Bete Mendes fugiu de papéis eróticos fáceis para enfrentar novos desafios
Por Maria do Rosário Caetano, de Vitória
A atriz Bete Mendes, de 73 anos, divide generosamente com a amiga paraibana Marcélia Cartaxo a condição de estrela da vigésima-nona edição do Festival de Cinema de Vitória. Na noite dessa quinta-feira, 22 de setembro, ela recebeu o Troféu Vitória, láurea máxima do festival capixaba, atribuída por sua trajetória no cinema, teatro e TV. O fez com simplicidade ímpar, vestida sem nenhum glamour, com os cabelos grisalhos, maquiagem quase invisível. No discurso, só generosidade, versos de Vinícius de Moraes — “a vida é a arte do encontro/ embora haja tanto desencontro pela vida” — agradecimento aos amigos e colegas de ofício e “torcida pela vitória de Lula no primeiro turno”.
Na parte da tarde, também vestida com simplicidade franciscana (uma camiseta azul com discreta estampa de Fernando Pessoa), ela recebeu a imprensa para lançar seu “Caderno Biográfico” (com sua trajetória artístico-existencial, filmografia, telenovelas, minisséries, peças teatrais e farto material fotográfico).
Num dos mais descontraídos trechos da entrevista, a atriz contou aos jornalistas que recusou papéis eróticos em filmes e peças, pois os produtores a queriam de “calcinha e sutiã, sempre na cama”.
— Seu trabalho mais importante foi feito na TV. Aliás, bem jovem, você tornou-se conhecida nacionalmente como a Renata de “Beto Rockfeller” (1968/69). Foi por causa das telenovelas que você fez poucos filmes e poucas peças teatrais?
— É verdade que meu trabalho na TV foi mais intenso que no cinema e no teatro. Mas eu comecei pelo palco. Eu nasci em Santos (11/05/1949), onde fiz teatro amador, infantil, colegial. Fui para São Paulo, pois queria fazer cursinho pré-vestibular e tentar vaga no curso de Ciências Sociais. Estava no terceiro ano do clássico no excelente Colégio de Aplicação da USP e precisava arrumar emprego. Mas era difícil arrumar trabalho de meio expediente. Eu estudava à tarde. Então, à noite, não saía do teatro. Via tudo o que podia. Um dia, um colega, Carlos Silveira, me levou para um teste com Antunes Filho. Juca de Oliveira e Irene Ravache estavam no elenco. Sobrou para mim uma garçonete sem fala, o último papel. Só que algo aconteceu com a atriz do penúltimo papel, com fala, e eu a substituí. Cassiano Gabus Mendes assistiu à peça e gostou de mim. Me levou para a TV Tupi. Fui parar no elenco de “Beto Rockfeller”. Meu papel, a Renata, era pequeno. Eu seria apenas a amiga da mocinha, a protagonista, Débora Duarte, filha do diretor da novela, o grande Lima Duarte. Ela era uma atriz jovem, mas já experiente. Eu, uma iniciante. Mas o autor, Braúlio Pedroso, gostou de mim. E o personagem do Beto Rockfeller (Luiz Gustavo) se apaixonou por mim, ou melhor, pela minha personagem. Aí ela foi crescendo. Do dia para a noite, eu, que era uma desconhecida, estava em todas as revistas. Foi uma loucura. Fizemos até “A Volta do Beto Rockfeller”.
— E você foi trabalhar na TV Globo e causou sensação com “O Rebu”.
— Pois é. Bráulio Pedroso me convidou para a novela, a versão original, claro (1974). Depois de várias telenovelas na Tupi, em São Paulo (“Super Plá, Simplesmente Maria, Meu Pé de Laranja Lima, Nossa Filha Gabriela, Na Idade do Lobo, A Revolta dos Anjos, As Divinas… e Maravilhosas”), eu me mudava para o Rio e conhecia outra realidade. As novelas da Tupi eram artesanais, feitas na base do “jeitinho brasileiro”. Já na Globo o ritmo era industrial, muito profissional. Aprendi muito na emissora. Tive experiências maravilhosas, inesquecíveis. Não posso esquecer “Anos Rebeldes”, do Gilberto Braga, uma minissérie maravilhosa, que foi submetida a rigorosa censura, mesmo em tempos de democracia estabelecida. Faço questão de lembrar que integrei a montagem original da peça “Gota d’Água”, de Chico Buarque e Paulo Pontes (1975), e que nossos ensaios eram vigiados, censurados, cerceados, uma coisa terrível. Voltando aos meus trabalhos na Globo, tenho que destacar a novela “O Rei do Gado”, de Benedito Ruy Barbosa. Stênio Garcia e eu interpretamos o casal Zé do Araguaia e Donana, sob direção de Luiz Fernando Carvalho. Passamos um mês numa fazenda convivendo com a gente do lugar, pegando a musicalidade da fala deles. O resultado foi incrível. Nossos personagens estouraram no coração dos espectadores. Cada vez mais a TV Globo foi incentivando, criando condições para que seus atores fizessem pesquisa de campo, elaborassem melhor seus personagens. Quero destacar, também, a minissérie “A Casa das Sete Mulheres”, um trabalho maravilhoso, dirigido por Jayme Monjardim.
— Voltando à questão original: ocupada com as telenovelas, você não tinha tempo para fazer filmes, nem teatro…
— Olhe, vou falar a verdade: eu pulei de intérprete de um pequeno “penúltimo papel” de poucas falas para o estrelato na principal novela da Tupi (“Beto Rockfeller”). Uma simples estudante da USP, uma novata dos palcos, estava, de um dia para o outro, em todas as revistas. Então, eu recebia muitas peças e roteiros de filmes que me propunham papéis da bonitinha sexy, de calcinha e sutiã, em cima da cama. Sempre na cama. Sempre o mesmo tipo. Começaram a proliferar revistas tipo Ele & Ela, Homem, Playboy, espetáculos eróticos, nos quais a cama era o cenário principal. Não quero ser moralista. De forma alguma. Minha amiga querida Sonia Braga fez filmes com teor erótico nos quais ela está divina e maravilhosa. Mas eu não me sentia motivada para tais experiências. Desejava outros desafios. Havia minha militância política, eu lia as peças de Brecht, queria crescer como atriz. Tanto que, quando Gianfrancesco Guarnieri e Leon Hirszman me chamaram para fazer “Eles Não Usam Black-Tie” (1981), eu fiquei muito feliz. Ganhei um presente que defino como extraordinário. Quero contar uma coisa muito bonita da produção desse filme para vocês: ele teve uma produção sólida, muito bem estruturada, permitida pela parceria da empresa do Leon com a Embrafilme, recompensada com prêmio no Festival de Veneza e bom público. Pois bem: os cachês ganhos por Fernanda Montenegro, Gianfrancesco Guarnieri, Carlos Alberto Riccelli e por mim foram idênticos — no mesmo valor. Trabalhamos por três meses ganhando a mesma quantia e muito felizes.
— Antes de “Black-Tie”, você fez “Os Amantes da Chuva” (1979), de Roberto Santos, outro grande nome do cinema brasileiro. Que lembranças guarda desse filme e do cineasta (1928-1987)?
— Guardo boas lembranças do filme, uma história de amor marcada por algo inusitado. Sempre que os amantes se encontravam, chovia. Uma história atemporal, que merecia ser mais vista. De Roberto Santos, fui grande amiga. Dele, de Leon Hirszman e de Guarnieri, três colegas que partiram. Eu estava com Roberto em Gramado, quando ele competiu com o filme “Quincas Borba”, que foi muito mal recebido. Ele sofreu muito. Ao regressar, teve um enfarte no Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos. Foi socorrido, mas morreu aos 59 anos. Fomos velá-lo no MIS, num dia de muita tristeza.
— E de “J.S. Brown, o Último Herói do Gibi” (1980), de José Frazão? Embora seja um filme pouco conhecido, ele tem alguns admiradores fiéis.
— A história desse filme é muito divertida. Eu tinha verdadeira loucura para conhecer a Bahia, Jorge Amado, Dorival Caymmi, Carybé, enfim, aquela turma maravilhosa. Quando me convidaram para “J.S.Brown” e me falaram que a história seria filmada na Bahia, eu disse sim na hora. A produção era precária, como a da maioria dos filmes brasileiros. Me avisaram que eu ficaria no apartamento de alguém da equipe, não num hotel. Topei. Eu queria rosetar, curtir a Bahia, conhecer Jorge, Caymmi… Conheci o Clarindo Silva, da Cantina da Lua, e seu maravilhoso trabalho em defesa do Pelourinho e do Terreiro de Jesus. Até hoje ele é meu amigo e nos correspondemos com frequência. Conheci muitos artistas baianos, passava a noite nos bares com a moçada, uma alegria louca. Lembranças maravilhosas. Neste filme, eu interpreto uma bonequinha gostosinha, o que poderia parecer contradição com o que eu disse antes. Mas há uma grande diferença. O par dela na história é um personagem afro-brasileiro, interpretado pelo ator Marcus Vinícius. E ela morre! Aí, meu corpo era levado para autopsia no IML da Faculdade de Medicina da UFBa, a mais antiga do país. Quando me deitaram naquele mármore frio, me deu calafrios. E me contaram que haviam acabado de autopsiar o corpo de um bêbado ali. Quando cheguei ao apartamento onde estava hospedada, me deram um banho de álcool.
— Que outros trabalhos seus, no cinema, você gostaria de destacar?
— “Vestido de Noiva” (2004), de Joffre Rodrigues, inspirado na peça homônima de Nelson Rodrigues, no qual interpretei Dona Lígia, e “Introdução à Música do Sangue” (2017), de Luiz Carlos Lacerda, que me permitiu trabalhar com Ney Latorraca, santista como eu, e mesmo assim, nunca havíamos trabalhado juntos. E quero destacar o curta-metragem “Esta Noite Seremos Felizes” (2022), de Diego dos Anjos, por razão muito especial — ele me permitiu trabalhar com um ator que admiro muito e com o qual nunca havia trabalho, o baiano Othon Bastos. Foi uma experiência maravilhosa. Uma farra. Gosto muito dele e de sua companheira, a Martha Overbeck. Depois desse trabalho conjunto, temos tido uma série de encontros felizes. O último foi no musical “Judy Garland”, do Flávio Marinho, com a maravilhosa Luciana Baga.
— O que o teatro significa na sua vida?
— Embora não tenha feito teatro na quantidade que gostaria (Bete atuou em 13 peças), tenho o teatro como a base de tudo, a raiz, a caixa que nos dá formação e informação. Nós estamos ali, com a plateia, sem break, sem corte, sem repetição, montagem ou ângulo. Aprendi muito com Antunes Filho e muitos outros diretores. Não nego que aprendi bastante com a TV. O elenco de “Beto Rockfeller” era uma escola: Luiz Gustavo, Maria Della Costa, Walter Foster, Jofre Soares, Irene Ravache, Débora Duarte, o mestre Lima Duarte. Ator aprende em contato com o outro. Quem quiser atuar sozinho, que vá fazer monólogo. E olhe lá, pois pode se dar mal. E devo muito, mas muito mesmo, ao casal Eva Wilma e Carlos Zara, grandes amigos e mestres. Ela me ensinou a cuidar da pele, da memória, da bolsa, sim da bolsa, da hora de comer, de dormir… Quando fui interpretar uma ceguinha em “SuperPlá”, novela da Tupi, como par de Rodrigo Santiago, vi Eva Wilma interpretando uma cega no teatro. Fui atrás dela e pedi ajuda. Ela me disse: vá ao Instituto dos Cegos e conviva com eles, estude com eles, use venda e bengala, aí você perceberá como os ruídos ganharão relevo. Foi o que fiz.
— Você foi deputada federal pelo PT, partido que ajudou a fundar e do qual se afastou, indo para o PMDB, pelo qual se elegeu deputada constituinte. Você está apoiando a candidatura do Lula?
— Não pude ter filhos por causa da tortura (Bete denunciou o militar Brilhante Ustra como um dos responsáveis pela tortura sofrida por ela no começo dos anos 1970). Quando deixei o PT, gastei nove meses, o tempo de uma gestação, para decidir me filiar ao PMDB. Foi difícil, pois eu sempre fui petista. Minha amizade com Lula nunca foi abalada. Nunca deixamos de ser amigos. Estou sempre nas reuniões culturais que ele faz no Rio. É só me ver e ele vem me abraçar. Se ele ganhar, e espero que ganhe no primeiro turno, Lula vai enfrentar um primeiro ano dificílimo. Vai encontrar uma política de terra arrasada. Na área cultural, as leis estão desmanteladas. Não há nada previsto para o orçamento 2023. Ele vai ter que fazer um trabalho duro no Congresso para reconstruir cada projeto. E a Petrobras, que foi tão importante nos governos anteriores, está praticamente privatizada.