Na Mostra de Gostoso, Gil e Wandi do Premê “dialogam” com Kubrusly no comovente “Milagre Sempre Há de Pintar por Aí”
Foto: Beatriz Goulart, Kubrusly, Eugênio Puppo e Matheus Senfeld © Sara de Santis
Por Maria do Rosário Caetano, de São Miguel do Gostoso (RN)
O jornalista Maurício Kubrusly, que vive processo de declínio cognitivo, centralizou, na companhia de sua mulher, a arquiteta Beatriz Goulart, todas as atenções na noite inaugural da décima-primeira edição da Mostra de Cinema de Gostoso, no aprazível balneário potiguar São Miguel do Gostoso.
O cinema ao ar livre, principal cenário do festival, estava lotado para assistir ao longa documental “Kubrusly: Mistério Sempre Há de Pintar por Aí”, de Caio Cavechini e Evelyn Kuriki, que a Globoplay disponibilizará ao público a partir de 4 de dezembro. Antes, o filme será exibido no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Todos os presentes no imenso cinema ao ar livre queriam ver Kubrusly, de 79 anos, afastado do programa “Fantástico”, da TV Globo, desde que foi tomado pelo Alzheimer (no caso dele, o diagnóstico é de demência frontotemporal, mesmo mal que acometeu o ator Bruce Willis).
Os médicos de “Kubra”, apelido familiar do jornalista, diagnosticaram, seis ou sete anos atrás, sua perda de memória, que foi se acentuando gradativamente (ele, além de não reconhecer as pessoas, já não consegue ler jornais e livros). Vive, cercado de CDs, vídeos e DVDs, ao lado da mulher Bia, num casarão à beira-mar, no litoral sul da Bahia.
A solenidade de abertura da Mostra de Gostoso contou com a presença da governadora potiguar, Fátima Bezerra, e de vários de seus secretários. Subiram ao palco, também, empresários e gestores governamentais. A chefe do executivo estadual, que faz questão, há anos, de prestigiar o festival gostosense, vestiu camiseta vermelha (ela é petista), mas sem palavras de ordem partidárias. O que sua singela indumentária quis publicizar foi gesto de estímulo ao turismo na região. Daí a convocação impressa no tecido – “Visite o Rio Grande do Norte”.
No plano político, a governadora só emitiu uma ideia-slogan, motivada claro, pelas manchetes dos jornais em torno de denúncias contra Kids Pretos: “nós temos nojo de ditadura, nós amamos a democracia”. Foi muito aplaudida pelo público.
A noite cinematográfica propriamente dita começou potiguar, ou seja, com a exibição do curta “Ministra do Lixo”, de Harcan Costa, integrante do Coletivo Nós do Audiovisual, criado há quase uma década, em São Miguel do Gostoso.
O documentário acompanha a trajetória da suíço-francesa Anna Raboud, que em 2003 descobriu o balneário potiguar, mas espantou-se com o descuido dos moradores (e turistas) no trato com o lixo. Tal qual um Dom Quixote de saias, ela começou a lutar por práticas ecológicas de limpeza das praias, ruas e bairros. Percebeu, porém, que o desafio era grande demais. Uniu-se, então, a uma moradora local, uma espécie de “ministra da Cultura”, e juntas (ela como “ministra do Lixo”) partiram para conscientizar a população de que “lugar de lixo é no lixo”. O filme foi aplaudido calorosamente pela plateia, simpatizante das ideias da “missionária do combate ao lixo e ao sedentarismo (entre idosos)”.
A grande atração da noite — o filme sobre “Kubra” — levou ao palco, além dos dois diretores (o casal, marido e mulher na vida real, Cavechini e Kuriki, ambos de 41 anos), Maurício Kubrusly, sereno em seu alheamento, Beatriz Goulart e integrantes da equipe técnica dessa produção Globoplay.
Quando as primeiras imagens de “Mistério Sempre Há de Pintar por Aí” bateram no luminoso e imenso telão do Cinema ao Ar Livre, uma referência brotou no imaginário dos cinéfilos. Eis aí um similar, só que em ritmo acelerado, do incontornável “A Memória Infinita”, da chilena Maite Alberdi (finalista ao Oscar 2023). Nesse filme, a diretora de “El Agente Topo”, também indicado ao Oscar, narra tocante história de amor de um casal (o jornalista Augusto Góngora e a atriz Paulina Urritia) atravessada pelo Mal de Alzheimer.
No decorrer dos quase 100 minutos do longa brasileiro, as diferenças irão se acentuar. Claro que os une (ao filme chileno e ao “Mistério”) uma história de delicada e dedicada paixão.
A arquiteta e arte-educadora Beatriz Goulart é o fio-terra que conecta o que resta de memória a “Kubra”. Ele não sabe viver sem ela. Quando Bia sai para algum compromisso de trabalho, Kubrusly fica inconsolável. Quer tê-la (”a pessoa”, a única que ele identifica) a seu lado, vai esperá-la no portão. Juntos, os dois ouvem música, dançam, abrem caixas, ela lê para ele, tenta estimular suas lembranças.
O filme de Maite Alberdi é mais político. E mais duro. Primeiro, porque Augusto Góngora, acometido pelo Alzheimer, tem acessos de fúria. Fica nervoso, indócil. “Kubra” parece sempre tranquilo. Foi assim em suas aparições públicas na noite inaugural da Mostra de Gostoso. A Revista de CINEMA acompanhou sua subida ao palco e, depois, entrevista de Beatriz Goulart ao G1 (ao lado dele). O que “Kubra” fez, além de admirar a companheira, foi pedir, calmamente, para ir embora.
Já Góngora esteve na linha de frente — como jornalista, apresentador de TV e escritor — do combate à ditadura chilena e a seu comandante-em-chefe, Augusto Pinochet. Daí a pegada política do filme hispano-americano. Já o combate de Maurício Kubrusly se processou no jornalismo cultural, em especial, no campo da música, sua maior paixão.
E será a música a força seminal do filme. Em especial, na sequência que unirá o casal Kubrusly ao cantor e compositor Gilberto Gil. Além de muito bem-resolvida cinematograficamente (o baiano é mesmo um Buda Nagô; a presença de espírito de Bia é notável), a sequência fornecerá belo subtítulo ao filme.
“Mistério Sempre Há de Pintar por Aí” é um fragmento de “Esotérico”, composição de Gilberto Gil que “Kubra” amou e ama (ainda). Mesmo em avançado estado de “declínio cognitivo”, ele é capaz de trazer do fundo da memória alguns esparsos versos da canção.
Na mesma sequência, Beatriz lerá alguns parágrafos de texto escrito, quatro décadas atrás, pelo crítico musical Maurício Kubrusly (sobre um disco de Gil). Ele ouve, imerso no vazio oceânico de suas frágeis memórias, com visível (possível) atenção.
Gil dirá que foi ele, sim, “Kubra”, quem escreveu aquela vigorosa apreciação crítica, impressa no jornal.
— “Eu?”, pergunta o jornalista em tom de gaiata surpresa.
— “Foi você, mas não foi você”, brinca o esotérico-parabolicamará vindo da Bahia.
São muitas as tiradas de humor, voluntárias e involuntárias, do documentário. E três delas têm que ser, obrigatoriamente, creditadas ao paulistano Wandi Doratiotto e aos baianos Tom Zé e Raul Seixas.
Wandi, do Premeditando o Breque, é um luminoso cantor-compositor-humorista. Ele vai, com a esposa, visitar o casal Kubrusly. Com mais jogo de cintura que o capoeirista Mestre Pastinha, Wandi entabula sinuoso “diálogo” com Kubrusly. Que afinal, em seus anos de jornalista e radialista, fez da defesa da Vanguarda Paulista (Premê, Itamar Assunção, Arrigo, Rumo, Língua de Trapo) profissão de fé.
O momento Tom Zé casa-se como mão-e-luva no jornalismo comportamental-musical praticado por “Kubra”. Ao visitar a casa do autor de “São Paulo mon Amour”, o jornalista percebe que as maçanetas estão cobertas, “enluvadas”. Por que?
O baiano de Irará explicará: agindo daquele jeito, ele impede que sua mão de violonista tenha que lidar com o metal resfriado pelo inverno paulistano. Ele, afinal, vem do calor da Bahia.
Com Raul Seixas, “Kubra” manterá papo “qualquer coisa”, mucho loco. O jornalista ouvira dizer que o baiano estava muito doente, a caminho da sepultura. O criador de “Ouro de Tolo” desmente o boato e entabula diálogo non sense, que só terá graça se ouvido/visto nas vozes (e imagens) do baiano e do carioca-paulistano. A sequência arrancou gargalhadas da plateia.
Durante 17 anos (de 2000 a 2017), Kubrusly foi a força-motriz de um dos mais populares quadros do “Fantástico”, revista dominical, já cinquentenária, da TV Globo. Algumas de suas hilárias reportagens serão destacadas no filme. E deverão rechear, ampliadas, as páginas do livro, soma de biografia e almanaque, que o jornalista Alberto Villas prepara para a Geração Editorial, de Luiz Fernando Emediato.
No debate do documentário, na Pousada dos Ponteiros, lotado por gente de cinema, estudantes de universidades potiguares e integrantes do Coletivo Nós do Audiovisual, Cavechini e Kuriki, destacaram que a intenção de seu longa-metragem nunca tivera alcance biográfico. Eles não quiseram somar testemunhos sobre a trajetória do jornalista carioca. “Não fomos atrás de pessoas que falassem sobre a íntegra da carreira profissional de Kubrusly”.
“Nosso propósito” — explicaram – “era registrar o momento vivido pior ele, que passa por processo de declínio cognitivo, ao lado de sua companheira, nossa parceira em todos os momentos”. A parte biográfica (o trabalho dele nos diversos veículos em que atuou, no Jornal da Tarde, na revista Somtrês, em emissoras de rádio, como a Excelsior) ficará para o projeto editorial.
Evelyn Kuriki, que trabalhou por 14 anos com Kubrusly, no “Fantástico”, fez questão de citar aquela que ela considera a mais incrível das reportagens televisivas do jornalista, a mais fertilizadora: em meados da década de 1980, ele foi entrevistar a turma do Grupo Ornitorrinco, responsável pela montagem de “Ubu Rei”, de Alfred Jarry.
“De repente” — detalhou — “Kubrusly estava no meio do processo, como se fosse um dos atores da trupe. Foi lá e fez, com muito humor, sua reportagem. Foi a primeira matéria televisiva dele, um exemplar do jornalismo participativo, muito valorizado naquela época, hoje nem tanto”.
Caio Cavechini, por sua vez, destacou o final do filme, no qual Beatriz Goulart narra experiência espiritual vivenciada por um de seus ex-maridos (“Kubra”, o quinto, é seu companheiro há 21 anos). No centro da história está uma divindade afro, Obaluaê.
Quem assistir ao documentário de Caio e Evelyn, na Globoplay, a partir do próximo dia 4, entenderá que, além da beleza do verso “Mistério sempre há de pintar por aí”, sua escolha tem tudo a ver com a espiritualidade evocada por Bia e o ex-marido, um seguidor de cultos afro-brasileiros. Mesmo sabendo que Maurício Kubrusly, seu marido atual e suposto beneficiado da espiritualidade de Obaluaê, era (é) “um agnóstico”.
Por fim, uma recomendação: prestem atenção à sequência dedicada à filosófica (e poeticamente bem-humorada) “Felicidade”, do genial Luiz Tatit. Ela ajuda a compor a natureza de “Kubrusly: Mistério Sempre Há de Pintar por Aí” — um documentário sobre memória e a indestrutível (pelo menos até agora) força do cancioneiro popular brasileiro.
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