O Mundo de Glória

Por Maria do Rosário Caetano

O cineasta francês, de origem armênia, Robert Guédiguian abre “O Mundo de Glória” – estreia dessa quinta-feira, 25 de fevereiro, nos cinemas – com cena de parto que homenageia um dos filmes de seu “conterrâneo”, Artavazd Peleshian. O documentarista armênio, de 82 anos, desenvolveu sua poderosa e concentrada produção (apenas sete curtas ou médias-metragens) na União Soviética. Formou-se na VGIK (Escola Pan-Russa de Cinematografia) e tornou-se autor muito estimado por seus pares (inclusive por Jean-Luc Godard).

Guédiguian escolheu, para abrir “Gloria Mundi” (“Sic transit gloria mundi – toda a gloria do mundo é passageira”), a exposição – sem nenhum apelo sensacionalista – de um parto real. Uma criança do sexo feminino nasce. Ela se chamará Glória. É filha da jovem Mathilda (Anaïs Demoustier) e neta de Sylvie (Ariane Ascaride) e de dois avôs, Robert (Jean-Pierre Darrousin) e Daniel (Gérard Meylan). O pai da recém-nascida, Nicolas (Robinson Stévenin) está feliz com a chegada do bebê, mas, desempregado, espera a hora de assumir a função de motorista do Uber.

Guédiguian só explicitará a homenagem a Peleshian nos créditos finais de seu vigésimo-segundo longa-metragem. Quem assistiu aos filmes do diretor soviético-armênio (ele foi homenageado, presencialmente, pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 1994) sabe que Pelechian construiu, em “Vida”, uma ode ao nascimento. No rosto de uma parturiente, vemos as terríveis dores do ato de parir, mas também a alegria de gerar uma nova vida.

“Gloria Mundi” tem a cidade de Marselha, espaço territorial dos melhores filmes de Guédiguian, como um “personagem”. Nela, vive a família da pequenina Glória, gente que se dedica a modestos ofícios. Sylvie é faxineira, Robert é motorista de ônibus, mamãe Mathilda trabalha, contrariada, como balconista em loja de roupas. Como motorista do Uber, o honesto Nicolas enfrentará grave problema.

Quem parece se dar bem é a fogosa e ambiciosa Aurore (Lola Naymark), irmã de Mathilda, casada com o também ambicioso e descolado Bruno (Grégoire Leprince). Juntos, os dois exploram loja que compra, a preços baixíssimos, uma gama infinita de pequenos eletrodomésticos para, depois de uma “garibada”, revendê-los com significativos lucros.

O filme, que participou do Festival de Veneza, em 2019, e premiou Ariane Ascaride com a Copa Volpi de melhor atriz, constrói-se como um melodrama banhado em atmosfera polar (como os franceses chamam o filme policial).

A ligação da família com o mundo do crime está – como o parto de Glória – nas sequências iniciais do filme. Daniel (o que seria de Guédiguian sem a trinca Gérard Meylan-Ascaride-Darroussin?) entra em cena ao abandonar a prisão, onde passou vinte longos anos, por assassinato. Ele é o avô de sangue de Glória. A filha Mathilda, porém, prefere Richard, o segundo marido de sua mãe, que a criou desde pequenina. Não quer saber do pai e de seu passado criminoso.

Um roteiro muito bem articulado revelará a Marselha dos que vivem em busca de dinheiro para a sobrevivência. E, também, aqueles, caso dos motoristas de táxi revoltados com a chegada do Uber, e dos ambiciosos que usam o comércio para ascender socialmente. Os dramas familiares se desdobrarão de forma convincente, numa mistura de ternura e sordidez. Há até triângulo amoroso que parece saído da imaginação de Nelson Rodrigues. Sem esquecer um pungente testemunho de Sylvie, que relembra o que se passou quando Daniel foi preso e ela, grávida e desempregada, teve que se virar (mais um momento de tom rodriguiano).

Ascaride, Darroussin e Meylan, parceiros de Guédiguian em tantos filmes, dão o discreto show costumeiro (impossível não se comover com o pequeno solo de Darroussin, quando Richard é multado pelos guardas de trânsito, pois conduzia o ônibus e, ao mesmo tempo, entabulava longa conversa ao celular). O elenco jovem também se sai bem. Ninguém parece uma estrela de cinema em ação nos filmes do marselhês-armênio. Ele nunca escondeu sua preferência por atores com cara de gente comum, dessas que encontramos em ruas de muitos e apressados pedestres.

O diálogo com o cinema documental é um dos esteios do cinema de Guédiguian. Filmes que o projetaram, como o excelente “A Cidade Está Tranquila” ou o tocante “As Neves do Kilimandjaro”, que o digam. Suas narrativas constroem-se como dramas realistas, enriquecidos ao dialogar com outros gêneros, em especial o polar (“Lady Jane”).

Se Guédiguian a todos encantou com a beleza solar e o humor esperançoso de “Uma Casa à Beira Mar” (2017) e a outros tantos decepcionou com o fantasioso “O Fio de Ariane” (2014), há que se dizer que “Gloria Mundi” é sua volta segura ao mundo das pequenas transgressões cotidianas e das muitas dores (e alegrias) dos que vivem em família.

Não se trata de uma obra-prima. Daí, causar certo espanto a consagração da crítica francesa (até a Cahiers du Cinéma brindou este ‘melodrama-polar’ com cinco estrelas). Mas é inegável que “O Mundo de Glória” integra a lista dos melhores momentos de Guédiguian-Ascaride-Darroussin-Meylan. O quarteto apresenta-se, passados tantos anos de trabalho conjunto, em grande forma.

E quem se entusiasma com os ingredientes políticos que costumam aparecer, sem nenhum panfletarismo, nas narrativas do marselhês, verá o assunto novamente em pauta. A faxineira Sylvie entrará, no hospital que a emprega, em conflito com trabalhadores-grevistas, liderados por um afro-francês (Djouc Koma). Os tempos são outros. Sindicatos aglutinadores parecem coisa do passado.

 

O Mundo de Glória | Gloria Mundi
França, 107 minutos, 2019
Direção: Robert Guédiguian
Elenco: Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan, Anaïs Demoustier, Robinson Stévenin, Lola Naymark, Gregoire Leprince, Djouc Koma
Distribuição: Imovision

 

FILMOGRAFIA
Robert Guédiguian (Marselha, França – 03-12-1953)

2021 – “Twist à Bamako” (Mali Twist)
2019 – “O Mundo de Glória”
2017 – “Uma Casa à Beira-Mar”
2015 – “Une Histoire Fou”
2014 – “O Fio de Ariadne”
2011 – “As Neves do Kilimandjaro”
2009 – “L’Arme du Crime”
2007 – “Lady Jane”
2006 – “Uma Viagem à Armênia”
2005 – “O Último Mitterand” (doc)
2004 – “Le Promeneur du Champ de Mars”
2003 – “Mon Pére Est Ingénieur”
2001 – “Marie-Jo e Seus Dois Amores”
2000 – “A Cidade Está Tranquila”
1999 – “À l’Attaque”
1998 – “A la Place du Coeur”
1997 – Marius e Jeanette”
1995 – “À la Vie, à la Mort!”
1993 – “L’Argent Fait le Bonheur”
1989 – “Dieu Vomit les Tièdes”
1985 – “Ki lo sa?”
1983 – “Rouge Midi”
1981 – “Dernier Été”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.