Nos cinemas, a hora e vez de “Othelo, o Grande” e do poder negro nos bailes do Black Rio

Foto: “Othelo, o Grande”, de Lucas H. Rossi

Por Maria do Rosário Caetano

Dois filmes – “Othelo, o Grande”, de Lucas H. Rossi, e “Black Rio! Black Power!”, de Emílio Domingos – chegam nessa quinta-feira, 5 de setembro, ao cinemas brasileiros. Ambos imperdíveis.

Rossi desenha incontornável retrato de um dos maiores atores da história do cinema, teatro, TV e cassinos brasileiros, o mineiro de Uberlândia, Sebastião Bernardes de Souza Prata (1915-1993).

Emílio faz de seu longa-metragem vitrine de poderosas imagens dos efervescentes bailes black que fertilizaram a autoestima da juventude afro-brasileira. E transformaram-se em passarela de novos comportamentos. Esses bailes, afinal, revelaram ágeis bailarinos, vestidos nos trinques para noites de gala, e dispostos a verter suor e prazer.

“Othelo, o Grande” é um dos maiores sucessos contemporâneos do documentário brasileiro. Um tributo ao ator, que trabalhou com Orson Welles, Joaquim Pedro de Andrade, Werner Herzog, Julio Bressane, Marcel Camus e Nelson Pereira dos Santos. Aliás, pertence a um filme de Nelson — “Rio Zona Norte” (1957) — a imagem escolhida por Rossi e equipe como envolvente estampa de seu belíssimo cartaz.

Em “Othelo”, o próprio ator conta sua história, potencializada por narrativa de montagem perfeita e trilha sonora arrebatadora.

Ninguém deve ir ao cinema esperando uma cinebiografia convencional, daquelas com começo (o nascimento), meio (as alegrias e-ou sofrimentos vividos) e fim (a morte), pois “Othelo, o Grande” tem outro projeto. Sua intenção é compor tecido narrativo que entrelaça imagens e sons (muito batuque) de tal forma imbricados, que nossos sentidos são tomados por verdadeira vertigem.

Ninguém será convidado a prestar depoimento sobre o artista que nasceu em Minas Gerais e morreu em solo francês, a caminho do Festival dos Três Continentes, em Nantes. Primeiro porque Rossi não queria “cabeças falantes” deitando falação sobre o valor do artista. Nem sobre os sofrimentos que ele viveu (e foram muitos). Nem sobre suas glórias. O baixinho de talento único contou, ele mesmo, nas entrevistas que concedeu ao longo de seus 78 anos de vida, tudo que viveu. Sem lamúrias, nem exibicionismo.

Ele sabia que tinha lugar garantido em nossa história artístico-cultural. Trabalhara em circo, em chanchadas da Atlântida (ao lado de Oscarito), no cinema social de Alinor Azevedo e José Carlos Burle (“Também Somos Irmãos”), no Cinema Novo (em filmes emblemáticos – de “Rio Zona Norte” a “Macunaíma”, seus preferidos), no Cinema Marginal (com Bressane e, depois, com o Sganzerla da fase wellesiana), nas telenovelas da Globo (“Feijão Maravilha”) e nos humorísticos da mesma emissora  (“Escolinha do Professor Raimundo”).

Quem resiste, ainda hoje, passados mais de 70 anos, à sequência do Balcão de “Romeu Oscarito” e “Julieta Othelo”, ela-ele com longas tranças louras, na chanchada “Carnaval no Fogo”?

Quem não se condói com Passarinho, o integrante de bando de ladrões que agoniza, sufocado por trágico vazamento de gás em “Amei um Bicheiro”?

E “Cachaça”, outro marginal, vindo da favela e integrado ao bando de Tião Medonho (Eliézer Gomes), em “Assalto ao Trem Pagador”? Nesse filme de Roberto Farias, Otelo faz um solo de antologia. Bêbado, ele se depara com o enterro de um anjo (criança pequenina). Trôpego, vocifera com voz pastosa sua revolta com a tragédia cotidiana da gente pobre dos morros.

Quem perguntasse a Otelo qual fôra seu maior papel no cinema, o que lhe trouxera mais alegrias (fiz essa pergunta a ele), a resposta seria: “Espírito da Luz, o compositor de sambas, protagonista de ‘Rio Zona Norte’”.

Além do momento em que Espírito exala alegria no trem da Central (antes, claro, de perder o filho tragicamente) – a já citada imagem impressa no cartaz de “Othelo, o Grande” – há que se evocar a cena em que ele apresenta uma nova composição a Ângela Maria (no papel dela mesma). A estrela se entusiasma e começa a cantar. O sambista Espírito da Luz imprime tamanho brilho em seu olhar, que nossos olhos também brilham.

Todas essas imagens e muitas outras estão no filme de Rossi, que tornou-se realidade graças ao talento de seu realizador e ao empenho de seu produtor, Ailton Franco. Muitos tentaram, antes, levar a vida de Sebastião Prata ao cinema. Mas não conseguiram. Apoiados na Globo, Canal Brasil e Globoplay, Rossi e Ailton conseguiram presentear os espectadores com obra que terá lugar cativo entre os 100 maiores documentários brasileiros de todos os tempos.

Significativo reconhecimento já se materializou em menos de um ano de existência do filme. “Othelo, o Grande” começou sua carreira pelos festivais e mostras (competitivos ou em caráter hors concours) já conquistando o Troféu Redentor de melhor documentário no Festival do Rio. Seguiu para a a Mostra Internacional de Cinema de S. Paulo. Depois para o 17º Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, Festival Aruanda, 3º DH Festival – Festival de Cultura em Direitos Humanos, 5º Pirenópolis Doc – Festival de Cinema Documentário, Roda Sesc de Cinemas Negros, Panorama Internacional Coisa de Cinema, em Salvador, Mostra O Corpo Negro 2024, do Sesc RJ, e 19ª CineOP (Mostra de Cinema de Ouro Preto). O filme fez sua estreia internacional no Festival Blackstar, nos EUA, considerado o Sundance do cinema negro. Passou pelo Balinale (Bali International Film Festival)… Paramos por aqui, para não nos assemelharmos a uma velha lista dos tempos do telefone de discagem manual.

“Black Rio! Black Power!”, de Emílio Domingos © Almir Veiga/Jornal do Brasil

“Black Rio! Black Power!”, o eletrizante longa documental de Emílio Domingos, não atinge a grandeza estética de “Othelo, o Grande”. Até porque seu projeto é menos ambicioso. Com personagens fascinantes (destaque absoluto para Dom Filó), que rememoram os anos de juventude, somados a material de arquivo, o filme se constrói com bailes de soul music realizados nos subúrbios do Rio de Janeiro, nos anos 1970.

Os encontros regados a música e danças acrobáticas (ou de rosto colado) serviram de fermento ao Black Rio, movimento fundamental para a afirmação da identidade afro-brasileira. E, claro, para a autoestima da galera, que ia aos bailes com vistosos cabelos black power, roupas transadíssimas, sapatos com solados reforçados e, em muitos casos, em chamativo bicolor (black and white).

Os sapatos dos black-fashion do começo dos anos 1970 merecem destaque à parte. Eram chamados de “cavalo de aço”, em homenagem a famosa telenovela da Rede Globo (Walter Negrão, 1973), com Tarcísio Meira, Glória Menezes e Betty Faria. Os pisantes exigiam fabricantes artesanais, pois feitos sob encomenda, com duas (ou três!!) plataformas (ou andares). Com tal complemento, os caras arrasavam, riscavam o chão com seus passos de dança, em devoção ao deus daquele universo, o “soul brother number one”, James Brown (1933-2006).

A influência da música e da cultura black estadunidense eram imensos nos bailes cariocas. O samba velho de guerra não falava aos corações e pulsões da moçada. O filme roça de leve no assunto.

Os jovens negros (e as moças negras, mais discretas nos salões) uniram-se em movimento de resistência política (o Black Rio), ao compreenderem a importância daquele cenário musical na luta por igualdade racial. O país vivia, nunca é demais lembrar, o auge do período repressivo do regime militar (Governo Médici).

O produtor cultural Dom Filó, ativo até hoje em sua militância, é a estrela do filme. Ele e, também, a equipe Soul Grand Prix, empresa que assinava a animação musical dos principais bailes.

As festas de som, moda e prazer, como não poderia deixar de ser, são embaladas por hits de James Brown e pelo som eletrizante da Furacão 2000. Aquele período acabou influenciando movimentos musicais-comportamentais contemporâneos, como o funk e o hip-hop.

 

Othelo, o Grande
Doc., RJ, 2024, 82 minutos
Direção: Lucas H. Rossi dos Santos
Roteiro: Lucas H. Rossi dos Santos (colaboração de Fermino Neto e Henrique Amud)
Produção: Ailton Franco Jr. (Franco Filmes)
Montagem: Willem Dias (AMC), Lucas H. Rossi dos Santos
Coordenação de Pesquisa: Beth Formaggini
Produção de Arquivo de Imagem: Laís Rodrigues
Supervisão Musical: Geraldinho Magalhães
Produção Musical: Ori Musiclab
Participação Especial: Zezé Motta
Coprodutoras: Globo Filmes, GloboNews, Canal Brasil, Riofilme e Baraúna Filmes
Distribuidora: Livres Filmes

Black Rio! Black Power!
Doc., RJ, 2024, 75 minutos
Direção e roteiro: Emílio Domingos
Fotografia: Leo Bittencourt, Rita Albano
Participação: Dom Filó, Carlos Dafé, Carlos Alberto Medeiros, Virgilane Dutra, Rômulo Costa
Produção: Espiral, Letícia Monte, Lula Buarque de Hollanda
Coprodução: Osmose Filmes e Riofilme
Distribuição: Taturana Mobilização

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