“Iracema – Uma Transa Amazônica”, cult cinquentão, encanta o público do Panorama de Cinema da Bahia
Foto: Conceição Senna e Edna de Cássia, em cena de “Iracema – Uma Transa Amazônica”
Por Maria do Rosário Caetano, de Salvador (BA)
O cineasta Jorge Bodanzky, que participou, ao lado da atriz Edna de Cássia, da cerimônia de abertura da vigésima edição do festival Panorama Internacional Coisa de Cinema, contou ao público baiano que “Iracema – Uma Transa Amazônica”, realizado há 50 anos, voltará em breve aos cinemas brasileiros.
“Por enquanto estamos fazendo o circuito de festivais”, anunciou. Mas, “depois, a Gullane+, nossa nova distribuidora, lançará o filme no circuito de salas de arte e ensaio. Na etapa seguinte, ele chegará ao streaming”.
“Iracema”, que Bodanzky dirigiu na Amazônia, em 1974, ao lado do baiano Orlando Senna, mobilizou o público soteropolitano. Uma das quatro salas do Cine Glauber Rocha estava lotada para rever (ou conhecer) o filme. Foi exibida cópia restaurada em 4k, a partir de negativos originais da ZDF, emissora alemã que o encomendou à Stop Filmes, pequena produtora de Bodanzky e seu sócio Wolf Gauer. Público significativo ficou para o debate com o cineasta e sua protagonista, a paraense Edna de Cássia.
Antes da sessão, o público, que abarrotou o hall do Cine Glauber Rocha, assistiu a vibrante apresentação do Coletivo Rumpilezzinho, formado por jovens músicos integrados ao Laboratório Musical Rumpilezzinho, criado pelo saudoso maestro Letieres Leite. O coletivo explora a riqueza da música de matriz africana, incorporando sopros, percussão, instrumentos harmônicos e cordas. No repertório, estão “composições instantâneas”, que se guiam pelos princípios da metodologia UPB (Universo Percussivo Baiano). A jovem trupe investe em elementos de matrizes africanas, da Música Popular Brasileira e da Diáspora Africana global.
Foram dois os filmes que abriram a primeira noite do XX Panorama Coisa de Cinema. Além do longa de Bodanzky e Senna (no núcleo histórico), foi exibido “A Queda do Céu “, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha. Este longa documental, que integra o núcleo contemporâneo do festival, deu início a competição brasileira.
Ao apresentar os dois filmes, os criadores-diretores do Panorama Coisa de Cinema, Cláudio Marques e Marília Hughes, marcaram posição com discurso conciso e provocador: “Estamos muito felizes com os 20 anos de história do Panorama. E com o Oscar, o primeiro conquistado pelo cinema brasileiro (por “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles)”. Mas, “temos que criar novas ideias e logísticas. É preciso que Lula, Jerônimo e Bruno Reis (presidente, governador da Bahia e prefeito de Salvador), ao lado de seus ministros e secretários, sejam vistos entrando em salas de cinema para apreciar estreias brasileiras e baianas”.
Para arrematar: “É preciso mostrar à população a importância de assistirmos aos filmes nacionais. Cinema é arte e diversão, mas também indústria, emprego e renda. Queremos muito mais que um Oscar. Queremos as salas de cinema cheias o ano todo. Queremos que o filme nacional encontre o seu público. O Panorama segue em sua luta, desde sempre, pelo cinema nacional nas salas de cinema”.

Após a sessão de “Iracema – Uma Transa Amazônica”, Edna de Cássia, de 65 anos, e Bodanzky, de 82, reviveram a experiência das filmagens realizadas em plena ditadura militar e justo na região onde forças repressivas aniquilavam a Guerrilha do Araguaia.
“Eu era diretor de fotografia e repórter fotográfico”, lembrou Bodanzky. “Fui à Amazônia realizar ampla reportagem sobre o que se passava na região para a revista Realidade. O que vi me deixou muito impressionado — o uso irregular e conflituoso da terra, o trabalho escravo e a prostituição. Aliás, o que mais me impressionou acontecia nos postos de gasolina, onde caminhoneiros abasteciam seus veículos e se aproximavam das ‘meninas da estrada’, jovens ocupadas pela prostituição”.
“Fizemos contato com a ZDF alemã” – detalhou Bodanzky – e falamos do nosso desejo de realizar um filme sobre essas questões. Mostrei 20 minutos de imagens, captadas em Super-8, aos alemães, que ficaram impressionados. Mas havia um problema: o espaço de exibição que eles dispunham e podiam nos oferecer era destinado à ficção. Por isso, me pediram um roteiro”.
Bodanzky procurou o amigo Orlando Senna, que esboçou a necessária trama ficcional (tendo um caminhoneiro e uma jovem que se prostitui como protagonistas). Juntos com a atriz Conceição Senna, a trinca partiu em busca de adolescente que pudesse dar vida a Iracema. Encontraram a jovem Edna de Cássia, na faixa etária desejada (15 anos), num programa comandado por um radialista, Paulo Ronaldo.
“Fui escolhida”, relembra Edna de Cássia, que terá sua trajetória rememorada, aqui no Panorama Coisa de Cinema, com o documentário paraense “Edna, 50 Anos Depois de Iracema”, de Alessandro Campos. O filme, de 43 minutos, relembrará com calma o que a atriz sintetizou no debate: “o Jorge e o Orlando procuraram minha mãe, que ficou muito temerosa. Eu era menor de idade, como é que ia ‘fazer um filme’ com aqueles desconhecidos?”.
A dupla de jovens cineastas (Orlando tinha 34 anos e Bodanzky, 31) colocou Conceição Senna em contato com a mãe de Edna. Que cedeu, desde que Conceição se responsabilizasse, integralmente, pelo destino da adolescente.
“Conceição foi uma segunda mãe para mim, me ensinou tudo, me ensinou a improvisar, cuidou de mim, foi minha mãe-escudo”, testemunhou Edna de Cássia. E, para tranquilidade da genitora da atriz estreante: “eu entrei ‘celada’ como uma latinha de refrigerante e saí ‘celada’. Ninguém rompeu o lacre da latinha”. Traduzindo: ela entrou virgem nas filmagens e assim se manteve durante os escaldantes 30 dias de andança pelas estradas poeirentas que circundavam a região de Marabá. Sem esquecer as impactantes filmagens no Círio de Nazaré, em Belém.
Bodanzky contou que, para restaurar a cópia integral de “Iracema – Uma Transa Amazônica”, foi necessário somar esforços germânicos e brasileiros. “Recorremos aos negativos preservados pela ZDF alemã, mas nos deparamos com um problema — a cópia exibida pela emissora tinha quatro minutos a menos que a brasileira, a que correu mundo. Eles editaram (eliminaram) cenas na introdução do filme e aquela que mostra um soldado batendo na Iracema. Não encontramos o som que acompanhava tais momentos. Eles estavam nos negativos depositados na Cinemateca Brasileira”. Deu-se a soma e a restauração pôde ser feita em sua inteireza e plenitude.
Edna de Cássia segue sua vida. E, agora, assume, ao contrário da personagem Iracema, suas raizes indígenas. Quem conhece o filme lembra-se de diálogo dela com Tião Brasil Grande (Paulo Cesar Pereio). Ele a repreende pelo uso de excessiva maquiagem e diz que ela “é índia”. Ela retruca: “sou branca”. Esta sequência, uma das mais reveladoras do filme, trazia (já que improvisada), sentimento verdadeiro da jovem Edna (de Cássia) Cerejo.
“Reconciliei-me com minha origem (étnica). Não fiz o exame de DNA para saber se sou 100% indígena. Quero fazer. Naquela época, talvez por preconceito, eu não gostava de ser chamada de índia. Não me sentia indígena. Hoje, não me incomoda mais. Minha cabeça mudou muito nesses 50 anos, desde que filmamos ‘Iracema’. Ah, também não gosto que me chamem de Iracema. E sim pelo meu nome artístico Edna de Cássia. O filme me deu muito. Não em termos financeiros, pois ganhei uns caraminguás. Mas me tirou das conchas, apesar de que, nem em meus piores pesadelos, pensei em ser atriz. Mas hoje, as Universidades me convidam para falar do filme, os alunos me procuraram, os jornalistas também. Foi uma experiência muito enriquecedora”.
Jorge Bodanzky segue trabalhando como um remador de Ben-Hur. Faz um filme atrás do outro e, depois da abertura do Panorama Coisa de Cinema, arrumou as malas rumo a São Paulo, onde participará da mostra competitiva do Festival É Tudo Verdade, com o longa documental “Um Olhar Inquieto: o Cinema de Jorge Bodanzky”, realizado por Liliane Maia e por ele. Tem dirigido séries para TV e viu, satisfeito, seu rico acervo de fotos fixas ser adquirido pelo Instituto Moreira Salles. Que promoveu grande exposição de algumas de suas mais instigantes imagens.
Orlando Senna, por enquanto preso a uma cadeira de rodas (por causa de tombo que avariou sua coluna), também segue dedicado ao audiovisual e a seus livros. Dirigiu o longa “Longe do Paraíso”, que lançou na Bahia, alguns meses atrás. Quem assistir ao cult “Iracema”, verá o baiano de Lençóis também como “ator”. Ele interpreta piloto de avioneta, com estampa de galã, encarregado de levar duas prostitutas (interpretadas por Conceição Senna e Edna de Cássia) a uma fazenda. Elas deverão prestar serviços sexuais a dezenas de homens que ali vivem e trabalham.
Rever “Iracema – Uma Transa Amazônica”, passadas cinco décadas, continua resultando em experiência radical. Ninguém, como o pequeno exército louco de Bodanzky-Senna-Gauer realizou filme tão ousado, corajoso, rebelde e (sim) desesperador, quanto este mix de documentário e ficção, ficção e documentário. Uma porrada visual e auditiva, que nos inquieta desde os tempos de ditadura militar. A ditadura que interditou o filme, em 1974, sob esdrúxulo argumento: seria uma “produção estrangeira, alemã, não brasileira”. Na verdade, sob tal argumento, vetava o doloroso retrato de uma Amazônia vista como ufanista vitrine do Brasil Grande do presidente Emílio Garrastazzu Medici, pai da estrada Transamazônica.
Por fim, um registro: o festival baiano, que acontece também em Cachoeira, prossegue até dia 9, em plena Praça Castro Alves soteropolitana, aquela que “é do povo, como céu é do avião”. Uma praça plantada na Rua Chile, no coração da velha Bahia. Uma rua revitalizada, primeiro, pelo Cine Glauber Rocha, com suas quatro salas, foyer e varanda. Depois, por dois hotéis estreladíssimos, o Fasano (no belo edifício A Tarde), e o Fera Palace Hotel, que renovou o histórico Palace.
Por contar com tais equipamentos, a rua, que deságua no Pelourinho, está enquadrada na categoria “iluminadíssima” e sob intensa vigilância. Quem imaginaria que o velho Cine Guarani se transformaria no Cine Glauber Rocha e que este ganharia vizinhos tão sofisticados quanto os hotéis Fasano e Fera?
Gentrificação de parte da cidade? Em parte, sim. Mas os prédios não foram derrubados e substituídos por construções high-tech. Foram preservados e modernizados por dentro. E na companhia de um imortal Castro Alves de bronze, que agora pode olhar para seus novos e esculpidos companheiros — Gregorio de Mattos, o boca do inferno, e a dupla Dodô e Osmar, que inovou o carnaval baiano. Eles enfeitam, com suas figuras metálicas, o pátio externo do Cine Glauber Rocha.
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