“Samba Antes do Samba” une bisneta de Tia Ciata a Roberto Mendes em busca das origens do famoso ritmo brasileiro
Por Maria do Rosário Caetano, de Salvador (BA)
O documentário “Samba Antes do Samba”, de Paulo Alcoforado, tem, além de título poderoso, muito a dizer. E parte de uma ótima ideia — unir o multiartista Roberto Mendes, santo-amarense como Bethânia e Caetano, a Gracy Moreira, bisneta de outra santo-amarense famosa, Tia Ciata. Juntos, os dois conversam sobre a história do samba, antes dele se transformar em expressão da alma musical brasileira e ter o Rio de Janeiro como sua principal fonte irradiadora.
Como a bisavô, célula mater do samba, a bisneta de Tia Ciata vive no Rio. Gracy sabe tudo da história do ritmo que nos identifica culturalmente. Roberto Mendes, de 72 anos, exímio violinista e compositor, nem se fala. É um filósofo do samba.
Pois é na mesa de um casarão santamarense que os dois sambistas vão prosear e nos introduzir nos tempos da chula e de outros ritmos que conformaram o samba. O longa documental é um dos cinco integrantes da competitiva baiana do festival Panorama Internacional Coisa de Cinema, que acontece em Salvador e Cachoeira (município situado alguns quilômetros depois de Santo Amaro) até essa quarta-feira, 9 de abril.
Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, nasceu em 1854. Aos 22 anos, portanto, ainda nos tempos da escravatura, deixou Santo Amaro rumo à capital do Império, o Rio de Janeiro. Mãe de santo e curandeira, ligada ao candomblé, ela viveria o resto de seus dias na cidade adotiva. Morreria aos 70 anos, em 1924, conhecida por seus feitos musicais (sua casa virou ponto de encontro dos grandes nomes do samba), e dons curativos (tratou do presidente Wenceslau Brás, livrando-o de males pelos quais fora desenganado pelos médicos). A baiana de Santo Amaro transformar-se-ia em uma lenda.
Já no começo do filme, uma composição de Roberto Mendes, em parceria com Jorge Portugal, enuncia, em um de seus versos, o “Samba Antes do Samba”.
No longa documental “Samba Riachão” (2002), o cineasta Jorge Alfredo Guimarães assegurou, com todas as letras, que “o samba nasceu na Bahia” e é “baiano, sim senhor!” Mendes é mais cauteloso e suave em suas afirmações. Diz a Gracy Moreira que o samba teve origem na Bahia, mas não pode ser visto separado do que se processou no Rio de Janeiro, em torno de Tia Ciata. Foi lá que o ritmo se estruturou, conformando-se como parte da alma rítmica brasileira.
“Samba Antes do Samba” se desenvolve ao longo de 96 minutos, empenhado em mostrar ritos de fé e rodas de chula (e de “semba”) em áreas remanescentes de quilombos em São Braz e do Acupe (Alto do Cruzeiro), distritos de Santo Amaro. As filmagens foram realizadas durante o Tríduo de Santo Antônio.
“A tradição do que estamos chamando de ‘Samba antes do Samba’” — explica Paulo Alcoforado — “atravessa séculos de transformações e se lastreia no pacto coletivo dessas comunidades pretas santo-amarenses, tão bem expresso nas dinâmicas da roda de chula”. E, também, “na modelagem de sua forma de reza, na extração do dendê, preparo e consumo de seus derivados, e na formação histórica da viola de percussão ferida”. Guardem esse conceito: “percussão ferida”. Ele é muito importante para Roberto Mendes e para o filme.
Depois de trocar ideias com Gracy sobre o que teria motivado a jovem Hilária Batista, uma mulher preta, filha de santo, de apenas 22 anos, a se mudar para o Rio de Janeiro, nos idos de 1876, Roberto nos dará verdadeira aula sobre “o samba antes do samba”.
Para ele, foi uma felicidade trocar ideias com Gracy e viver todo o processo de realização do filme, que chegará a seu ápice quando nos oferecer descrição visual e sensorial do processo (por mãos muito hábeis) do fabrico do azeite de dendê, fundamental na culinária afro-baiana. Haverá uma mesa centrada numa moqueca de siri, banhada em dendê, daquelas de dar água na boca. Registre-se que, nessa sequência, as filmagens não resultaram tão eficientes quanto a da transformação dos cachos do coquinho de dendê em azeite.
Roberto Mendes lembra que “o ‘samba antes do samba’ é uma tradição que se forma no meio do século 19, quando chegaram ao Recôncavo Baiano as violas machete e três-por-quatro”. Em seguida, “elas se encontraram com o batuque, que já somava 200 anos de história”. Aí se dá “a formação dessa coisa belíssima que é o canto violado, que vem do labor, do canto de labor na cana-de-açúcar, essa comemoração das safras”. A tradição se forma, também, conta o compositor, “dentro das rezas de Santo Antônio, São João e de Cosme e Damião”.
O artista conviveu, durante as filmagens, com violeiros que nos ajudam a entender o processo revelador das origens do samba”. São músicos negros que tocam e cantam para motivar as mulheres sambar. Se homens ocuparem o terreiro e começarem a dançar, eles interrompem o canto. Afinal, este existe para seduzir as mulheres que dançam.
Keyti Souza, produtora executiva do documentário, conta que “as que filmagens se processaram na comunidade de São Braz, um quilombo de cultura solidária”, no qual “a união e respeito à reza e ao samba são muito fortes”. E fala da alegria de “contar com a presença de Gracy Moreira, descendente de Tia Ciata, pois ela nos aproxima dessa herança cultural construída além Bahia”. E ter “Roberto Mendes como nosso condutor ao universo de uma cultura, entendemos ao vivenciá-la, foi uma experiência muito enriquecedora”.
As qualidades de “Samba Antes do Samba” são muitas, mas o filme enfrentará, no Panorama Coisa de Cinema, a força da ficção (de alma documental) “James e o Fim do Medo”, dirigido pelo inquieto Ramón Coutinho e protagonizado pelo artista plástico Jamex, de 22 anos, força emergente (e mobilizadora) da nova visualidade baiana. Enfrentará também o ótimo documentário “Catadoras”, de Dayse Porto, sobre mulheres que vivem da coleta de refugos da sociedade de consumo e da reciclagem. Personagens carismáticas, com muito por dizer. E final surpreendente. Revelador.
Completam a competição os documentários “Quem É essa Mulher”, de Mariana Jadpe, sobre a primeira médica negra da Bahia, e “WR Discos – Uma Invenção Musical”, de Nuno Pereira e Maíra Cristina. Este concentra-se na WR, responsável por mudança inegável no jeito de produzir música na capital baiana. O filme se constrói com testemunhos de artistas e técnicos. Entre eles, Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Bell Marques, Luiz Caldas, Gerônimo, Lazzo Matumbi, Margareth Menezes, Roberto Mendes, Olodum, Nestor Madrid, Vivaldo Menezes, Cesinha, Tony Mola, Carlinhos Marques, Silvinha Torres, Paulinho Caldas (alguns deles integrantes banda Acordes Verdes).
Pingback: news-1744156837091-13449 – News Conect Inteligencia Digital