistiu, deverá fazê-lo agora, pois trata-se de sólido mergulho no mundo da ópera, num tempo em que a Itália dividia (ainda divide?) com a Alemanha, a hegemonia no gênero.

Ao longo de 140 minutos, o longa-metragem de Václav conta a história do compositor e maestro Josef Myslivecek (1737-1781), o Divino Boemo (pois oriundo da Bohêmia tcheca), que morreu precocemente, e em condições terríveis, aos 43 anos.

Ao longo de duas décadas de movimentada e febril andança por reinos da Europa setecentista, ele viveu momentos de glória e causou frisson. Cortes de Nápoles, Bologna, Roma e da libertina República Veneziana o prestigiaram com seus poderosos mecenas. O maestro seria, também, bem-recebido na alcova de mulheres, algumas delas casadas, que o amaram com paixão. Mas a tragédia chegará: vítima de sífilis, o Bohêmio será visto, em parte do filme, com máscara que ocultará seu rosto deformado.

Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), dezenove anos mais jovem que o tcheco, manterá correspondência com este artista, que escolherá a (futura) Itália como segunda pátria. Além de concluir peças que o “Divino Boemo” deixara inacabadas, o prodígio austríaco, que também morreu cedo (aos 35 anos), dedicaria parte de sua breve vida a difundir os feitos musicais do hoje esquecido Maestro Josef Myslivecek.

Completam a programação do festival os filmes “Lubo”, de Giorgio Diritti, baseado no romance “Il Seminatore”, de Mario Cavatore, “Zamora”, do estreante Neri Marcorè, e “Enea”, de Pietro Castellitto (ambientado no submundos das drogas e focado na história de uma família em crise).

 

Festa do Cinema Italiano no Brasil
Em cartaz em São Paulo (Instituto Italiano de Cultura, Cine Belas Artes, Espaço Augusta, Satyros e CineSysten Frei Caneca), Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Vitória, Salvador, Fortaleza, Recife, Porto Alegre, Curitiba, Florianópolis, Caxias do Sul, Camaquã, Palmas, Maceió, Belém, Natal, Aracaju, João Pessoa, Niterói, Ribeirão Preto e Volta Redonda. Caxias do Sul e Camaquã receberão o evento pela primeira vez. Atenção: Volta Redonda e João Pessoa exibirão a mostra, excepcionalmente, entre 1º e 7 de julho.

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