“O Barulho da Noite” traz Tocantins a Gramado e motoqueiros de Brasília enfrentam a pandemia nas ruas

Foto: Equipe do longa-metragem “O Barulho da Noite” © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado-RS

O governador de Tocantins Wanderley Barbosa, do Republicanos, não veio a Gramado, mas dez fileiras do Palácio dos Festivais foram ocupadas por exuberante caravana do estado amazônico. Mais de cem pessoas chegaram à Serra Gaúcha para prestigiar a exibição de “O Barulho da Noite”, longa-metragem da estreante, na ficção, Eva Pereira. Nunca se viu tamanha mobilização em torno de um único filme nos 51 anos de história do festival gaúcho.

A diretora, eufórica e tomada por loquacidade incontrolável, comandou a caravana de conterrâneos trajando vestido vermelho colado ao corpo e carregando nas mãos a bandeira (também vermelha) do Divino Espírito Santo. Subiram com Eva Pereira ao palco seus atores Emanuelle Araújo, Patrick Sampaio, Mercês Campelo e as menininhas Alícia Santana e Ana Alice Dias (Marcos Palmeira, um dos protagonistas, não pôde comparecer por causa das gravações da série “Cidade de Deus”, no Rio). Subiram, também, ao palco produtores e equipe técnica.

As dez fileiras de amigos e apoiadores de “O Barulho da Noite” – primeiro longa do estado do Tocantins presente numa competição de Gramado – aplaudiram calorosamente o feito de Eva Pereira e sua trupe. Provocada pelo curta-metragista rondoniense Fabiano Barros (autor de “Ela Mora Logo Ali”, parceria com Rafael Rogante), Eva esclareceu que “os integrantes (da imensa caravana tocantinense) haviam pago suas próprias passagens para estar na Serra Gaúcha”.

Fabiano Barros, que também inscreveu Rondônia, pioneiramente, numa competição do mais badalado festival do país (a de curtas) contara minutos antes, no palco do Palácio dos Festivais, que sonhara trazer todos os integrantes de sua equipe para a noite de gala de seu filme, mas não conseguira. Promoveram “vaquinha”, que permitiu a participação de alguns deles, incluindo sua protagonista, a atriz Agrael de Jesus.

Outro curta, o capixaba “Remendo”, de Roger Ghil, e o longa documental “Da Porta pra Fora”, do brasiliense Thiago Foresti, protagonizado por três motoboys, complementaram a programação da noite, que começara sob emoção intensa.

De luto, as apresentadoras Marla Martins e Renata Boldrin evocaram a perda da atriz Léa Garcia, que morrera no hotel de Gramado, que a hospedava, justo no dia de em que receberia (junto com Laura Cardoso) o belo e prestigiado Troféu Oscarito.

Marcelo Garcia, filho da atriz, subiu ao palco vestido de branco, para receber – em nome da mãe – a láurea que ela mal aguardava a hora de receber. “Era isso que ela queria”, disse o câmera-man de TV. “Levar o Troféu Oscarito para casa. Lá do Orum (o céu espiritual dos Iorubá) ela está vendo tudo. E muito feliz”.

Filho de Léa Garcia, Marcelo Garcia, recebe o troféu Oscarito em homenagem a mãe © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

Todos os artistas que subiram ao palco evocaram “Dona Léa, que dedicou 70 de seus 90 anos ao teatro, cinema e TV”. Eva Pereira, que se definiu como mulher preta, foi a mais enfática. Seu filme, “O Barulho da Noite”, recebeu aplausos calorosos ao final da projeção (até porque a claque tocantinense era imensa). Mas, registremos, o filme tem méritos. Trata-se de estreia das mais promissoras. Eva entrou com garra no complexo mundo da ficção (antes realizara modestas série e filmes documentais).

O primeiro mérito é o enfrentamento de tema-tabu: o abuso sexual de criança dentro do ambiente doméstico. No caso, uma garotinha (Maria Luiza/Alícia Santana) pelo padrasto (Patrick Sampaio). Quando o filme começa, a protagonista tem sete anos e vive com a irmãzinha mais nova Rita (Ana Alice), num sítio perdido na zona rural de Tocantins, com o pai Agenor (Marcos Palmeira) e a mãe Sônia (Emanuelle Araújo). As duas crianças amam o pai, que tem com elas um relacionamento lúdico e constante.

Agenor, integrante dos cortejos da Folia, passará um mês fora, tocando tambor e visitando casas, sob a Bandeira do Divino. Antes de partir, receberá o sobrinho Athayde (Patrick Sampaio) para ajudar nas lides do sítio. Semanas depois, a pequena Maria Luiza sentirá no ar algo perturbador. Perceberá o interesse da mãe pelo visitante.

Dali em diante, o olhar da criança nos guiará por fatos de imensa intensidade, que se desdobrarão por mais de dois anos, marcados por nova edição da Folia de Reis. E pela tragédia do abuso infantil.

Cercada de profissionais dos mais experientes (a coprodutora Vânia Catani, atores tarimbados, pelo montador André Sampaio e pelo designer de som e mixador Bernardo Gebara), a novata Eva Pereira recorrerá a poderosas elipses e promoverá sensível diálogo com o cinema documental.

A presença de atores famosos (e televisivos) como Marcos Palmeira e Emanuelle Araújo não destoará da paisagem humana do sertão tocantinense. Com peles curtidas pelo sol e vestidos com roupas singelas, eles parecem mesmo gente da roça. Patrick Sampaio tem atuação discreta. As duas crianças, com olhos expressivos e preparadas por uma ‘coach’, enchem a tela de inocência. Mercês Campello, que interpreta a sogra de Sônia, rouba as cenas em que aparece, com seus olhos irônicos e, até, ameaçadores. É ela que parece conhecer os substratos mais profundos dessa história sertaneja. Sabe que a nora é “filha de lobisomem”. Ou seja, foi vítima de abuso sexual. E, “por sorte rara”, encontrara em Agenor (Marcos Palmeira), um bom marido.

No debate do filme – que não caiu no agrado geral –, Eva Pereira, nascida no interior profundo de Tocantins, e “ex-babá e doméstica”, contou que dedicou sete anos de sua vida a ouvir mulheres que passaram pela trágica experiência do abuso sexual. Escreveu várias versões do roteiro, até chegar à que foi filmada.

Entre os questionamentos dirigidos à equipe do filme, está o dos que não entenderam a passividade da personagem Sônia. Ela não toma nenhuma atitude para impedir o abuso sexual dentro de sua própria casa.

Eva foi categórica: “em projeção de um filme na zona rural, encontrei-me com uma criança de 11 anos, com um filho no colo. O pai do bebê era o pai dela”. Ligada a redes de solidariedade a mulheres vítimas de estupro, a cineasta assegurou ter encontrado muitas mães silenciosas. E narrou caso impressionante: “uma dessas mães entregou a filha estuprada para a avó criar e continuou vivendo com o marido estuprador e pai de seus outros quatro filhos”.

A diretora Eva Pereira e a atriz Emanuelle Araujo, no debate de “O Barulho da Noite” © Edison Vara/Agência Pressphoto

Emanuelle Araújo defendeu a passividade de sua personagem, a ‘filha do lobisomem’: “trata-se de um ciclo. Uma mãe solitária acaba aceitando que aconteça com a filha o mesmo que aconteceu a ela”. E acrescentou: “minha personagem sabe que se tomasse uma atitude seria pior, para ela e para a filha, ambas poderiam ser mortas. Nos deparamos com terrível ancestralidade nesse processo. Êxedra ancestralidade acaba passando de família em família. Para mim, aqueles silêncio e passividade de Sônia acabam funcionando como mecanismo de defesa”.

Para dar lastro às opções do filme, Eva Pereira contou que, em Tocantins, “um juíz proferiu sentença com argumento espantoso – ele disse que meninas de 11 ou 12 anos, hoje, parecem moças feitas, usam roupas provocantes e dançam na boquinha da garrafa”.

O montador André Sampaio e o designer de som Bernardo Gebara deram seus testemunhos em defesa das opções estéticas do filme, em especial do uso de elipses (não há violência gráfica no filme). Ambos acreditaram no uso sugestivo dos cortes temporais e nos sons que amplificam (na imaginação do espectador) o que não se vê nas imagens.

Motoboys candangos – Já o longa documental brasiliense “Da Porta pra Fora”, segundo entre cinco competidores na categoria, teve boa (mas modesta) recepção no Palácio dos Festivais. Afinal, foi exibido no fim da noite, encerrando um dia tenso, de luto por Léa Garcia e maratona iniciada com o longa sul rio-grandense “Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre”, de Boca Migotto, seguido de mais dois longas-metragens e dois curtas. E, ao contrário de Tocantins, o Distrito Federal não mobilizou caravana rumo a Gramado. Até porque outros filmes (curtas e longas) da capital federal já passaram pelo telão do Palácio dos Festivais.

O diretor Thiago Foresti contou que teve que recorrer a “vaquinha amiga” para trazer ao Festival de Gramado os motoboys Keliane, homoafetiva, lulista e moradora da Ceilândia; Sorriso, líder “sindical” de sua categoria, “isentão” e morador do Varjão, e Marcos, religioso e bolsonarista vindo do Paranoá.

Os três motoboys (Keliane prefere o termo masculino ao “motogirl”) subiram, felizes, ao palco do Palácio dos Festivais e revelaram encanto com a cidade gaúcha que jamais sonharam conhecer. Participaram, entusiasmados, do debate no dia seguinte.

O diretor Foresti justificou a escolha dos três como protagonistas do filme: “durante a pandemia, morando numa kitinete, eu olhava a cidade vazia e só via os motoboys fazendo entregas. Decidi procurar alguns deles para que participassem de um futuro filme. Solicitei a 30 deles que gravassem um vídeo sobre os desafios de sua profissão em momento tão difícil. Trinta responderam. Os melhores foram Keliane, Sorriso e Marcos”.

Para que os motoboys produzissem imagens de suas próprias experiências (e perrengues) em tempo de pandemia, Thiago Foresti prometeu cachê de 20 reais por cada gravação enviada. E deu liberdade total a seus “cinegrafistas” amadores. No debate do filme, ele deixou claro que desejava ter um motoboy bolsonarista em seu filme, pois “a realidade nos revelara que eles eram majoritários na categoria”.

O material produzido pelos três motoqueiros revela o mundo do “precariado” urbano brasileiro. De cada dez reais gerados por eles, de seis a sete vão para o aplicativo. Eles não têm seguridade social (nem em caso de acidentes, como os dois sofridos por Kelene). Por isso, Sorriso tornou-se líder “sindical” para buscar conquistas trabalhistas para ele e seus colegas. Mas o começo foi difícil: ele saiu do primeiro protesto organizado, junto a uma leva de quatro dezenas de colegas, como “indesejável”. Ou seja, sem renovação do cadastro na empresa.

Seguiu em sua luta e ele e os colegas conseguiram ser recadastrados. E continuaram botando a boca no mundo. Foram ao Congresso Nacional em busca de melhorias para sua categoria profissional. Continuam lutando. Politicamente, Sorriso posa de isento, fugindo da militância partidária.

Já Marcos, que coloca Deus acima de tudo e desdenha dos médicos (“quem cura é Deus”), acaba – depois de ver o pai vítima de Covid e internado por 30 dias – optando por tomar vacina. Mostrará, inclusive, descontentamento com a subida do preço da gasolina e com outras ações econômicas de Bolsonaro durante a pandemia. Mas, no debate, ponderou que, hoje, não seria mais um bolsonarista-raiz. Mesmo assim – resumiu – não quer saber nem de um, nem do outro” (Lula, no caso).

Elenco do longa-metragem documental “Da Porta pra Fora” © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

“Da Porta pra Fora”, que dura 84 minutos, conta com 70% de suas imagens e sons gerados pelos três motoboys. E 30% pela equipe do filme, que utiliza de imagens aéreas (produzidas por drones) para mostrar as imensas avenidas de Brasília, totalmente vazias. Cortadas, somente, por raros automóveis e diligentes motoqueiros. Na banda sonora, som pauleira criado por Sascha Kratzer e Rafael Maklon, e enriquecido pela “Mosca na Sopa”, de Raul Seixas, um hit dos motoboys organizados. “Essa gravação nos custou uma grana” – contou Thiago Foresti –, “mas não podíamos abrir mão dela, essencial ao nosso projeto”.

Os dois curtas da noite foram bem-recebidos. O primeiro, então, conquistou fãs ardorosos. “Ela Mora Logo Ali” (que ganharia muito se se chamasse “Dom Caixote”), vindo de Rondônia, tocou amantes da literatura e almas mais sensíveis. Isto por apostar no poder da imaginação despertado por um clássico literário – “Dom Quixote”, de Cervantes.

Embora a fotografia de “Ela Mora Logo Ali” seja lavada e, por isso, pouco misteriosa, o curta de Barros e Rogante encontra em sua protagonista (Agrael de Jesus) intérprete segura e carismática. Ela dá vida a uma mulher pobre, que vende salgadinho (filetes de banana) pelas ruas da cidade. Ao voltar para casa, senta-se ao lado de uma jovem leitora da obra de Cervantes. A vendedora analfabeta pede à moça que lhe resuma trechos das andanças de Dom Quixote e Sancho Pança. No que é atendida.

Ao chegar em casa, a vendedora reconta para um adolescente paraplégico o que escutara no ônibus. O roteiro, convincente e engenhoso, deixa em segundo plano a falta de elaboração formal do filme.

Já o “Remendo” capixaba provocou risos por sua irreverência e diálogos inusitados. O diretor/diretora Roger Ghil se define como “mão de feitiço e macumbeira”. E mais: “bacharela (e mestranda) em Audiovisual pela UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), dedicada aos estudos anticoloniais e religiosidades diaspóricas”. E vocacionada a “desobediências de gênero”.

Pois o diretor (diretora) desobediente (a gêneros de todas as naturezas) cumpriu sua promessa: fez um filme protagonizado por Zé (Elídio Neto), homem preto, que carrega um fardo. E que insiste, em sua interação com pessoas que o cercam, a tentar remendar coisas velhas. Mesmo sabendo que para estas muitas coisas, não há como dar jeito.

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