“Um Outro Francisco”, o da romaria do Canindé, é visto pela fotografia popular ou artística ao evocar o Papa e seu santo de devoção

Foto © Dario De Dominicis

Por Maria do Rosário Caetano

Aos mais objetivos, “Um Outro Francisco”, estreia dessa quinta-feira, 15 de maio, nos cinemas, pode parecer um longa documental que nada tem a ver com Francisco, o pontífice que partiu recentemente e foi substituído, no trono de Pedro, por Leão XIV. E mais, que seu lançamento, nessa exata hora, pega indevida carona na comoção causada pela despedida do Papa argentino. Comoção que se fez seguir por verdadeiro carrossel midiático, capaz de mobilizar todo o mundo católico, apostólico romano.

O segundo longa-metragem de Margarita Hernández, brasileira de origem cubana, se visto por seu núcleo originário, configura-se como um filme sobre a imagem e suas significações. Sobre a fotografia popular e a fotografia artística. A primeira, de natureza narrativa e, por isso, calcada na figura humana e em objetos de devoção religiosa. A segunda, mais sofisticada, em sua inesgotável busca de angulações inesperadas e, até, de altas doses de abstração.

Ao ambientar seu filme no município de Canindé, situado na parte norte do Ceará, Margarita Hernández estava, também, atrás de São Francisco das Chagas, o padroeiro e fonte de devoção de milhares de romeiros nordestinos. Fez um ótimo filme. E, registre-se, seu tardio lançamento nada tem de oportunista.

Décima-sétima cidade cearense, pelo índice populacional, Canindé conta com 75 mil habitantes, mas, em tempo de romaria, vê sua população elevar-se de forma exponencial. Aos pés de estátua de São Francisco das Chagas, de 30 metros de altura (maior que o Cristo Redentor carioca, sem o pedestal, e que a estátua de Padre Cícero, no Juazeiro) ajoelham-se fieis vindos das mais variadas localidades. Uns vão pagar votos em troca de saúde. Por isso, tiram fotos de órgãos os mais diversos. Incluindo os íntimos (até o pênis, se ele estiver tomado por alguma doença). Alguns depositam partes do corpo, esculpidas em madeira, na Sala dos Milagres.

Margarita Hernández, diretora do vibrante e muito bem-engendrado “Che, Memórias de um Ano Secreto”, realizou com “Um Outro Francisco”, mais um documentário que diz a que veio. E com pegada internacional, pois seus protagonistas são dois italianos – o rechonchudo e extrovertido Giorgio Negro, e o magro e mais contido Dario de Dominicis. Sem esquecer a população do Canindé, em especial, aqueles que trabalham com fotografia e os que são fotografados em seus atos de fé religiosa. Os nordestinos acabam em papéis coadjuvantes, mas suas participações são marcadas pelo respeito. Alguns deles, independente da idade, apresentam-se impregnados pelo senso de humor tão caro aos cearenses.

O Che Guevara de Margarita (vejam o filme no Canal Brasil-Globoplay) era um argentino transformado em cidadão do mundo e envolto em missão que, antes de levá-lo à Bolívia, fizera parada estratégica na Tcheco-Eslováquia. A realizadora encontrou imagens raríssimas da incursão do ex-ministro da Indústria de Cuba (de novo guerrilheiro) pelo Leste Europeu.

Em “Um Outro Francisco”, a cubano-brasileira trabalhou com o São Francisco das Chagas, do Canindé, e o São Francisco italiano, o protetor dos animais e glória santificada da cidade de Assis. Sem nenhum didatismo desenhou belo contraste entre os cultos apolíneos dos peninsulares a seu santo e os cultos (quase) profanos dos romeiros brasileiros.

Num dos mais reveladores momentos de seu segundo longa documental, Margarita registra testemunho de frei afro-brasileiro, presente na cidade italiana de Assis. Ele compara os dois templos dedicados a São Francisco, ao lembrar que jamais se poderia erguer estátua de 30 metros nas proximidades do santuário peninsular. E, menos ainda, acender a quantidade de velas que os romeiros brasileiros acendem em devoção a São Francisco das Chagas. As chamas causariam graves estragos aos “afrescos de Giotto”, patrimônio artístico da humanidade.

Ao longo de “Um Outro Francisco” (de sintéticos 74 minutos), Margarita e seus dois protagonistas irão conviver com os devotos e com os profissionais da fotografia popular. E, até, com vaidosa rainha das selfies. Os dois italianos, com máquinas profissionais, produzirão imagens sofisticadas – a mais recorrente mostrará um menino com as contas e cruzes de terços (ou rosários) em sua cabeça. Sempre em preto-e-branco, ainda hoje o território das imagens mais disputadas por galerias, museus e compradores-colecionadores.

Com a cumplicidade de seus protagonistas (os dois camaradas italianos, guiados pela simpatia e pela ética), Margarita Hernández perguntará a alguns dos romeiros e, também, aos profissionais cearenses que dão retaguarda aos visitantes-penitentes, o que acham das fotos da dupla Giorgio Negro e Dario de Dominicis.

A respostas são marcadas pela franqueza. A angulação inusitada, a ausência de cores e, principalmente, a falta de – chamemos assim – “narratividade” incomoda a todos. Mais que incomodar, as fotos da dupla trazem decepção aos populares. Eles sentem falta dos corpos e rostos prontos para serem identificados. Saber se é um amigo, um vizinho, um familiar, um conhecido, enfim.

Na concepção quase unânime dos romeiros, o que interessa são fotos que reúnem muitas pessoas, cinco, duas, uma que seja, próxima à “estáltua” de São Francisco das Chagas. É por ele, pelo santo, que percorrem grandes distâncias. Fazem penitência.

Nenhum deles mostra apreço por fotos abstratas. São inimigos assumidos da abstração. Mesmo a projeção, em telão improvisado, das imagens captadas pelos dois fotógrafos peninsulares, será vista em silêncio. As palmas, acompanhadas de risos, só serão ouvidas quando os canindenses reconhecerem algum dos fotografados. Aí a festa será geral.

Um único entre os fotografados a se manifestar ao microfone durante “debate” (pós-projeção improvisada), elogiará as imagens do fotógrafos-artistas. Afirmará que eles geraram lindas imagem. Mas podemos tomá-lo como suspeito, pois sua imagem fôra captada com requintes artísticos, sim, mas todos seriam capazes de reconhecer sua estampa, inteira na imagem.

Um dos fotógrafos populares do Canindé, porém, não se intimidará em dizer, na cara dos fotógrafos de imagens artísticas, que houve “falta de respeito”, da parte deles, quando registraram escultura de Nossa Senhora com uma caneca na cabeça (decerto colocada por um romeiro, depois de saciar a sede, ou em busca de água benta!).

Eles, os muitos retratistas da Festa de São Francisco do Canindé, estão ali, na semana da Romaria, para registrar os fiéis com as mãos erguidas para o Céu. Ou em posições sacrificiais, pois ali estão para pagar promessas.

Com seu novo filme, Margarita Hernández enriquece a crescente filmografia brasileira, que vem dedicando espaço nobre aos que se dedicam à “fotografação”. E, em consequência, à revelação de aspectos substantivos de nossos jeitos de ser e perceber o mundo que nos cerca.

 

Um Outro Francisco
Brasil, 2025, 74 minutos, censura livre
Direção e roteiro: Margarita Hernández
Fotografia: Rogério Resende
Montagem: Leyda Nápoles
Música: Adelson Viana
Som direto: Yures Viana, Lênio Oliveira, Mattia Roccia e Leo Hernández
Edição de som: Simone Petrillo
Produção: Bucanero Filmes (Ceará)
Distribuição: Kajá Filmes

 

FILMOGRAFIA
Margarita Hernández é diretora, roteirista, produtora e co-responsável pelo Cine Ceará (Festival Ibero-Americano de Cinema de Fortaleza)

Longas-metragens:

2022-25 – “Um Outro Francisco” (doc., 74 min.)
2018 – “Che, Memórias de um Ano Secreto” (doc., 79 min.)

Curtas-metragens:

2013 – “Pausas” (doc., 27 min.)
2006 – “Filipe” (doc., 14 min.)
2001 – “Labirinto” (doc., 18 min.)
1999 – “Uma Nação de Gente” (doc., 17 min.)

 

OUTROS LONGAS BRASILEIROS SOBRE FOTOGRAFIA E FOTÓGRAFOS

2022 – “Gyuri” (Claudia Andujar e os Yanomami), de Mariana Lacerda (88 minutos)
2021 – “Não Nasci para Deixar meus Olhos Perderem Tempo” (sobre Orlando Brito), de Claudio Moraes (72 minutos)
2021 – “Cravos”, de Marco del Fiol (109 minutos)
2020 – “A Luz de Mário Carneiro”, de Betse de Paula (73 minutos)
2020 – “Fotografação”, de Lauro Escorel
2019 – “Equivalências – Aprender Vivendo”, de Maureen Bisilliat (96 minutos)
2019 – “Barretão”, de Marcelo Santiago (85 minutos)
2014 – “O Sal da Terra”, de Wim Wenders e Juliano Salgado
2007 – “Iluminados”, de Cristina Leal
2000 – “Pierre Fatumbi Vergé: Mensageiro Entre Dois Mundos”, de Lula Buarque (82 minutos)
1997 – “Dib” (sobre Dib Lutfi), de Márcia Derraik e Simplício Neto (45 minutos)

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