Centenário do “O Encouraçado Potemkin”, de Eisenstein, será lembrado com palestra de João Lanari na Unifesp

Por Maria do Rosário Caetano

O mais conhecido dos filmes de Sergei Eisenstein, “O Encouraçado Potemkin”, foi lançado em dezembro de 1925, portanto há cem anos, no Teatro Bolshoi, de Moscou, dentro do calendário de comemorações dos vinte anos da Revolução de 1905, que precedeu em doze anos a Revolução Bolchevique.

O filme foi recebido de forma entusiástica pela plateia soviética. E outras sessões aconteceriam, em anos vindouros, em grandes cidades, como Berlim, Londres, Amsterdã e Nova York.

“Em Paris, em novembro do ano seguinte (1926)” – conta o pesquisador francês Georges Sadoul –, “o filme foi exibido pelo Cineclube da França, no Cine Artistic, e foi aclamado por grandes cineastas e pelos Surrealistas”. Mas a Censura francesa o interditou “até 1952”.

O “Potemkin” só chegaria ao Brasil muitas décadas depois. Em 1964, seria exibido para os Marinheiros. As consequências seriam cobradas, poucas semanas depois, do curador da Cinemateca do MAM-Rio, Cosme Alves Netto, submetido a IPM (Inquérito Policial Militar), acusado de subversão, pelas forças que depuseram o presidente João Goulart. O filme passaria por mais 15 anos de censura, até ser “anistiado” em 1979.

O épico eisenteiniano será tema de palestra do pesquisador e professor da UnB (Universidade de Brasília), João Lanari Bo, autor do livro “Cinema para Russos, Cinema para Soviéticos” (Bazar do Tempo, 2019), a ser proferida na próxima sexta-feira, 9 de maio, em seminário da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). A palestra será apresentada, via digital, das 18h às 20h. Os interessados devem se inscrever (https://siex.siiu.unifesp.br/catalogo-siex/27429/mais-info) para acompanhar as reflexões de Lanari, que prepara novo livro sobre o cinema soviético-russo.

O evento promovido pela Unifesp intitula-se “O Mundo com e sem a União Soviética” e festeja três datas. Além do Centenário do “Potemkin”, os 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial e os 50 anos do fim da Guerra do Vietnã. Nessa quarta-feira, 7 de maio, os professores Fabio Venturini (Unifesp Osasco) e Janes Jorge (Unifesp Guarulhos) farão a abertura do evento. Depois, Venturini irá moderar palestra de Iuri Cavlak, da Unifesp Guarulhos, sobre “A Segunda Guerra Mundial e o Exército Vermelho”.

Na quinta-feira, 8 de maio, o professor Daniel Huertas, da Unifesp Osasco, refletirá sobre o tema “O Vietnã, 50 Anos Depois do Fim da Guerra”, com moderação da professora Samira Adel Osman, da Unifesp de Guarulhos. A palestra de Lanari, que fecha o ciclo, terá moderação da professora Rosângela Ferreira Leite (Unifesp Guarulhos).

Para o professor da Universidade de Brasília, falar sobre “Encouraçado Potemkin” constitui “empreitada de risco, pois esse é dos filmes mais vistos e comentados da história do cinema”. A obra de Sergei Eisenstein, acrescenta, atravessou o século XX como referência indispensável para os amantes da sétima arte – na verdade, ela foi um dos argumentos decisivos para a caracterização do cinema como ‘sétima arte’”. E agora, em 2025, “quando se celebra seu centenário, segue acumulando aplausos e admiração, mas também censura e proibições, pelo seu caráter ostensivamente político”. Mais “do que simplesmente político, o filme logrou exprimir um páthos político, uma força expressiva diante de narrativa que catapultou o cinema a um nível artístico inédito – e que continua poderoso e efetivo na contemporaneidade digital que vivemos”.

O “Encouraçado Potemkin” teve entre seus admiradores o britânico Charles Chaplin, cineasta amado pelos soviéticos, cultores devotos da íntegra de sua obra, em especial a protagonizada por Carlitos. Mas sem nenhuma rejeição aos que não eram protagonizados pelo eterno vagabundo. Em seu livro “Kino – História do Filme Russo e Soviético”, o norte-americano Jay Leyda, que foi aluno de Eisenstein e viveu por três anos na URSS, testemunha a paixão dos soviéticos, incluindo Pudovkin e Eisenstein, por “Casamento ou Luxo?” (“Uma Mulher em Paris”), de 1923. Este filme fracassou nas bilheterias dos EUA. Em parte, por não contar com a presença do vagabundo Carlitos. No país dos soviets, porém, tornou-se obra de culto.

O maior defensor do “Potemkin” foi, sem dúvida, o pesquisador, historiador e crítico Georges Sadoul. Em seu “Dicionário de Filmes”, o autor de “Histoire du Cinéma Mondial”, além de ficha técnica detalhada do épico eisensteiniano, conta que o cineasta foi assistido pelos “Cinco de Ferro” – Gregori Alexandrov, Maxime Strauch, M. Gomarov, A. Antonov e A. Levchin. O roteiro foi escrito pelo próprio Eisenstein com Nina Agadjanov Chutko, que participara dos acontecimentos de 1905.

O “Encouraçado” foi produzido pela Primeira Fábrica Goskino (de Moscou), em cinco partes, e fotografado por Eduard Tissé, um dos principais colaboradores de Eisenstein. “Em 1958” – lembra Sadoul –, “em Bruxelas, um júri de historiadores de 26 países o classificou como ‘o mais belo filme do mundo’, com 100 votos dos 117 eleitores”. Dez anos antes, “um referendo internacional tinha-lhe atribuído a mesma classificação”.

O pesquisador francês historia, então, a gênese do ‘Potemkin’: “Em março de 1925, a comissão encarregada da comemoração do vigésimo aniversário da Revolução de 1905 encomendou vários filmes a sete ou oito cineastas, entre eles Eisenstein, então com 28 anos”. Ele se pôs logo a escrever o roteiro (intitulado “O Ano de 1905”), com a colaboração de Chutko. “O manuscrito, várias centenas de páginas, contava toda a história desse ano, de janeiro a dezembro, e de dezenas de fatos ocorridos em 20 ou 30 cidades”. A filmagem, realizada em Leningrado, em julho, foi interrompida pelo mau tempo. “Depois de ter rodado algumas cenas em Baku, Eisesntein e seus colaboradores estavam em Odessa, quando ele teve a ideia de reduzir ‘O Ano de 1905’ a um só de seus episódios: o motim do Potemkin, cuja narrativa ocupava apenas uma página do manuscrito”.

O resto é história. O filme ficou pronto na undécima hora e teve sua apresentação solene dez dias antes do fim do ano de 1925.

Em seu livro “A Era dos Extremos”, o britânico Eric Hobsbawm, historiador de formação marxista, descreveu a sequência mais famosa do “Encouraçado Potemkin”, a da Escadaria de Odessa, como “os oito minutos mais influentes da história do cinema”.

O videomaker polonês Zbigniew Rybczynski, diretor de “Steps”, e o norte-americano Brian de Palma (“Os Intocáveis”) comprovam a afirmação de Hobsbawm. O fazem, também, dezenas e dezenas de outros criadores audiovisuais que dialogaram com as imagens do mais impressionante dos massacres impressos em nitrato.

Pauline Kael, uma das mais respeitadas críticas dos EUA, registrou em coletânea de seus textos curtos (“1001 Noites no Cinema”, seleção de Sérgio Augusto, Cia das Letras, 1994): o filme de Eisenstein “alcançou tal eminência profana que poucas pessoas ainda discutem seus méritos. Sensacional, como é sem dúvida, na verdade não é um filme simpático; mas impressiona – mantém seu frescor e emoção, mesmo quando se resiste à mensagem caricata”. Para acrescentar: “Talvez nenhum outro filme tenha jamais tido tanta força descritiva em suas imagens, e o jovem Eisenstein inaugurou uma nova técnica de estimulação psicológica, por meio da edição ritmada – a ‘montagem’. A sequência da Escadaria de Odessa, a mais festejada sequência isolada da história do cinema, tem sido imitada de uma maneira ou outra em inúmeros programas e filmes de televisão com cenas de multidão; e também interminavelmente parodiada. Mas a força do original não diminui”.

Georges Sadoul, à esquerda, com o cineasta brasileiro Lima Barreto, durante as filmagens de “Primeira Missa” © Acervo da Cinemateca Brasileira

Georges Sadoul, sempre ele, fez questão de destacar as cinco sequências mais importantes do filme: 1. Homens e vermes, 2. O drama no convés da popa, 3. O sangue clama por vingança, 4. A Escadaria de Odessa, 5. A passagem através da Esquadra.

Todas são descritas em detalhes. Destacamos, aqui, o que Sadoul escreveu sobre a mais famosa das sequências do filme: vemos “a multidão nos degraus aclamando os marinheiros e, de repente, os primeiros tiros de fuzis; as botas dos soldados passando por cima dos cadáveres; o menino morto, a mãe que torna a subir a escadaria trazendo o filho morto; os fuzileiros descendo a escadaria, atingida, e seu cadáver empurrando para a frente o carrinho do bebê; a descida do carrinho; uma mulher com o olho vazado sob o pince-nez; o canhão do Potemkin destruindo portais monumentais; o leão de pedra se ergue”.

Sadoul abordará, ainda, o uso da “sinédoque” (figura retórica de natureza metonímica que toma a parte pelo todo) por Sergei Eisenstein. Sem esquecer as liberdades históricas tomadas pelo cineasta-roteirista. O massacre da Escadaria resultou da soma de acontecimentos ocorridos em outros lugares. Licença poética de um artista. Para concluir: “O sucesso da obra deveu-se, sem dúvida, a uma forma e uma perfeição inegáveis, mas sobretudo ao calor humano e à fé entusiástica, que impregnavam um tema revolucionário jamais abordado na tela”.

Por falar em Georges Sadoul (1904-1967), vale lembrar que um pesquisador brasileiro, o paulista (de Jaú) Rafael Morato Zanatto, acaba de publicar em revista francesa (Revue d’Histoire du Cinéma), alentado artigo (“Le Cinéma Brésilien dans l’ Histoire Mondiale du Cinéma Selon Georges Sadoul”), dedicado à  análise de imenso desafio autoimposto pelo pesquisador — escrever a história do cinema (periférico) planetário.

Zanatto dá destaque à parceria que Sadoul estabeleceu com Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977) para construir o capítulo do livro dedicado ao cinema brasileiro em sua “Histoire du Cinéma Mondial” (publicado pela Editora Martins, em 1963, em dois volumes, um deles com “O Pagador de Promessa” como foto de capa). E posfácio de Paulo Emilio.

Professor da Universidade Federal de Campina Grande – Campus de Cajazeiras, Zanatto lembra que Sadoul criou, junto com Siegfried Kracauer, Lotte H. Eisner, Henry Langlois, Paul Rotha, Leon Moussinac, Jay Leyda, Iris Barry e o brasileiro Paulo Emilio Salles Gomes, o BIRHC-FIAF (Bureau International de Recherche sur l’Histoire du Cinéma, da Federação Internacional de Arquivos de Filmes). A partir dessa instituição, ele se atribuiu a imensa tarefa de narrar a dispersa história dos “cinemas periféricos” (ou não-hegemônicos). Com exclusão, claro, da história do cinema realizado nos EUA, já fartamente documentada, conhecida e difundida no mundo inteiro.

Para levar proposta tão ousada adiante, Sadoul contou com auxiliares espalhados pelos cinco cantos do mundo. De início, o projeto foi criticado por nomes como o do jovem François Truffaut, que faria observação pertinente. O historiador não conhecia boa parte dos filmes citados em seu livro.

O projeto seria aperfeiçoado e Sadoul visitaria muitos países, incluindo o Brasil, onde esteve em abril/maio de 1960. Ele vinha da Argentina, onde presidira o júri do Festival de Cinema de Mar del Plata, para ver filmes e conversar com profissionais de vários estados brasileiros. Além de São Paulo e sua Cinemateca Brasileira, que o acolheu com ampla retaguarda, ele foi ao Rio de Janeiro (encontrou Alex Vianny, Adhemar Gonzaga, Humberto Mauro e José Sanz), à Bahia para conversar com Walter da Silveira, e a Pernambuco, onde manteve contatos com Fernando Spencer, Osman de Freitas e Jomar Muniz de Brito.

Sadoul ficou tão impressionado com os arquivos do produtor e cineasta carioca Adhemar Gonzaga, que não se poupou de brincadeira registrada em texto escrito para a revista Lettre Française: “Se Adhemar fosse assassinado, poderíamos ter a certeza de que o assassino teria sido Henry Langlois, interessado em roubar seus tesouros para o acervo da Cinemateca Francesa”.

O ensaio de Zanatto mostrará que Paulo Emilio e Humberto Mauro foram os principais nomes da experiência brasileira do pesquisador francês. O primeiro foi seu maior colaborador, sua maior fonte.

Confiram as características que Sadoul atribuiu, em seus escritos, à produção cinematográfica brasileira: “A língua, o passado colonial escravagista, a rivalidade entre Rio e São Paulo e a insignificante exportação de filmes comparada com Argentina e México”, então “os grandes produtores cinematográficos da América Latina”. Puro Paulo Emilio. A paixão pela obra de Humberto Mauro levaria Georges Sadoul a eleger “Ganga Bruta” como um dos 100 melhores filmes do mundo.

Sobre a viagem de Sadoul ao Brasil, Paulo Emilio escreveu no jornal O Estado de S. Paulo, de abril de 1960: “A visita que terá consequências mais fecundas é certamente a de Georges Sadoul. O grande público teve ocasião de apreciar sobretudo o jornalista e conferencista brilhante, sua curiosa figura, dotada de nervos e contida exuberância”. E mais: “Sadoul está em São Paulo, e vai ao Rio, para estudar cinema brasileiro, sobretudo o antigo. O Sadoul historiador é outro homem, no estilo e também no comportamento. Tranquilo e metódico, absorve imperturbável, milhares e milhares de metros de imagens. Anotando e cachimbando, trabalha horas a fio e o cansaço só se manifesta depois de cumprido o programa do dia. As impressões de Sadoul, jornalista, são rápidas; as do historiador, meticulosas e lentas. Na conferência que pronunciou na Aliança Francesa, depois de alguns dias de trabalho na Cinemateca Francesa, Sadoul fez apenas uma referência às pesquisas em curso, ao citar o nome de Humberto Mauro, cuja obra o intriga e o interessa cada vez mais”.

Militante comunista, Georges Sadoul viveria pouco. Morreria aos 63 anos, mas deixaria um grande legado. Deixaria a semente de imenso projeto coletivo-internacional, que ele sabia ser de imensa grandeza para um só homem. Por isso, contou com a solidariedade internacional de colaboradores no mundo inteiro. Ousou dedicar-se ao cinema de 50 países de cinco continentes. Sabia, claro, que sua tentativa de compor gigantesco panorama universal continha imperfeições.

Que o brilhante ensaio de Rafael Morato Zanatto seja, com urgência, publicado em revista brasileira. Suas ilustrações são soberbas. Oriundas do Acervo da Cinemateca Brasileira, elas trazem raros registros visuais de Sadoul em companhia de Lima Barreto (durante as filmagens de “A Primeira Missa”).

Quem sabe o pesquisador paulista aprofunda seu estudo, a ponto de transformá-lo num livro sobre a aventura brasileira de George Sadoul, o comunista que amava (e defendia) os cinemas de outras geografias, aquelas ofuscadas (ainda hoje) pelo poder desmedido de Hollywood.

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