“Emilia Pérez”, o maior concorrente de “Ainda Estou Aqui”, é um torpedo queer de assinatura “almodaudiard”
Por Maria do Rosário Caetano
“Emilia Pérez” é a pedra no sapato de “Ainda Estou Aqui”, o filme que representa o Brasil na disputa por um Oscar de melhor produção internacional.
O décimo longa do veterano Jacques Audiard, de 72 anos, transformou-se em verdadeiro fenômeno, que vem arrebatando fãs apaixonados (e alguns detratores). No Globo de Ouro foi, pasmem, o recordista de indicações (dez), batendo pesos-pesados como “O Brutalista” (sete), “Conclave” (seis), “Anora” e “A Substância” (cinco, cada). Conseguiu cinco vezes mais indicações que o filme de Walter Salles (finalista como melhor longa internacional e melhor atriz dramática para Fernanda Torres).
Em Cannes, o hiper-híbrido francês, fruto da soma de melodrama-musical-comédia-
A crítica francesa se encantou com o filme. Foram fartas as cinco estrelas a ele atribuídas (por 22 veículos, puxados por Band à Part) e quatro (de publicações influentes como Le Monde, Libéracion, Positif e do comunista L’Humanité). Só a Cahiers du Cinéma, que não suporta os filmes de Audiard, destoou com uma mísera e solitária estrela.
Vale destacar saboroso trecho da crítica de Nicolas Schaller, do L’Obs (Le Nouvel Observateur), que se fez acompanhar de quatro estrelas: “Musical cheio de vida, frisson de série noir, gracinhas de telenovela e lágrimas de melodrama, ‘Emilia Pérez’ é uma bomba queer. De Almodaudiard!”
Bomba nesse caso, vale a redundância, tem sentido explosivo-positivo, não pejorativo, como no Brasil. Aqui, quando dizemos que um filme é uma bomba, queremos dizer que não vale nada.
O neologismo “Almodaudiard” é dos mais pertinentes. O parisiense Jacques Audiard mergulhou fundo no universo do Pedrito Almodóvar dos tempos loucos da “Movida Madrilenha” e dialogou, em especial, com o apaixonante, maduro e transgressor “Tudo Sobre minha Mãe” (1999), obra-prima do manchego.
Curioso que Audiard tenha realizado seu novo filme justo no momento em que Almodóvar realizava seu trabalho mais previsível, comportado e esticado — “O Quarto ao Lado“, detentor de imerecido Leão de Ouro em Veneza. Um curta ou média-metragem contaria, tranquilamente, a história de duas amigas, uma delas ocupada com seu processo de eutanásia.
O primeiro longa-metragem falado em inglês do mais badalado cineasta da Espanha contemporânea teve desempenho medíocre na lista de indicações ao Globo de Ouro (apenas uma, para Tilda Swinton, melhor atriz de drama).
Audiard, conhecido como realizador de tramas clássicas e sociais (ou psicológicas), resolveu dar uma de Almodóvar e mergulhar em terreno por onde nunca transitara. Escolheu como sua protagonista um chefe de cartel de drogas sintéticas, Juan del Monte, o Manitas, disposto a fazer sua transição para transformar-se na esfuziante Emilia Pérez. Uma linda mulher mexicana, uma femme fatale.
A trama do recordista de indicações ao Globo de Ouro é feita de surpresas. Uma advogada, Rita Mora Castro (a avatariana Zoe Saldaña), é sequestrada pelo cartel do mexicano Manitas. Amargurada com o desdém de seus empregadores, incapazes de incrementar sua carreira profissional, ela acabará topando parada muito doida: produzir a “morte” de Manitas, de forma que ele possa, clandestinamente, fazer sua transição no Sudeste Asiático.
Há um porém: o mafioso deseja que sua esposa, a lindinha e descompensada Jessi (Selena Gómez) tenha amparo financeiro e todas as facilidades para continuar criando os filhos pequenos de ambos.
Bem que o Dr. Waserman (Mark Ivanir) prevenira a advogada Rita: ele consertaria o corpo de Manitas, mas não sua alma. E será a alma maternal de Emilia Pérez, transformada em mulher sedutora e generosa filantropa, que trará mais surpresas ao vibrante e provocador filme de Audiard.
Para contar essa história tão doidona, o diretor-roteirista francês contou com a colaboração do romancista Boris Razon, que lhe emprestou personagem de seu livro “Écoute”. E com os co-roteiristas Thomás Bidegain, Léa Mysius e Nicolas Livecchi.
Os cinco ficcionistas deixaram fluir, portanto, suas imaginações ao engendrar uma das tramas mais inusitadas do cinema de arte contemporâneo. A ponto do crítico espanhol Carlos Boyero (tema do ótimo longa documental “O Crítico”, de 2022) se perguntar, estupefato: “quais teriam sido as imaginativas e excessivas substâncias ingeridas pelo criador (Audiard) para que se lhe ocorresse este argumento?”
A trama de “Emilia Pérez” é tão livre e abusada, que permitiu ao alquimista francês amalgamar mistura de estilos os mais diversificados. No começo, supomos, assistiremos a filme de gângster com fartas doses de cinema noir. Mas aí entram as inserções musicais de feitio brechtiano (a anos-luz do catártico musical hollywoodiano).
Logo concluíremos que Audiard e seus roteiristas estavam dispostos a enfiar o pé na jaca. Ou melhor, no melodrama. Sim “Emilia Pérez” é, também, um filme sobre amor materno-filial. E com momentos de comédia.
Pasmem, tem até momentos documentais. O melhor deles há de encantar a quem conhece a caótica e exótica Ciudad de México. Um caminhãozinho percorre as ruas da capital asteca comprando de tudo: colchão, liquidificador, fogão, sofá velho etc., etc.
Ao somar propostas tão díspares, “Emilia Pérez” chega a resultado milagroso. Se constrói como uma louca e coloridíssima ópera popular. Nos faz acreditar em sua trama, em seus personagens paroxísticos, em sua utilização de canções e coreografias inusitadas. E nos faz rir. Não dos personagens, nunca ridicularizados, mas de suas situações desconcertantes.
O que nos fascina nesse décimo filme de Audiard, que tinha tudo para dar errado (principalmente pela carreira pregressa do parisiense), é sua indomável vitalidade.
A estreia brasileira de “Emilia Pérez” está agendada para o dia seis de fevereiro.
Emilia Pérez
França, 2024, 2h10’
Direção: Jacques Audiard
Elenco: Karla Sofía Gascón, Zoe Saldaña, Selena Gomez, Adriana Paz, Edgar Ramírez, Mark Ivanir
Roteiro: Jacques Audiard, Thomás Bidegain, Léa Mysius, Nicolas Livecchi e Boris Razon
Fotografia: Paul Guilhaume
Trilha sonora: Clément Ducol (com colaboração de Camille)
Coreografia: Damien Jalet
Custo: 20 milhões de euros
Público na França: 1.060.788 ingressos
Lançamento no Brasil: 6 de fevereiro de 2025
FILMOGRAFIA
Jacques Audiard (Paris, 30 de abril de 1952)
2024 – “Emilia Pérez”
2021 – “Paris, 13º Distrito”
2018 – “Os Irmãos Sisters”
2015 – “Dheepan – O Refúgio”
2012 – “Ferrugem e Osso”
2009 – “Um Profeta”
2005 – “De Tanto Bater meu Coração Parou”
2001 – “Sur mes Lèvres”
1996 – “Um Herói Muito Discreto”
1994 – “O Declínio dos Homens” (Régard les Hommes Tomber”)