“Divertimento” recria história de regente franco-argelina que criou orquestra na periferia de Paris

Por Maria do Rosário Caetano

O longa “Divertimento” tem duas mulheres em seu comando. Uma é a diretora Marie-Castille Mention-Schaar. A outra é a regente franco-argelina Zahia Ziouani, hoje com 46 anos e famosa por ter criado, na periferia de Paris, a Orquestra Juvenil Divertimento.

A cheffe d’orchestre, nascida em comuna distante do glamour parisiense, filha de pais vindos da Argélia, conseguirá realizar seu intento em 1998, dois anos depois da morte de um de seus inspiradores, o maestro romeno-alemão Sergiu Celibidache (1912-1996).

No filme de Marie-Castille, cabe ao ator francês (de origem dinamarquesa) Niels Arestrup interpretar o culto regente vindo do Leste Europeu, que triunfou na Alemanha e na França, somando admiradores no mundo inteiro. Em 1992, ele visitou o Brasil (São Paulo e Rio), onde regeu a Orquestra Filarmônica de Munique.

A participação de Niels Arestrup em “Divertimento” é das mais significativas, embora seu papel seja de coadjuvante. Além de regente, Celibidache foi um intelectual apaixonado por idiomas, pela Filosofia e pela Matemática. Ao escolher ator da grandeza de Arestrup, de 75 anos e presença em dezenas de filmes, a realizadora enfatizou a importância do maestro, também um imigrante, na formação da futura cheffe d’orchestre franco-argelina.

Niels Arestrup, vale lembrar, interpretou o líder da facção corsa no filme “O Profeta” (Jacques Audiard, 2009), no qual assumia a proteção do jovem detento Malik (Tahar Rahim), de origem árabe. Impossível esquecer do show do veterano ator e do jovem Rahim, que dali em diante transformar-se-ia numa das grandes estrelas do cinema europeu.

O sétimo longa-metragem de Marie-Castille, de 61 anos, acompanha, em formato de singelo drama juvenil-melômano, a juventude de Zahia Ziouani (interpretada com graça e frescor por Oulaya Amamra) e sua irmã gêmea, a violoncelista Fettouma (a lindíssima Lina El Arabi).

Em casa, os pais argelinos cercam as gêmeas de todos os cuidados e tudo fazem para que elas estudem música e desenvolvam seus talentos. Adolescente, Zahia iria frequentar o importante Liceu Racine. Foi lá que conheceu o Maestro Celibidache. No começo, ele foi franco com ela. Regência — entendia — não era ofício para mulher.

Ao disputar o Concurso de Besançon, a aspirante a regente acabará preterida por Lambert Lallemand, jovem bem-nascido. Mas seu talento e sua obstinação a levarão a dividir a batuta com o colega.

Quando a escolha se dá, em definitivo, pelo jovem regente Lallemand, Zahia Ziouani entra em depressão. Nem a irmã consegue confortá-la. Mas tudo passa. Ainda mais quando se tem 16 ou 17 anos. E, se fora pouco, os colegas do Liceu resolvem festejá-la com seus instrumentos, numa espécie de “serenata erudita”. Sob a janela da jovem, eles tocam a mundialmente famosa (e hipnotizante) introdução do “Bolero” de Ravel.

Resultado: Zahia recobra suas energias e retoma seu projeto de vida. Ela há de ser regente de orquestra. E será. Custe o que custar.

Depois de receber atenção de Sergiu Celibidache, que a preparará com seu método rigoroso, a jovem acabará formando, na periferia onde reside até hoje, a Orquestra Divertimento. E, na Sorbonne, prosseguirá seus estudos de Orquestração, Musicologia e Análise Musical (mas esta fase de sua vida não está no filme). Este tem alma juvenil e “censura” 12 anos.

O nome da orquestra regida por Zahia Ziouani batizou o filme de Marie-Castille (tanto na França, quanto no Brasil). Dezenas de jovens músicos, muitos vindos de bairros ricos de Paris, abraçaram coletivamente o sonho da franco-argelina, sempre incentivada pela irmã gêmea e pelos pais. Uma família de amantes da música erudita e orgulhosa de receber o Maestro Celibidache em seu lar periférico.

Com a adesão dos colegas do Liceu que aceitam aventurar-se (com algum medo, que inicialmente não escondem) em ensaios na periferia da capital francesa, tudo se torna mais fácil. A Divertimento se consolida na região de Pantin, comuna localizada na vizinhança de Seine-Saint-Denis, onde residem milhares de imigrantes vindos das ex-colônias do Magreb africano.

Hoje, o nome de Zahia Ziouani é conhecido em toda a França, Europa do Leste, no Egito, Tunísia e, claro, na Argélia, país natal de seus pais. Tanto que ela foi convidada para dirigir (e reger) a Orquestra Filarmônica de Jovens da Comunidade Árabe. E, no ano em que Argel foi escolhida “a capital da Cultura Árabe”, ela assumiu a função de regente-convidada da Orquestra Nacional Argelina.

Ao escrever o roteiro de “Divertimento”, a diretora Marie-Castille recorreu à ajuda de Clara Bourreau. A dupla preferiu adotar narrativa clássica, sem se ater aos problemas enfrentados pelos moradores (de origem magrebina) das periferias parisienses. Até porque, sua “história real” é um paradigma de sucesso. A realização de um grande sonho idealizado na adolescência.

As gêmeas Zahia e Fettouma conseguiram transformar-se, para alegria dos pais e orgulho da comunidade de imigrantes, em referências para milhares de jovens periféricos. E, ao triunfarem no circuito fechado da música clássica, puderam romper com os estereótipos que costumam exotizar os árabes (e-ou muçulmanos) na França branca e católica.

“Divertimento” é um filme que valoriza a arte e a inclusão, o papel da mulher e a força dos imigrantes. O faz sem grandes ousadias estéticas. Como um drama biográfico cheio de boas intenções e atento à valorização de grandes nomes da música erudita francesa. Em especial, Saint-Saëns e o já citado Maurice Ravel.

 

Divertimento
França, 2023, 110 minutos, 12 anos
Direção: Marie-Castille Mention-Schaar
Roteiro: Clara Bourreau e Marie-Castille Mention-Schaar
Elenco: Oulaya Amamra (Zahia Ziouani), Lina El Arabi (Fettouma Ziouani), Niels Arestrup (Maestro Sergiu Celibidache)
Produção: Marc-Benoît Créancier, Olivier Gastinel
Fotografia: Naomi Amarger
Direção de arte: Gwendal Bescond
Música: Elise Luguern
Montagem: Benoît Quinon
Figurino: Caroline Spieth
Distribuição: Imovision

 

FILMOGRAFIA
Marie-Castille Mention-Schaar (26 de janeiro de 1963)
Diretora, roteirista e produtora (Vendredi Film, em sociedade com Pierre Kubel e Frédéric Bourboulon)

2023 – “Divertimento”
2020 – “A Good Man”
2018 – La Fête des Mères”
2016 – “Le Ciel Attendra”
2014 – “Les Héritiers”
2012 – “Ma Première Fois”
2012 – “Bowling”

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