“A História de Souleymane” registra frenesi de ciclista africano uberizado em busca de cidadania francesa

Por Maria do Rosário Caetano

A História de Souleymane”, quinto longa-metragem de Boris Lojkine, estreia nessa quinta-feira, 22 de maio, nos cinemas brasileiros. O filme assemelha-se a duas surpreendentes produções europeias – o alemão “Corra, Lola, Corra”, de Tom Tykwer, e o francês “Contratempos”, de Eric Cravel. 

Seu diretor, Lojkine, prefere evocar como sua principal fonte de diálogo o romeno “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”, de Cristian Mungiu. Que ele define como “drama social construído em ritmo de thriller”. A Otília romena tem de superar o tempo exíguo para realizar aborto clandestino.

As protagonistas do filme germânico (Franka Potente, a Lola) e do francês (Laure Calamy, a Julie Roy) – assim como a romena Otília (Anamaria Marinca) — são brancas e cidadãs nascidas em países europeus. O que as une é a urgência do tempo, os prazos reduzidos de que dispõem para enfrentar complexos desafios.

A primeira, Lola, necessita salvar o namorado, coletor de grana a serviço de contrabandistas, que esqueceu sacola com 100 mil marcos no metrô. A segunda, Julie, tem que comparecer a cobiçada entrevista de emprego, mas vê-se impedida por greve nacional nos transportes. 

As comparações com “Lola”, “Contratempos” e “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” podem parecer desmedidas, já que Souleymane vive cercado de condições bem mais adversas. Ele não passa de um modesto entregador de aplicativo, vindo de Guiné Conacri, pobre país da África Ocidental. Anônimo na metrópole, ele não passa de um Zé Ninguém. Sem documentos, necessita decorar história tocante, capaz de convencer funcionários da Imigração a lhe concederem asilo. E, consequentemente, cidadania francesa.

O tempo do jovem guineense, esse sim, corre célere como o de Lola, Julie e Otília. Como imigrante ilegal, ele não pode trabalhar em território francês (embora disponha de boa bicicleta e vistoso celular e se vista dignamente, cultivando penteado dos mais descolados). Para entregar comidas, a solução é comprar de um colega – africano como ele e já documentado – o direito de trabalhar (sob nome falso, claro).

Durante dois dias, Souleymane enfrentará verdadeira odisséia. Além dos problemas comuns a um ciclista uberizado (como cliente que rejeita a encomenda, pois “a embalagem está amassada”), ele terá que decorar detalhes de complexa (e falsa) narrativa. A que o apresenta como refugiado político da Guiné, ex-militante de determinado partido político, que acabara perseguido, espancado e preso. Estando, pois, sob risco de vida, caso regresse (depois de fuga pelo deserto e pelo Mediterrâneo) à Guiné Conacri.

O orientador de Souleymane é esperto e conhece as minúcias do interrogatório dos agentes do OPFRA (Escritório Francês de Proteção aos Refugiados e Apátridas). O jovem guineense (interpretado por Abou Sangaré, de 22 anos, um ‘indocumentado’ na vida real) nunca teve militância partidária, não quer saber de política, não conhece as inscrições das paredes dos cárceres etc. etc. Mesmo assim, tentará decorar tudo que o “preparador de entrevistas” lhe ensina. Só que o tempo é muito curto. E, para complicar, ele tem que trabalhar sem descanso, arrumar dinheiro para pagar as dívidas (inclusive com o “orientador”, que cobra por seus serviços).

O thriller social de Boris Lojkine comoveu a França. Apesar de contar com elenco de atores desconhecidos (exceção para Nina Meurisse), ausência de trilha sonora, roteiro nada folhetinesco e manter diálogo com o cinema documental, o filme foi capaz de vender 650 mil ingressos. Sua vitoriosa trajetória começou em Cannes, na mostra Un Certain Regard, na qual conquistou o Prêmio do Júri, o de melhor ator e Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema).

O reconhecimento continuou. Na quinquagésima edição do César, o “Oscar francês”, realizada há dois meses, transformou quatro das oito indicações recebidas em troféus — ator revelação (Abou Sangaré), roteiro original (Lojkine e Delphine Agust), atriz coadjuvante (Nina Meurisse) e montagem (Xavier Sirven).

O que gerou tamanho reconhecimento? Lojkine realizou um filme piedoso, politicamente correto, de final catártico? Fez chantagem sentimental? Apelou aos bons sentimentos dos europeus brancos, que não querem exercer ofícios humildes como o de entregador de comida, mas também não querem ver africanos (inclusive os das ex-colônias) andando pelas ruas de Paris?

A História de Souleymane” não é piedosa. Nem sentimental. Nem miserabilista. O ritmo nervoso do filme nos inquieta. Nos angustia. Há brancos antipáticos e simpáticos. Há quem maltrate o guineense (como a moça francesa que se nega a receber a comida pela embalagem amassada). Há o idoso que mal consegue mexer no celular para fornecer o necessário código ao entregador, mas que, em sua solidão, vê no rapaz de pele preta um possível interlocutor.

Os africanos não são vistos como santos explorados pelos brancos franceses. Um dos entregadores, o que revende aos ‘indocumentados’ o direito de trabalhar na rua, explora os colegas. E causará imenso transtorno a Souleymane nas cruciais 48 horas que antecedem a entrevista da OPFRA.

Não há demagogia, nem proselitismo na sintética narrativa de Boris Lojkine. E o final do filme acontecerá em aberto. Não saberemos o que acontecerá com o entregador de comida. Ele conseguirá convencer a agente da Imigração? Ou terá que regressar à Guiné, onde vive sua mãe, portadora de distúrbio mental? E a namorada, que ele ama e ficou na África? Ela vai desistir dele, depois de tão longa espera, e casar-se com novo pretendente, um engenheiro?

Dado extrafilme, que merece registro, embora nada tenha a ver com o personagem Souleymane, mas sim com Abou Sangaré, seu intérprete. Ele chegou à França aos 17 anos. Se virou em diversos trabalhos. Até, passados cinco anos, ser convidado por Lojkine para protagonizar “A História de Souleymane”. Não tinha documentos, pois não conseguia superar as barreiras impostas pelas leis francesas. Depois do sucesso do filme (e dos prêmios), o jovem imigrante, finalmente, obteve a aguardada cidadania francesa.

 

A História de Souleymane | L’Histoire de Souleymane
França, 2024, 93 minutos
Direção: Boris Lojkine
Elenco: Abou Sangaré, Nina Meurisse, Alpha Oumar Sow, Emmanuel Yovanie, Younoussa Diallo
Roteiro: Boris Lojkine e Delphine Agust
Fotografia: Tristan Galand
Montagem: Xavier Sirven
Idiomas: francês, fula e maninka
Distribuição: Bonfilm e O2 Play

 

FILMOGRAFIA
Boris Lojkine nasceu na França, em 24 de julho de 1969. É doutor em Filosofia (sua tese versou sobre o tema “Crise e História”). Abandonou a vida acadêmica e tornou-se cineasta. No Vietnã, dirigiu dois documentários. Depois, migrou para a ficção.

2024 – “A História de Souleymane” (ficção, Paris)
2019 – “Camille” (ficção, África)
2014 – “Hope” (ficção, África)
2005 – Les Armes Errantes (doc., Vietnã)
2001 – “Ceux qui Restent” (doc., Vietnã)

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