Mostra torna-se vitrine de 60 longas brasileiros, de “Ainda Estou Aqui” ao “O Rancho da Goiabada”, “Malu” e “Odradek”

Foto: “Malu”, de Pedro Freire

Por Maria do Rosário Caetano

Sessenta longas-metragens brasileiros, inéditos no circuito comercial, alguns com passagens por importantes festivais internacionais (“Ainda Estou Aqui” e “Manas”, em Veneza, “Baby”, em Cannes, “Betânia”, em Berlim, “Malu”, no Sundance) e nacionais (Gramado, Olhar de Cinema, Rio, Brasília) vão somar-se a 345 filmes estrangeiros. No total, a programação da quadragésima-oitava edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que começa nessa quinta-feira, 17 de outubro, soma 415 produções.

A cerimônia inaugural, no dia 16 de outubro, contará com a exibição (para convidados) de “Maria Callas”, do chileno Pablo Larraín. O diretor de “Tony Manero” mergulha nos derradeiros anos de vida da diva grega Maria Callas (1923-1977). O espaço escolhido – a belíssima e musical Sala São Paulo – reprisa, para cinéfilos e melômanos, experiência inesquecível. Muitos hão de lembrar que foi lá, em 1999, que Leon Cakoff e Renata Almeida promoveram histórica sessão do “Fausto”, de Murnau, clássico da era muda, com acompanhamento sinfônico (Orquestra da TV Cultura). Foi mágico. Mas a magia não voltou ao espaço-vitrine da Sinfônica paulista. Volta agora, pois a Sala São Paulo está completando 25 anos de atividades em prol da música erudita. E Callas, estrela maior do canto lírico, há de mobilizar a todos.

Durante duas semanas (até 30 de outubro), o festival exibirá programação que deixará os cinéfilos insones e mal-alimentados (alguns chegam a ver 80 filmes), tamanha a correria exigida dos maratonistas. Os títulos selecionados espalham-se por 29 salas.

A produção brasileira é das mais variadas. Vai do pequenino (e insurgente) “O Rancho da Goiabada – Ou Pois é meu Camarada Fácil, Fácil não é a Vida”, de Guilherme Martins, ao representante brasileiro na busca por vaga no Oscar internacional, “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles. Passando por surpresas como “Odradek”, de Guilherme de Almeida Prado, “Malu”, fascinante estreia de Pedro Freire na direção (com uma atriz em estado de iluminação, a mineira Yara de Novaes), “Pele de Vidro”, de Denise Zmekhol (atenção, paulistanos!), “Mário de Andrade, o Turista Aprendiz”, de Murilo Salles, o arriscadíssimo “O Clube das Mulheres de Negócios”, de Anna Muylaert, e “Retrato de um Certo Oriente”, de Marcelo Gomes, que há de causar sensação com seu “orgasmo ressucitatório”.

As citações feitas acima resumem-se aos filmes já vistos pela Revista de CINEMA. Eles se somam, ainda, a “Oeste Outra Vez”, de Erico Rassi, primeiro filme goiano a triunfar em Gramado, “Barba Ensopada de Sangue”, de Aly Muritiba, “Virgínia e Adelaide”, de Jorge Furtado e Yasmin Thayná (RS), ao pernambucano “Tijolo por Tijolo” e ao vibrante “Salão de Baile”. Todos justificam o ingresso.

No campo das expectativas, estão filmes que chegam com boas recomendações de festivais internacionais. A lista soma “Baby”, de Marcelo Caetano, “Betânia”, de Marcelo Botta (atenção, não se trata da cantora, tema de tantos documentários, mas de personagem maranhense), “Os Enforcados” (quem não está ansioso para assistir ao novo longa de Fernando Coimbra, o diretor do apaixonante “O Lobo Atrás da Porta”?), “Enterre seus Mortos”, de Marco Dutra, e “Continente”, do gaúcho David Pretto.

Outros realizadores são nomes que despertam interesse por suas inquietações criativas. Caso do cearense Pedro Diógenes (“Centro de Ilusões”), do mineiro Cao Guimarães (“Amizade”), dos paulistas Cristiano Burlan (“Ulisses”) e Eugenio Puppo (“Topo”), do pernambucano Camilo Cavalcante (“O Palhaço de Cara Limpa”), do carioca Luciano Vidigal (“Kasa Branca”), e da dupla Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, de “A Queda do Céu”, que vem somando prêmios.

Quatro realizadores marcam presença, este ano, na Mostra paulistana, com dois filmes cada um. Ou seja, são diretores que têm trabalhado mais que remador de Ben-Hur. Caso de Lírio Ferreira, que teve selecionados “Serra das Almas” e “A Última Banda de Rock”; dos cariocas Silvio Tendler, com “Brizola, Anotações para uma História” e “Justiça em Estado de Exceção”, e Márcia Farias, com os ficcionais “À Procura de Martina” (no elenco, a argentina Mercedes Moran) e “Os Quatro da Candelária” (parceria com Luis Lomenha), e do baiano Sérgio Machado, com “Três Obás de Xangô”, documentário sobre três tótens da cultura brasileira (Jorge Amado, Dorival Caymmi e o adotivo Carybé) e a animação “Arca de Noé”, parceria com Alois Di Leo, filme inaugural da Mostrinha.

“O Rancho da Goiabada”, de Guilherme Martins

Registre-se, aqui, que “Rancho da Goiabada”, título que constitui homenagem à famosa composição de João Bosco e Aldir Blanc, nos revela um diretor (Guilherme Martins) que, por enquanto, é uma pedra ainda por lapidar. O filme causou boa surpresa na última edição do Olhar de Cinema, em Curitiba, mas foi ignorado pelo júri oficial. Quem gosta de cinema de risco, não pode perder essa obra errante e híbrida, mergulho em vidas de brasileiros colocados à margem.

Se o filme de Guilherme Martins constitui-se como arriscada novidade, o que dizer de “Odradek”, de outro Guilherme, o de Almeida Prado, diretor de “Flor do Desejo”, “Dama do Cine Xangai” e “Dulce Veiga”?

O novíssimo longa do experiente Almeida Prado, de construção misteriosa, também é indicado aos que querem ser surpreendidos. Para começar, faz-se necessário lembrar sua duração: quatro horas. E sua trama de imensa ousadia e refinadas citações literárias e cinematográficas.

Tudo começa com o regresso da filha de rica família burguesa (vindo da Europa) a imensa e vazia mansão neoclássica (envolta em invisível e indefinida guerra). Na bagagem, a jovem traz brinquedo kafkiano (aliás, um conto de Kafka dá origem ao filme). A partir desse objeto (sem utilidade específica), todos (pai, mãe, filho, filha) começam a discutir sobre a vida e a descobrir suas próprias fraquezas e loucuras. Esse processo de autodescobrimento revelará fobias, hipocrisias e preconceitos familiares. E verdades íntimas.

No elenco, estão Natalia Gonsales, Cinthya Hussey, Oscar Magrini (em surpreendente desempenho cinematográfico) e Pedro Henrique Moutinho. Almeida Prado assina — além da direção — roteiro, montagem e produção. A fotografia é de Rafael Martinelli e a direção de arte de Akira Goto e Juliana Ribeiro.

“Malu”, protagonizado por Yara de Novaes, narra, com muita liberdade, os anos finais da atriz Malu Rocha (1947-2018), que trabalhou com Plínio Marcos e com os ex-maridos Zanoni Ferrite e Herson Capri. Atuou no “Hair” da era hippie e em peças de cunho político. Fez algumas poucas telenovelas e filmes. Mãe de Pedro Freire, que assina o roteiro e a direção, “Malu” traz recorte preciso – as vidas e relações tumultuadas de três mulheres: Malu Rocha (que carrega seu nome real), sua filha Joana, nome fictício (Carol Duarte) e sua mãe, Lili (Juliana Carneiro da Cunha).

Isolada em bairro periférico, a atriz sonha em transformar sua casa, sempre em obras, em um dinâmico centro cultural. Sonha, também, em construir um teatro no segundo piso. Enquanto as ideias fervem em sua cabeça, ela rememora um passado de transgressões artísticas e políticas, briga com a filha, que segue pelos mesmos caminhos artísticos, e quebra o pau com a mãe já idosa. E solta palavrões infinitos.

A protagonista tem no inquilino, o ator homoafetivo Timbira (Átila Bee), um amigo e confidente. Fuma maconha com renovado prazer e lembra experiências com substâncias mais pesadas. Tem acessos de “loucura”, que apavoram a mãe e a filha.

Pedro Freire construiu um filme corajoso, cheio de energia e com três mulheres-atrizes em rara comunhão artística. “Malu” dividiu o Troféu Redentor, do Festival do Rio, com “Baby”, de Marcelo Caetano. E viu suas três intérpretes laureadas – a protagonista (vale repetir, iluminada) Yara de Novaes e as coadjuvantes Juliana Carneiro da Cunha e Carol Duarte.

“Pele de Vidro”, de Denise Zmekhol (SP-EUA), conta muito da história social contemporânea do Brasil, de São Paulo em particular, tendo um edifício – o Pele de Vidro do título, criação do arquiteto Roger Zmekhol (1928-1976) – como fonte irradiadora.

A diretora, filha do arquiteto de origem libanesa, tece delicada reflexão pessoal e política sobre nossa tragédia social. O prédio, obra de ousadia modernista, causou furor quando foi inaugurado. Mas falências e o gravíssimo déficit habitacional do país levaram o Pele de Vidro a transformar-se em um decadente fantasma de vidros quebrados, instalações hidráulicas e elétricas detonadas, elevadores parados. Acabou reduzido a precaríssimo lar de moradores sem-teto. E vítima de final apocalíptico. Um documentário cheio de surpresas e que sabe, como poucos, unir o íntimo ao coletivo.

Do Olhar de Cinema curitibano e do Festival de Gramado chegam à Mostra filmes que merecem ser vistos pelos cinéfilos. Do primeiro, vale destacar “Mário de Andrade, o Turista Aprendiz”, de Murilo Salles, que promove originalíssimo mergulho na obra do escritor modernista; o documentário pernambucano “Tijolo por Tijolo”, de Quentin Delaroche e Victoria Álvares, o já citado “O Rancho da Goiabada” e o vibrante e dançante “Salão de Baile”, de Juru e Vitã.

“Odradek”, de Guilherme de Almeida Prado

“Tijolo por Tijolo” tem em sua protagonista – Cristina, moradora da periferia recifense – sua força motriz. Ela está grávida do quarto filho e sonha com acesso ao SUS para realizar, junto com o parto, uma laqueadura. Despachada e carismática, Cris se vira nos 30 e tenta monetizar suas aparições (divertidíssimas) nas redes sociais. Em resumo, firmar-se como influenciadora digital. E, junto com a família, erguer, tijolo por tijolo, sua casa. Tudo em plena pandemia.

“Salão de Baile” é um vibrante documentário sobre a dedicação de corpos dissidentes, não-binários e transmasculinos, a espaços onde bailarinos reinventam o ato de dançar, em performances impressionantes.

Quem for assistir ao filme da dupla queer (Juru e Vitã) há de notar que ele se constrói de forma complexa, sem oba-oba. Afinal, apresenta (algumas) contradições e dores dos praticantes da cultura do ballroon. E não esconde tema difícil – o envelhecimento. Para esse tipo de dança performática — que pode até reivindicar espaço nas Olimpíadas tamanho o esforço físico exigido — a idade chega como trágico entrave.

Do festival gaúcho, a Mostra apresentará o grande vencedor “Oeste Outra Vez”, de Erico Rassi, um new-western de rara concisão e beleza; o consistente “Barba Ensopada de Sangue”, fruto de parceria de Aly Muritiba com o escritor Daniel Galera, “O Clube das Mulheres de Negócios”, de Anna Muylaert, “Filhos do Mangue”, de Eliane Caffé, e “Virgínia e Adelaide”, de Jorge Furtado e Yasmin Thayná.

O cineasta portalegrense, que dedicou aos afro-brasileiros um filme obrigatório – “O Dia que Dorival Encarou a Guarda” – e deu protagonismo a Lázaro Ramos em “O Homem que Copiava” e “Meu Tio Matou um Cara” – valoriza a presença de Virgínia Leone Bicudo (Gabriela Correa), a primeira brasileira negra a dedicar-se à psicanálise. E o fez em profundo diálogo com a judia-paulistana Adelaide Koch (Sophie Charlotte). Para realizar o filme, que soma documentário e ficção, o gaúcho contou com a valiosa colaboração da cineasta Yasmin “Kbela” Thayná.

O festival paulistano conta com segmento dedicado a obras 100% inéditas. São dezenas de filmes de jovens realizadores (até segundo longa-metragem) vindos de todos os cantos do mundo. Nele, o Brasil se faz representar por cinco produções – “Todo Mundo (Ainda) Tem Problemas Sexuais”, de Renata Paschoal, discípula e amiga do saudoso Domingos Oliveira, “A Mulher que Chora”, de George Walker Torres, “Bicho Monstro”, de Germano de Oliveira, “Intervenção”, de Gustavo Ribeiro, e “Sinfonia da Sobrevivência”, de Michel Coeli.

 

Mostra Brasil

. “Malu”, de Pedro Freire (RJ)
. “O Rancho da Goiabada – Ou Pois é meu Camarada Fácil, Fácil não é a Vida”, de Guilherme Martins (SP)
. “Baby”, de Marcelo Caetano (SP)
. “Enterre seus Mortos”, de Marco Dutra (SP)
. “Manas”, de Marianna Brennand (PE-PA)
. “Lispectorante”, de Renata Pinheiro (PE)
. “Apocalipse nos Trópicos”, de Petra Costa (RJ)
. “Madeleine à Paris”, de Liliane Murri
. “Um Dia Antes do Outro”, de Valentina Homem e Fernanda Bond
. “O Clube das Mulheres de Negócios”, de Anna Muylaert (SP)
. “Filhos do Mangue”, de Eliane Caffé (RN)
. “Quando Vira a Esquina”, de Chris Alcazar
. “Praia Formosa”, de Julia de Simone (RJ)
. “No Céu da Pátria nesse Instante”, de Sandra Kogut (RJ)
. “Pele de Vidro”, de Denise Zmekhol (SP)
. “Câncer com Ascendente em Virgem”, de Rosane Svartman (RJ)
. “Os Enforcados”, de Fernando Coimbra (SP)
. “Continente”, de David Pretto (RS)
. “Centro de Ilusões”, de Pedro Diógenes (CE)
. “Ulisses”, de Cristiano Burlan (SP)
. “Topo”, de Eugenio Puppo (SP)
. “Kasa Branca”, de Luciano Vidigal (RJ)
. “A Queda do Céu”, Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha (RJ)
. “Amizade”, de Cao Guimarães (MG-SP)
. “O Palhaço de Cara Limpa”, de Camilo Cavalcante (PE)
. “Odradek”, de Guilherme de Almeida Prado (SP)
. “Aqueles Dias”, de Helio Goldstein (SP)
. “Precisamos Falar”, de Pedro Waddington e Rebeca Diniz (RJ)
. “Parque de Diversões”, de Ricardo Alves Jr (MG)
. “Betânia”, de Marcelo Botta (MA)
. “Malês”, de Antonio Pitanga (RJ)
. “Mambembe”, de Fábio Meira (RJ)
. “Idade da Pedra”, de Renan Rovida (SP)
. “Alma Negra, Do Quilombo ao Baile”, de Flávio Frederico” (SP)
. “Mário de Andrade, o Turista Aprendiz”, de Murilo Salles (RJ)
. “Retrato de um Certo Oriente”, de Marcelo Gomes (SP-PE)
. “Serra das Almas”, Lírio Ferreira (RJ)
. “A Última Banda de Rock”, de Lírio Ferreira (RJ)
. “Brizola, Anotações para uma História”, de Silvio Tendler (RJ)
. “Justiça em Estado de Exceção”, de Silvio Tendler (RJ)
. “À Procura de Martina”, de Márcia Faria (RJ)
. “Os Quatro da Candelária”, de Luis Lomenha e Márcia Faria (RJ)
. “Três Obás de Xangô”, de Sérgio Machado (SP-BA)
. “Arca de Noé”, de Sérgio Machado e Alois Di Leo (Brasil-India)
. “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles (RJ)
. “Entrelaços”, de Fernando Gronstein Andrade (SP)
. “A Vilã das 9”, de Teodoro Popovic (SP)
. “Obá e Sua Banda”, de Humberto Avellar (RJ)
. “Ocupa SP”, de Gustavo Ribeiro (SP)
. “Para Lota”, de Bruno Safadi (RJ)
. “Amor Radical – A Vida e Legado de Satish Kumar”, de Julio Hey
. “Sem Vergonha”, de Rafael Saar (RJ)
. “Oeste Outra Vez”, de Erico Rassi (GO-SP)
. “Barba Ensopada de Sangue”, de Aly Muritiba (SP)
. “Virgínia e Adelaide”, de Jorge Furtado e Yasmin Thayná (RS)
. “Salão de Baile”, de Juru & Vitã (RJ)
. “Tijolo por Tijolo”, de Quentin Delaroche e Victoria Alvares (PE)
. “A Herança”, de João Cândido Zacharias (RJ)

Brasileiros na competição Novos Realizadores

. “Todo Mundo (Ainda) Tem Problemas Sexuais”, de Renata Paschoal
. “A Mulher que Chora”, de George Walker Torres
. “Bicho Monstro”, de Germano de Oliveira
. “Intervenção”, de Gustavo Ribeiro
. “Sinfonia da Sobrevivência”, de Michel Coeli

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