CineBH mostra parturiente desassistida, motoqueiros periféricos e comunidade queer cubana na gelada Moscou
Foto: “Las Preñadas”, de Pedro Wallace © Matias Castillo e Guilherme Peraro
Por Maria do Rosário Caetano, de Belo Horizonte-MG
Argentina e Cuba ocuparam espaço nobre nas duas principais mostras da décima-sétima edição da CineBH, festival de cinema de Belo Horizonte – a Território, competitiva, e a Continente, informativa, ambas dedicadas ao cinema latino-americano.
Dois longas argentinos – a ficção “Las Preñadas”, de Pedro Wallace, e “Moto”, documentário de narrativa livre de Gastón Sahajdacny – somaram-se ao cubano “Llamadas desde Moscú”, de Luís Alejandro Yero. Este também definido como documentário, embora adote procedimentos típicos do cinema ficcional ou performático-encenado.
“Las Preñadas” (“As Emprenhadas”, para preservar a intenção do diretor, que evitou o suave “embarazadas/grávidas”) é fruto de parceria entre Argentina e Brasil (no caso Londrina). A história se passa na fronteira entre os dois países sul-americanos, na altura do Paraná. Do lado argentino está a cidadezinha de San Antonio de la Frontera. Do brasileiro, Santo Antônio do Sudeste.
Carmela (a brasileira Marina Merlino) e Juana (a sergipana Ailín Salas, radicada em Buenos Aires desde a infância) vivem na periferia de San Antonio de la Frontera. Ambas estão grávidas e se conhecem superficialmente. Carmela tem apenas 20 anos e espera o quarto filho. Sente as primeiras contrações do parto iminente e não tem a quem pedir socorro. O marido não vê o gravidez da mulher como problema dele.
As crianças brincam. Convocada, Juana, de 30 anos, mais experiente e cheia de iniciativa, vem ajudar Carmela. Sem dinheiro, as duas caminham por longo trecho de estrada em busca de socorro. Ao chegar ao centro hospitalar, ficam sabendo que os médicos estão em greve. Uma plantonista deverá atendê-las. Que aguardem. A doutora avisa que Carmela tem quatro centímetros de dilatação, mas que nada pode fazer, pois não é obstetra. E este profissional está em falta.
As duas mulheres “embarazadas” (emprenhadas por maridos indiferentes) saem em busca de alternativa. Nova caminhada se processa nesse “road movie à pé”, como o define Pedro Wallace. Mais um posto médico é visitado e não prestará o atendimento devido a Carmela. De volta à estrada, as duas mulheres terão, elas mesmas, que encontrar solução para o problema.
A atriz Marina Merlino, que representa o filme na CineBH, lembrou que o diretor e roteirista Pedro Wallace trabalhou em ONG voltada aos cuidados com adolescentes grávidas e pesquisou o assunto com empenho. Obteve inúmeros relatos sobre mulheres da periferia que, sem encontrar assistência hospitalar, tiveram seus filhos em condições muito adversas.
A brasileira defendeu o título do filme, escolhido desde o início e “com muita convicção” pelo realizador argentino. “Ele optou por ‘preñadas’, que contém sentido bestial, por entender que aquelas mulheres são realmente emprenhadas por seus maridos, homens não se sentem corresponsáveis pelo nascimento dos filhos”.
Marina espera que a tradução brasileira do título dessa coprodução entre as (pequenas) empresas Masa Latina (Argentina) e Kinopus (Londrina-PR) preserve sua dureza. Ou seja, que não se recorra ao suave “Grávidas”. Afinal, as duas mulheres caminham (uma com barriga de nove meses e a outra de sete) em busca de atendimento médico que não lhes será lhe proporcionado.
O projeto do filme é dos mais instigantes, o tema original. Mas falta garra à narrativa. O clima de suspense proposto – com crianças trancadas em casa (não há com quem deixá-las), os cães amedrontadores na beira da estrada (eles apavoram Carmela) e, principalmente, as ameaças de desordeiros (por causa de dívidas do marido de uma delas) – não se impõe com a força necessária.
“Las Preñadas” não integra a disputa pelo Troféu Horizonte. Nessa condição estão os documentários “Moto” e “Llamadas desde Moscú” (Chamadas de Moscou).
“Moto” apresenta a paixão de jovens pelas motocicletas (e também de crianças, que participam felizes de encenação teatral cavalgando motocas imaginárias). A relação dos jovens motoqueiros com o território (a cidade de Córdoba, na Argentina) é vista sempre por ruas movimentadas. Jamais cenários-cartões postais.
Segunda maior metrópole argentina (1,3 milhão de habitantes; Buenos Aires conta com mais de 3 milhões), a Córdoba de “Moto” serve como espaço de trânsito permanente para Mariano (Mariano Conejo) e Constanza (Constanza Gatica). Ele é um vendedor ambulante de toblerrones.
O diretor Gastón Sahajdacny, que veio mostrar e debater seu filme na CineBH, contou que acompanhou seus personagens ao longo de sete anos. Mas que ninguém espere grandes mudanças, nem alterações significativas na trama. O cabelo de Constanza é a marca mais visível do passar do tempo. Ela é vista como uma espécie de Jean Seberg (do “Acossado” godardiano), com cabelos louros e curtos. Depois (ou antes?) com fios escuros e corte raspado na altura das orelhas (arrematado por rabo comprido).
No começo, o filme aborda a dura vida dos motoqueiros da periferia, vítimas do “gatilho fácil” (não confundir com “bala perdida”). Gastón deixou claro: “fiz um filme sobre a criminalização da pobreza”. Por isso, mostrou “os crimes de Estado”. O Estado que usa seu braço armado, a Polícia (do “gatilho fácil”) para matar jovens periféricos. Há, inclusive, imagens documentais de manifestações de centenas de motoqueiros em protesto contra a morte de colegas. Todos vítimas do “gatilho fácil”.
“Moto”, porém, resulta em um filme pudico, romântico, quase idealizado. Vê-se que Mariano é um jovem mestiço, que usa roupas singelas, trabalha como vendedor de rua e utiliza motocicleta bem modesta. Enfim, um rapaz da periferia. Já Constanza tem gestos finos, pele e cabelos bem cuidados, às vezes lembra uma ‘patricinha’.
Gastón confirmou que a jovem vem, sim, de outra classe social. E que ele quis, nessa sua contida ‘love story’ sobre rodas, criar “possibilidade utópica de diálogo de classes”.
O cineasta argentino só não explicou por que dois jovens com os hormônios em polvorosa são tão pudicos. Insinuam um beijo, que não ganha concretude. Saiu-se, quando provocado, pela tangente: “há outras formas de encontro, aquelas que não há necessidade de se mostrar”.
Ao contrário de “Moto”, o cubano “Llamadas desde Moscú” não se propõe à contenção. Seu propósito é mostrar a vida ‘queer’ de quatro cubanos que deixam a Ilha natal, atormentada por grave crise econômica (com a pandemia, o turismo desmantelou-se e as divisas estrangeiras quase desapareceram).
O cineasta Luis Alejandro Yero, de 33 anos, está na CineBH. Muito articulado (é professor da Escuela de Cine de San Antônio de los Baños, nos arredores de Havana), ele deu respostas elaboradas a cada questão posta no debate que sucedeu a exibição do filme.
Primeiro, um breve resumo da trama do documentário (muito livre) que ele construiu numa gelada Moscou: quatro gays cubanos se utilizam da “dispensa de visto” para viajar à capital russa. E vão parar na terra de Vladimir Putin, governante tido e havido como muito hostil aos homossexuais.
Ao longo de 66 minutos, veremos a “comunidade queer cubana sediada em Moscou” em conversas telefônicas com parentes e compatriotas. A elas serão somadas notícias sobre a rebelião de artistas contra o governo da Ilha (graças aos onipresentes celulares) e performances musicais. Para estas, traje de couro vermelho, arrematado em plumas da mesma cor, se mostrará adereço de vital relevância.
Yero forneceu dados contraditórios como sua “complexa Cuba natal”. Depois de dizer que seu país passou pelo maior êxodo populacional de sua história” (estimou em 500 mil exilados recentes, numa população de 11 milhões de habitantes), o cineasta contou que os governos de Raul Castro, irmão de Fidel, e de seu sucessor Miguel Días-Canel, estabeleceram legislação de vanguarda no que diz respeito aos Direitos dos Homossexuais.
“Nossas leis, aprovadas nos últimos anos, permitem o ‘poli-casamento’, a adoção de bebês por casais LGBTQI+ e a ‘gestação solidária’”. Cuba – acrescentou – “transformou-se, num paraíso para o turismo gay”. Oferece, até, “imensa casa noturna queer postada em frente ao prédio que sedia o Conselho de Estado”. Mas – protestou – “a legislação do país, que pratica capitalismo de Estado dos mais autoritários, prevê detenção por dois dois anos a quem ofender o presidente”.
Dos quatro cubanos gays – que aproveitaram a rota do “único país do mundo a franquear entrada sem visto em seu território” (herança de laços profundos com a desmantelada URSS) – um é preto, outro mestiço e dois brancos. Em condição ilegal, eles vivem de bicos. E cultivam sonhos que não incluem o país eslavo como morada definitiva. Aliás – lembrou Yero –, “muitos viajam sem saber quase nada sobre a Rússia”.
O filme abordará, mesmo sem aprofundamento, tema da maior importância: os cubanos que deixam sua ensolarada ilha caribenha rumo a um país gelado (Moscou é vista coberta de grossas camadas de neve) o fazem na esperança de chegar, a partir do Leste Europeu, a países da Europa Ocidental (Alemanha, por exemplo). Mas como o visto só vale para a Rússia, não podem se deslocar livremente para os países que cobiçam. Os que ousam tomar rotas ilegais “são rejeitados e punidos com pesadas multas na Macedônia do Sul, na Sérvia e enviados para o Kosovo”.
No debate, Yero revelou o dispositivo adotado para “Llamadas desde Moscú”: “aluguei um apartamento que seria o cenário único das conversas dos cubanos com seus interlocutores”. Tal opção foi justificada: “não teríamos como filmar nos pequenos apartamentos onde alguns deles viviam, habitados por até dez pessoas”.
As imagens do filme – assinadas pela fotógrafa Maria Grazia Goya – são bem cuidadas, os personagens interessantes, mas a complexidade do tema e o contraste entre dois países tão diferentes (Cuba e Rússia) mereciam tratamento mais aprofundado. Como “Llamadas desde Moscú” foi realizado em fevereiro de 2022, data do início da Guerra da Rússia contra a Ucrânia, a influência do conflito na trama é tênue.
Os três filmes da terceira noite da Mostra CineBH não apresentaram as mesmas qualidades dos vigorosos “El Reino de Diós” (México) e “Guapo’y” (Paraguai). Nem as provocações do inusitado “Outro Sol” (Chile).
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