In-Edit Brasil enche as telas paulistanas com hedonismo tropicalista de Xavier Cugat e o refinamento musical e corporal de Letieres Leite
Por Maria do Rosário Caetano
Se você quiser mergulhar nas imagens e sons de um filme alto astral, daqueles que nos tiram por duas horas (nesse caso, por apenas 88 minutos) de nossos infortúnios cotidianos, escolha “Sexo, Maracas y Chihuahuas” (foto), de Diego Mas Trelles, atração espanhola da décima-sétima edição do In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical.
As maracas soarão em louca e coloridíssima viagem que acompanha nove décadas de história do maestro, violinista, showman, caricaturista e amante da vida Xavier Cugat, nascido na Catalunha e radicado nas Américas. Primeiro em Cuba, depois nos Estados Unidos.
O mais cubano dos espanhóis, Cugat transformou-se no rei dos ritmos latinos, no praticante da regência dançante, num latin-lover priápico e extravagante, seduzido por gastos excessivos. Enfim, no mais exagerado dos hedonistas. Depois de traçar panorama da extensa programação do In-Edit, voltaremos ao maestro que amava “o Sexo, as Maracas e os (cãozinhos) Chihuauhas”.
O Festival de Documentários Musicais começa no dia 11 de junho, e prossegue até dia 22, somente na capital paulista. Em suas diversas telas serão exibidos mais de 60 curtas, médias e longas-metragens. Um deles, tem o maestro Letieres Leite como personagem central e resulta em outro bálsamo para nossas retinas cansadas.
O baiano Letieres morreu no auge de sua criatividade, durante a epidemia da Covid. Foi um músico que usou notas musicais como meio de expressão, mas sem jamais esquecer das potencialidades de seu corpo. E do de seus colaboradores.
Além do longa-metragem dedicado a Letieres, o público poderá assistir a títulos protagonizados por Hyldon, Leci Brandão, Cazuza, Jackson do Pandeiro, Maria Alcina, Aldo Bueno, Azulão, Toquinho, Júpiter Maçã, Julio Reny e Cachorro Grande. Sem esquecer o “Rock Goiânia”, o “Hardcore 90”, os Afro-Sambas de Baden & Vinícius, a banda Ave Sangria e o Frevo pernambucano, que não pôde ‘frevar’ durante a pandemia.
Atento ao diálogo com o cinema do passado, aquele que vai ganhando reconhecimento como “clássico”, os organizadores do In-Edit Brasil convocaram dois títulos bem diferentes: “A Noite do Espantalho”, de Sérgio Ricardo, lançado em 1974 (portanto há 51 anos), e “O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas” (2000), de Paulo Caldas e Marcelo Luna, que já soma 25 anos.
Os dois filmes têm alma pernambucana. O primeiro, porque conta com o “espantalho” Alceu Valença e foi rodado em Nova Jerusalém, município sertanejo, sede de tradicional encenação da Paixão de Cristo.
Alceu Valença canta e contracena com José Pimentel, Gilson Moura, Rejane Medeiros, Emmanuel Cavalcanti e Geraldinho Azevedo. A trama, urdida com a colaboração de Jean-Claude Bernardet, faz-se acompanhar de uma das mais belas trilhas sonoras do cinema brasileiro. Registre-se que esta trilha é infinitamente melhor que o filme.
“O Rap do Pequeno Príncipe” registra as vidas de Helinho e Garnizé. O primeiro, integrante da banda Faces do Subúrbio, e o segundo, de profissão inusitada – “justiceiro”. Ele carrega, em suas costas, acusação por “65 mortes” cometidas no município de Camaragipe e em subúrbios do Recife. Um usa a música como instrumento de trabalho e inserção social. O outro, o revólver para dar fim a “almas sebosas”.
No terreno internacional, além da alucinada cinebiografia de Xavier Cugat, os espectadores paulistanos poderão assistir a documentários sobre Lennon & Yoko (“One to One: John & Yoko”), Dexter Gordon, Quincy Jones e Don Cherry (“Legacy”) e o mais premiado dos trilheiros de Hollywood (“Music by John Williams”). E, também, ao hardcore de Nova York (“Harley Flanagan: Wired for Chaos”), ao hip hop estadunidense (“It Was a Dream”) e à música de Guiné Bissau, pequeno país africano de expressão portuguesa (“Nteregu”).
Dez longas-metragens brasileiros vão disputar o prêmio máximo do In-Edit. O eleito representará o Brasil na terra de origem do festival de documentários, a Espanha. Há nomes estrelados na competição – Emilio Domingues, com dois filmes (além dos “Afro-Sambas”, a cinebiografia de Hyldon), Joel Zito Araújo (“Brasiliana – O Musical Negro que Apresentou o Brasil ao Mundo”), Lírio Ferreira, com a Banda Cachorro Grande, e Flávio Frederico (“Alma Negra, do Quilombo ao Baile”).
Voltemos, agora, ao filme que não deve encontrar similar na maratona paulistana do festival (isto, claro, se tomarmos como medida a dose de alegria que há de injetar em nossas veias): a fervilhante cinebiografia de Xavier Cugat (1900-1990).
Em tempos ‘politicamente corretos’, o catalão, que todos imaginavam ser “um cubano da gema”, se oferece a nossos olhos como um macho branco, excêntrico, mulherengo assumido, siderado por dinheiro, com profundas ligações com a Máfia e “a serviço dos amigos”, no caso, políticos influentes como John Kennedy ou Richard Nixon. Enfim, um “latin lover” exótico, kitch e desmedido.
Para narrar a alucinante trajetória do menino nascido em Gijona, em pleno réveillon de 1900, o diretor espanhol Diego Mas Trellas não mediu esforços. Comprou direitos de imagem e trechos de diversos filmes de Hollywood. Licenciou dezenas de composições musicais, que vão de clássicos norte-americanos à fina flor da música cubana, mexicana e brasileira.
O Brasil tem espaço nobre no filme. Por causa de Carmen Miranda, amiga do maestro-empresário, e de Ary Barroso. Em certo momento, Xavier Cugat garantirá que o mineiro Barroso compôs para ele, “Brasil” (“Aquarela do Brasil”) e “Bahia” (“Bahia que Não Sai do meu Pensamento” – Na Baixa do Sapateiro”). Sua orquestra tocará, com gosto e requinte, outro grande sucesso verde-amarelo, o “Tico-Tico no Fubá”, de Zequinha de Abreu.
Para Carmen Miranda, Cugat só terá elogios. Como ela, adorava roupas extravagantes. Era fã dos turbantes enfeitados de fruta com os quais a “brazilian bombshell” arrematava seus trajes usados em shows e filmes.
Além da rumba, do chá-chá-chá, dos boleros, do tango, das guarachas, “Tchaivier” Cugat amava o samba. Gostava de dizer que sua Orquestra somava influência dos ritmos de Cuba, do México e do Brasil. E neles injetava tempero jazzístico.
Diego Mas Trellas recorreu a onze “cabeças falantes” para construir seu documentário. E que “cabeças falantes”! Todas com muito a dizer.
O depoimento da cineasta espanhola Isabel Coixet e do mestre do afro-jazz cubano Chucho Valdez são do balacobaco (a expressão combina com a alma de Xavier Cugat). Não ficam atrás os testemunhos de Eduardo Fornés, Joana Biarnés, Jesús García de Dueñas, Alex Zara, Javier Gurruchaga, Román Guberin, Óscar Gómez, da cantora Nina e de Joan Walls.
Não há um testemunho tedioso, formal, que ali esteja para agradar a este ou aquele brother. Ou patrocinador. Todos são loucos pelo exótico showman espanhol, que regressou a seu país natal para desfrutar de seus derradeiros anos (1971 a 90). Nenhum assunto é contornado. Tudo é dito em alto e bom som. Pelo próprio Xavier Cugat (graças a arquivos históricos) – o filme foi lançado em 2016 – ou por seus biógrafos e admiradores.
O próprio maestro fala de seus múltiplos casamentos (os mais famosos se deram com a cantora cubana Rita Montaner e com longilíneas starlets da canção e do bailado, como Carmen Castillo, Lorraine Allen, Charo e a formidável Abbe Lane).
Ele irá assegurar: “as mulheres se aproveitaram muito de mim, mas eu também me aproveitei delas”. O caso mais rumoroso foi protagonizado por esposa mais ambiciosa, que bateu pé. Só assinaria o divórcio se ficasse com boa parte dos bens do marido.
O próprio Cugat apresentará a insólita solução do problema, que viria de “advogados da Máfia”. Eles chamaram a moça ao escritório e disseram a ela: “se não fosse mais razoável”, a “coisa ia engrossar”. Na hora, tudo chegou aos conformes.
Sobre a Máfia, o maestro emitirá opinião das mais singulares. “Ela domina o show-bis nos EUA. Recebi muitos cheques das mãos do próprio Al Capone, em Chicago”, contará, sem nenhuma cerimônia, como se falasse de algo corriqueiro.
E mais: “os mafiosos estabelecem as regras” nos lucrativos territórios do lazer norte-americano: “Shows em cassinos devem durar pouco mais de uma hora, exatos 75 minutos”. Afinal, “ninguém vai a um cassino para apreciar show de duas ou três horas”. As músicas devem apenas “introduzir os frequentadores no jogo”, embalá-los para o barulhinho das roletas.
Xavier Cugat foi amigo de metade dos astros da canção e do cinema hollywoodiano. Aos doze anos tocava violino na Orquestra Sinfônica de Havana. Mudou-se para os EUA na adolescência. Lá atuou em 21 filmes. Da fase silenciosa aos exóticos filmusicais da era de ouro. Trabalhou com Rodolfo Valentino, Errol Flyn (“um louco”), Emilio “Indio” Fernández e contratou o jovem Sinatra, aos 17 anos, para que ele desse seus primeiros passos musicais (“paguei 25 mil dólares e, sorrindo, corrige: “paguei 25 dólares a ele”). Para o amigo Bing Crosby (“o maior crooner do mundo”) só tinha elogios. Descobriu a beleza de Margarita Cansino e a rebatizou Rita Hayworth. Trabalhou com Esther Williams, a rainha dos ‘piscina-movie’, com Tito Puente, Cole Porter (“ele fez ‘Begin the Beguine’ para mim”), Carmen Miranda, Woody Allen, Dean Martin & Jerry Lewis, o conterrânea Julio Iglesias. A lista é interminável.
A cineasta Isabel Coixet emite saborosa opinião sobre o maestro-empresário. E, como ele, nos diverte. Ao falar dos filmes que Cugat fez com Esther Williams, a diretora de “A Vida Secreta das Palavras” confessa, bem-humorada: “Esther era a pior atriz do planeta, mas como resistir aos filmes dela, que nos fazem sonhar acordados?”.
A cinebiografia de Xavier Cugat, batizada com o divertido título de “Sexo, Maracas y Chihuahuas”, também nos faz sonhar acordados. É o supra-sumo do escapismo, do exotismo, do hedonismo. Tropicalista até a medula, nos dirá alguém ao longo dos 88 minutos desse filme irresistível.
Sexo, todo mundo sabe o que é (e Cugat adorava praticá-lo). Maracas, idem. Cugat e seus músicos as portavam como símbolo máximo da música latina. E os “Chihuahauas” são aqueles cachorrinhos minúsculos, amados pelos mexicanos. E por Xavier Cugat, que chegava a reger sua orquestra com um deles no braço (a batuta ficava na mão desocupada). Um dos “cabeças falantes” do filme definirá o maestro como “tão oportunista quanto (Salvador) Dalí”. Nascidos ambos na fascinante Espanha.
COMPETIÇÃO NACIONAL
. “As Travessias de Letieres Leite”, de Iris de Oliveira e Day Sena (première nacional, Bahia, 90’) – Um deliciosa e criativa viagem pelo universo sonoro-corporal do maestro Letieres Leite (1959-2021), morto no auge de suas potencialidades criativas, em decorrência da Covid. O músico baiano é visto em entrevista muito viva e descolada, longe das platitudes de ‘cabeças declaratórias’, rememorando sua trajetória na Bahia e na Europa, onde se virou nos trinta. De volta ao Brasil, ele que começara nas artes plásticas e no cinema de animação (como discípulo de Chico Liberato), vai revolucionar a música afro-brasileiro com seus parceiros nas orquestras Rumpelezz e Rumpelezzinho. Suas imagens produzidas em animação atingem alto grau de poesia. O filme, que começou com a sólida presença do maestro, não perdeu o rumo sem ele. Testemunhos e trechos de outros filmes (de Cecília Amado, Pedro Watanabe, Ronaldo Evangelista, Vanessa Aragão, etc) darão origem a substantivo “retrato” do imenso legado Letierizziano-Rumpelezziano deixado a seus contemporâneos. Há momentos arrasadores: Letieres dançando com Caetano Veloso, Gilberto Gil lembrando o conterrâneo que partiu tão cedo, Lenine evocando o maestro-tsunami que o levou ao transe musical, e Russo Passapusso, do BaianaSystem, festejando o inventivo colega.
. “As Dores do Mundo: Hyldon”, de Emílio Domingos e Felipe Rodrigues (première nacional, RJ-SP, 90′) – O baiano Hyldon tornou-se um dos grandes nomes da soul music brasileira. Cantor, compositor, guitarrista, baixista e produtor, ele ocupou as paradas de sucesso e ganhou a posteridade com a bucólica e apaixonada “Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda”. Conheceremos sua musa – uma mineira que ele amou apaixonadamente e para quem criou versos como “Não estou disposto/ a esquecer seu rosto de vez/ e acho que é tão normal// Dizem que sou louco/ por eu ter um gosto assim/ gostar de quem não gosta de mim// (…) Alguém que você gostaria que/ estivesse sempre com você/ na rua, na chuva na fazenda/ ou numa casinha de sapé”. Dentro da narrativa auto-biográfica, haverá, pois, espaço para história de amor, da qual só conheceremos o final depois de hora e meia de imagens e sons.
. “Ave Sangria – A Banda que Não Acabou”, de João Cintra e Mônica Lapa (première nacional, PE, 77′) – A banda recifense Ave Sangria é um dos grandes nomes da psicodelia nordestina dos anos 1970. Em seu disco de estreia, gravou a canção “Seu Waldir”, composta para a atriz Marília Pêra interpretar em uma peça musical. A gravação alcançou certo sucesso, até que um censor decidiu que a letra, na voz do vocalista Marco Polo, tratava de “amor homossexual”. No filme, os dois únicos remanescentes da formação original da banda, Almir de Oliveira e o próprio Marco Polo, relembram suas histórias enquanto rodam as estradas de Pernambuco a bordo da Rural de Roger Renor.
. “Cazuza: Boas Novas”, de Nilo Romero, Roberto Moret (première nacional, SP-RJ, 91’) – Em 1987, Cazuza foi diagnosticado com Aids e viajou para os EUA para iniciar um tratamento. Internado em um hospital em Boston, ele chegou a ficar à beira da morte. No entanto, quando voltou ao Brasil no final daquele ano, lançou três álbuns, recebeu prêmios e fez mais de 40 apresentações do espetáculo “O Tempo Não Para”. Com depoimentos de Ney Matogrosso, Gilberto Gil, Frejat, sua mãe Lucinha Araújo e do próprio diretor do filme, Nilo Romero (amigo, parceiro de composições e diretor musical do último show de Cazuza), o documentário nos conta essa história com grande riqueza de detalhes.
. “Amor e Morte em Julio Reny”, de Fabrício Cantanhede (93’) – O filme conta a história do cantor e compositor gaúcho, talento recluso, cercado de fracassos por todos os lados. Na cena roqueira gaúcha desde os anos 1970, Julio levou a trilogia sexo-drogas-e-rock’n’roll a níveis extremos. Em meados da década de 1980, grava seu primeiro álbum “Último Verão”, e vive a expectativa de ver sua carreira deslanchar. De lá para cá muita coisa aconteceu. Entre palcos, cabarés e funerais, o filme narra sua história através de um longo e revelador depoimento do protagonista, que descobriu recentemente que é esquizofrênico e bipolar.
. “A Última Banda de Rock”, de Lírio Ferreira (RJ-RS, 120’) – Um filme sobre a banda gaúcha Cachorro Grande, que jogou o pernambucano numa enrascada: no meio do processo o grupo, reunido em 1999, se desfez, saturado por anos de turnês, gravações e conflitos. O jeito foi refazer a trajetória da banda, desde sua origem, em Porto Alegre, até sua implosão, em São Paulo, no exato ano em que comemoraria 20 anos de formação.
. “Alma Negra, do Quilombo ao Baile”, de Flavio Frederico (107’) – Um mergulho na cultura afro-brasileira, explorando a trajetória da soul music no Brasil, desde o final dos anos 1960 até o seu auge nos bailes black nas décadas seguintes. O percurso é construído com o olhar de intelectuais como Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez e Edneia Gonçalves. Com direção musical do produtor BiD.
. “Brasiliana – O Musical Negro que Apresentou o Brasil ao Mundo”, de Joel Zito Araújo (RJ, 83′) – “Brasiliana”, musical de repertório negro, criado por Haroldo Costa, em 1956, rodou o mundo, passando por mais de 30 países nas décadas de 1950 e 1960. O grupo levou a música, a dança e a cultura afro-brasileiras a plateias internacionais num tempo em que o Brasil ainda era sinônimo de “samba, futebol e mulher bonita”.
. “Os Afro-Sambas: O Brasil de Baden e Vinicius”, de Emílio Domingos (RJ, 93’) – Único diretor com dois filmes na competição, o carioca se entrega ao desvendamento do processo de criação do álbum “Os Afro-Sambas”, de Baden & Vinicius, gravado em 1966. O disco se tornaria um marco na história da música brasileira. Filmado entre Salvador e o Rio, o filme resgata imagens de arquivo, que se somam a depoimentos de Maria Bethânia, Dori Caymmi, Roberto Menescal, Marcos Valle, Russo Passapusso, além de familiares dos dois artistas. O foco recai sobre as inovações rítmicas, melódicas, harmônicas e poéticas das canções para reafirmar a enorme importância cultural daquele elepê que, ano que vem, completará 60 anos.
. “Sem Vergonha”, de Rafael Saar (RJ, 79’) – Encontro com a história e as músicas cantadas por Maria Alcina, desde sua participação no FIC 1972 (Festival Internacional da Canção), com a mobilizadora “Fio Maravilha”, de Jorge Benjor. A artista ocuparia, a partir dali, seu lugar no imaginário do público como um mix de extravagância, beleza e deboche. Masculina, feminina, livre, popular, essa figura de voz grave e figurinos exóticos sempre cantou a alegria, sem deixar transparecer uma sombra sequer de sua vida pessoal.
MOSTRA BRASIL (informativa)
. “Aldo Bueno: O Eterno Amanhecer”, de Adriano De Luca (première nacional, SP, 86’) – No começo da década de 1980, o ator (e cantor) paulistano Aldo Bueno ganhou o Kikito de melhor coadjuvante por seu trabalho no filme “A Próxima Vítima”, de João Batista de Andrade. Em sua coluna, na Folha de S. Paulo, Paulo Francis escreveu – de Nova York, onde vivia – que “nem ator ele era”. De Luca resolveu, com o mínimo de recursos financeiros, na base do ‘vamos fazer como der’, concluir seu longa documental. E o fez com a cumplicidade do biografado. Para entrar no clima do filme, o espectador terá que estabelecer um pacto com a precariedade. Até ser apadrinhado por Geraldo Filme e conquistar espaço nas escolas de samba de SP (foi “puxador de samba” da Vai-Vai no histórico desfile de 1982), Aldo Bueno, menino negro e pobre, enfrentou momentos muito difíceis. Dormiu ao relento, procurou a mãe, que desaparecera, e foi vivendo na medida do possível. A vida artística o salvou. O samba é o pagode o andaram em sua travessia. Em 1986, venceu o Festival de Pagode da Manchete. Atuou, também em “Doramundo”, do mesmo Batista, “Eles Não Usam Black Tie”, de Leon Hirszman, e, especialmente, em “Boleiros”, de Ugo Giorgetti. Neste filme, deu vida e dignidade a Majestade, personagem inspirado em ex-jogador do Santos, obrigado a vender suas medalhas, para garantir a sobrevivência.
. “Jackson – Na Batida do Pandeiro”, de Marcus Vilar e Cacá Teixeira (PB-RJ, 97’) – Documentário de formato clássico, mas muito bem construído, com sólida pesquisa, comandada pelo biógrafo Fernando Moura (o livro é fruto de parceria com Antônio Vicente) e amplo acesso a arquivos cinematográficos. Ninguém sairá do cinema sem conhecer a vibrante trajetória do paraibano nascido em Alagoa Grande, rei do ritmo, cantador de côcos, aquele que misturava chiclete com banana. O Jackson de Marcus Vilar (e de seu saudoso parceiro, Cacá Teixeira) é visto como fonte de imensa originalidade, dotado de qualidades rítmicas incomuns, capaz de influenciar gerações de artistas de nossa música popular. Ricos testemunhos (de Bráulio Tavares, Almira, Gilberto Gil, João Bosco, Elba Ramalho, Zuza Homem de Mello), colhidos ao longo de muitos anos, somados a valiosas imagens de das participações de Jackson no cinema (em filmusicais e chanchadas tardias), nos palcos e nas rádios, darão ao espectador substantivo registro da complexa jornada do artista afro-brasileiro. Uma jornada feita de altos e baixos, marcada por dramas e polêmicas. O estrelato vertiginoso contrastaria com momentos de doloroso ostracismo. Por sorte, ele conseguiu retomar carreira artística nos anos 1970 e viver bons momentos (inclusive no Projeto Pixinguinha, em dupla magnética com Alceu Valença). Até que sua morte, em Brasília, em 1982, aos 63 anos, pusesse termo aos seus sonhos. Que o público do In-Edit não dê ouvidos a quem disser que o filme não inova, não é sensorial. E daí? Se o que ele quer — e faz muito bem — é contar a passagem de Jack Som do Pandeiro por esse mundo de meninos pobres, no qual alguns (poucos) venceram por seu talento, malemolência e ritmo contagioso.
. “Leci”, de Anderson Lima (première nacional, SP, 70’). Em 1978, Leci Brandão concedeu reveladora entrevista ao jornal Lampião da Esquina, publicação gay editada por Aguinaldo Silva. Ela falou de samba, Mangueira e de ser “mulher e gay”. Hoje, a sambista, atuante e incansável deputada estadual (pelo PCdoB) ganha um filme para chamar de seu. Serena, a artista concentrar em dois dois campos — samba, sempre ele — e de seus projetos parlamentares. Precursora da chamada “música com consciência social”, ela se orgulha de ser a segunda deputada negra na história da Assembleia Legislativa de São Paulo, mas o faz discretamente, sem alterar a voz. Serena, madura, educada e generosa segue cantando e trabalhando. É uma parlamentar que luta “por mais diversidade e justiça social”. Diversas personalidades dão seus testemunhos sobre a artista e seus 50 anos de carreira. O filme poderia ter rendido mais se a sambista-deputada, de 80 anos, e seus amigos fossem mais fundo nos temas que afloram em sua dedicada entrega à música e à vida parlamentar. Até a troca do Rio de Janeiro por São Paulo, algo incomum na vida de um sambista, merecia tratamento mais aprofundado.
. “Goiânia Rock City”, de Theo Farah (première nacional, GO, 102’) – Quem acha que Goiânia é a capital do agro e do sertanejo desconhece uma das “mais vibrantes cenas de rock do país”. Este documentário explora o florescimento da cena alternativa goianiense revelando bandas, festivais e espaços que fomentam uma rica diversidade de timbres, estilos e gêneros. Através do depoimento de seus diversos protagonistas, como os integrantes do MQN, Black Drawing Chalks e Hellbenders, Goiânia Rock City nos mostra a evolução de um movimento que revolucionou a cidade e a maneira como seus cidadãos se percebem.
. “Hardcore 90”, de Marcelo Fonseca e George Ferreira (première nacional, SP, 91’) – No final dos anos 1980, a primeira geração do punk brasileiro vivia um ciclo de violência e autodestruição. Em mão contrária, o início da década seguinte vê surgir uma geração potente e antenada, que amplia os ecos do punk, trazendo novas vertentes para o gênero. Mais politizada, unida e socialmente consciente, a safra dos anos 1990 chega para enterrar a briga dos “velhos” e dar vida a uma cena engajada e ativa, apresentando novos talentos para o cenário musical brasileiro, com nomes importantes como No Violence, Agrotóxico, Ação Direta, Garage Fuzz, Dominatrix, entre outros.
. “Mestras”, de Roberta Carvalho e Aíla (PA, 52’) – Viagem pelas tradições culturais da Amazônia, revelando o papel fundamental das mulheres na preservação do rico tesouro musical da região, do samba de cacete ao carimbó. Mestras como Dona Onete, Iolanda do Pilão, Miloca e Bigica conduzem essa história, apresentando ao público a profusão de sons, ritmos e manifestações poéticas que atravessam gerações e mantêm vivas as raízes culturais e musicais amazônicas.
. “O Ano em que o Frevo Não Foi pra Rua”, de Bruno Mazzoco e Mariana Soares (PE, 71’) – Em 2021, as cidades de Recife e Olinda viram seu maior patrimônio cultural, o Carnaval, ser cancelado por causa da pandemia de Covid-19. Suas praças e ruas ficaram desertas, deixando a melancolia tomar conta de tudo. Personagens como Fernando Zacarias, porta-estandarte do Galo da Madrugada, Carlos da Burra, responsável por carregar o mítico Homem da Meia-Noite, e o maestro Spok, autointitulado como “o último folião”, expressam sua incredulidade e tristeza, em um filme que fala de ausência e alegria adiada, mas também de resiliência, amor e expectativa.
. “Passarô”, de Taciano Valério (première nacional, PB-RJ, 72’) – Depois de mais de 60 anos se apresentando em tudo quanto é tipo de palco pelo Brasil, o cantor Azulão anunciou sua aposentadoria em 2022. Desde os dez anos, ele já frequentava rádios e festas populares em Caruaru, integrando tradições como o pastoril. De suas composições, mais de 60 foram gravadas por nomes como Genival Lacerda e Trio Nordestino e entre seus sucessos estão “Dona Tereza” e “Afogando a Minha Dor”. Presença marcante no São João de sua cidade natal, ele inspirou o ditado “Um São João sem Azulão não é São João”.
. “Toquinho Maravilhoso”, de Alejandro Berger Parrado (Brasil/Uruguai, 72’) – Autor de diversos sucessos, alguns deles em parceria com Vinícius de Moraes, como “Que Maravilha”, “Aquarela” e “Tarde em Itapoã”, o compositor e cantor paulistano (do Bom Retiro) conquistou o público brasileiro, argentino e italiano com suas melodias e a sonoridade de seu violão. Hoje, aos 78 anos, continua a encantar plateias em seus shows. O diretor Alejandro Berger Parrado acompanhou o músico por diferentes cidades, no Brasil e no exterior, comprovando que sua música e sua figura são reverenciadas por onde passa.
. “WR Discos – Uma Invenção Musical”, de Nuno Penna e Maira Cristina (BA, 78’) – Vencedor da competição baiana do Panorama Coisa de Cinema, da Bahia, este documentário registra a história do WR, o maior estúdio de gravação da região Nordeste durante as décadas de 1980 e 1990. Fundado em Salvador em 1975 por Wesley Rangel, o espaço acolheu uma série de artistas da música local, que já não precisavam mais sair da Bahia para gravar seus discos, desenvolvendo assim uma sonoridade própria. A partir daí, começa uma verdadeira revolução na música (e na indústria cultural) brasileira, espalhando axé e sucesso por todas as rádios do país.
MOSTRA BRASIL.DOC
. “Baile Soul”, de Cavi Borges (RJ, 75’) – A partir dos anos 1970, os bailes de soul music tornaram-se uma febre nos subúrbios cariocas. Embalados por artistas como James Brown e Isaac Hayes, milhares de jovens calçaram seus sapatos cavalos de aço, vestiram suas calças bocas de sino e começaram a reivindicar o direito de exercer sua negritude, mesmo com o bicho pegando em plena ditadura militar. Com depoimentos de quem viveu e organizou essas festas, com destaque para Dom Filó, Carlos Alberto Medeiros, DJ Corello e Dr. Sidney, Baile Soul narra essa história repleta de energia, groove e afirmação cultural.
. “Concerto De Quintal”, de Juraci Júnior (RO, 80’) – A cidade de Porto Velho, em Rondônia, abriga significativa diversidade musical. A partir do acervo de Silvinho Santos, um artista local, o filme apresenta uma série de referências, nomes, estilos e gêneros musicais praticados e apreciados por diferentes gerações na cidade. Este acervo, com dezenas de fitas K7 registradas pelo pai de Silvinho, é composto por gravações inéditas, contendo registros de ícones locais, como Jorge Andrade, Torrado e Manelão.
. “Dino Franco, A Raiz do Sertanejo”, de João Francisco Cunha (SP, 98’) – Compositor da chamada “música sertaneja raiz”, Dino Franco começou sua carreira no final dos anos 1950. Anos depois, atuando como produtor e executivo de gravadora, ajudou nomes como Milionário e José Rico, Matogrosso e Mathias, Lourenço e Lourival, Abel e Caim e Liu e Léu a alcançar a fama. Com imagens de arquivo e depoimentos de amigos e familiares, o filme retrata a trajetória deste letrista, autor de clássicos como “Amargurado”, “Cheiro de Relva”, “Travessia do Araguaia”, “Caboclo na Cidade” e “Manto Estrelado”.
. “Essência Interior (Júpiter – Gross – Cascaes) – 1996 – 1999”, de Roberto Panarotto (RS, 71’) – Um dos artistas mais celebrados do rock gaúcho, Júpiter Maçã lançou seu álbum de estreia, “A Sétima Efervescência”, em 1997. Para acompanhá-lo na estrada, chamou o multiinstrumentista Marcelo Gross para assumir a bateria e Júlio Cascaes para atacar no baixo. Através de imagens de arquivo e entrevistas inéditas, Essência Interior aborda esse período fértil (e breve) na trajetória do artista, que teve início em outubro de 1996 e se estendeu até dezembro de 1999.
. “O Clube da Guitarrada”, de Tânia Menezes (première nacional, PA, 57’) – Com influência da música caribenha e de ritmos regionais como o carimbó, a Amazônia gestou um gênero brasileiríssimo: a Guitarrada. E chamou atenção para mestres como Vieira, Aldo Sena, Curica e Pinduca. Com eles, o gênero se estabeleceu e criou raízes. Estabelecido por Pio Lobato, o Clube da Guitarrada reúne, no primeiro domingo de cada mês, uma nova geração de músicos e instrumentistas, disposta a celebrar e difundir a memória do gênero.
. “Regional Beat: Uma Antena Parabólica Fincada na Terra Vermelha”, de Matuto S.A. (première nacional, SP, 63’) – Inspirado pelo manguebeat, o artista independente Matuto S.A. empreendeu pesquisa musical em busca de elementos da música caipira e do Hip Hop, criando o “Regional Beat”. O filme registra esse trabalho e traz depoimentos de artistas como DJ KI Jay, Criolo, Gaspar Zafrica Brasil, Carlos de Assumpção, Isa do Rosário e Ivan Vilela, entre outros.
. “Veraneio: Uma Antologia Negra”, de Nalu Silva (SP, 59’) – O documentário celebra o legado de Seu Osvaldo Pereira, considerado o primeiro DJ do Brasil. Em 1958, ele criou a “Orquestra Invisível Let’s Dance”, primeiro baile com toca-discos e vinis da capital paulista. O evento se tornaria um marco ao oferecer festa acessível a pessoas negras e trabalhadoras. Acompanhado por seu filho e seu neto, também DJs, Seu Osvaldo nos conta sua história.
CURTAS-METRAGENS
. “Antonio e Manoel”, de Zeca Ferreira (RJ -15’) – Antonio Venâncio é um dos mais importantes pesquisadores de imagens do audiovisual brasileiro. Manoel Filho é um colecionador de discos e profundo conhecedor da cultura musical do país. Cada um em seu quadrado, eles refletem sobre memória e preservação em tempos de excesso de ruído na era digital.
. “Vamembolá”, de Lucila Meirelles e Cid Campos (SP, 27′) – Em expedição realizada em 1928, Mário de Andrade conheceu Chico Antônio, embolador de coco que vivia em Engenho Bom Jardim (RN). Este encontro foi registrado no livro “O Turista Aprendiz”, de 1929. Por meio de imagens de arquivo, “Vamembolá” apresenta depoimentos do próprio Chico, falando sobre seu encontro com o autor modernista e traz remixes contemporâneos de suas emboladas.
. Volta Seca a Favor do Vento – Cantigas De Lampião”, de Marlon Delano (SE, 16’) – “Acorda Maria Bonita” e “Mulher Rendeira”, canções que surgiram dentro do bando de Lampião, são conhecidas de norte a sul do Brasil. O que pouca gente sabe é que o mais jovem cangaceiro do grupo, Antonio dos Santos, o “Volta Seca”, foi o autor dessas canções e também um poeta de sentimentos profundos. Através da linguagem de cordel, este curta faz incursão pelo álbum “Cantigas de Lampião”, no qual sua voz foi eternizada em vinil.
. “Black House: Jazz É o Corre”, de Amilcar Neto (SP, 20’) – Nascido em Limeira (SP), o jovem Lucas Gomes é um virtuoso trompetista de jazz. Vivendo na periferia paulistana, ele encontrou no som instrumental a possibilidade de expressar suas dores e prazeres.
. “Discoterra”, de Gustavo Aquino dos Reis, Daniel Wierman e Arnaldo Robles (SP, 30’) – Inspirado no livro “Turista Aprendiz”, de Mário de Andrade, o curta visita diversos colecionadores, pesquisadores e vendedores de discos de vinil, CD e fitas K7 em cidades do interior da Bahia.
. “Jamming – O Ano em que Junior Marvin Morou em Goiânia”, de Danilo Camilo (GO, 26’) – No final da década de 1990, o guitarrista Junior Marvin, ex-integrante dos Wailers, a banda de Bob Marley, aportou em Goiânia. O que era para ser uma breve passagem acabou se prolomgando por mais de um ano, período em que o músico formou uma banda de reggae com músicos locais.
. “Jingles Como Política Afetiva”, de Kjetil Klette Bøhler (Brasil/Noruega, 33’) – Durante uma passagem pelo Brasil, o pesquisador norueguês Bøhler percebeu algo que lhe pareceu inusitado: a utilização dos jingles nas campanhas políticas do país. Acompanhando o período das eleições de 2022, ele procura compreender as paixões políticas do brasileiro e como as produções sonoras mobilizam os eleitores.
. “Lá No Alto”, de Juliana Lima (PE, 16’) – Em registro sem depoimentos, acompanhamos a rica produção artística do Alto José do Pinho, um dos bairros mais vibrantes da cidade do Recife. Com trilha sonora composta pelo guitarrista Neilton Carvalho, da banda Devotos.
. “Notas da Tradição: Pífanos de Ribeira do Amparo”, de Michele Menezes (BA,11’) – Diferentes gerações de músicos que dedicam seus esforços à preservação e renovação das bandas de pífanos em Ribeira do Amparo, no interior da Bahia.
. “Pagode do Didi, nosso Ponto de Encontro”, de Maysa Carolino (PE, 24’) – Há mais de quarenta anos, Mestre Didi comanda a mais antiga roda de pagode do Recife. Cravado no centro da cidade, o evento atrai multidões e faz a terra do frevo cair no samba.
. “Spectros: Algum Nome, Nenhum Rosto”, de Ciro Lubliner (SP, 15’) – Em 1976, um garoto de 14 anos constrói em Sorocaba, no interior paulista, um transmissor FM e dá início à “Rádio Spectro”, considerada a primeira emissora pirata brasileira.
. “Vollúpya”, de Érica Sarmet e Jocimar Dias Jr. (SP-RJ, 21’) – Misturando ficção científica e documentário, Vollúpya segue um explorador intergaláctico que descobre registros de uma boate queer dos anos 1990, em Niterói (RJ). Usando arquivos de vídeo em VHS e depoimentos, o filme celebra a vida noturna queer brasileira daquela década.
17º In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical
Data: de 11 a 22 de junho, em São Paulo
Informações: br.in-edit.org