Revólver, pinga e limão alimentam os homens solitários de “Oeste Outra Vez”, representante de Goiás em Gramado

Foto: Equipe de “Oeste Outra Vez” © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)

“Oeste Outra Vez”, segundo longa-metragem do goiano Erico Rassi, teve boa recepção no Festival de Gramado. E motivou debate dos mais calorosos.

O filme, um western povoado por homens brutos, é protagonizado por Ângelo Antônio, Rodger Rogério, integrante do Pessoal do Ceará, e Babu Santana. O paraibano Daniel Porpino e o amazonense Adanilo compõem carismática dupla de coadjuvantes.

Os atores (menos Adanilo, que grava a novela “Volta por Cima”, na Globo, e Antônio Pitanga) subiram ao palco do Palácio dos Festivais junto com o diretor e suas produtoras, para representar, pela primeira vez, o estado de Goiás numa disputa pelo Troféu Kikito (de melhor ficção brasileira).

Se “O Clube das Mulheres de Negócios”, de Anna Muylaert, longa-metragem que abriu a competição, tem elenco essencialmente feminino, o western goiano caminha em direção oposta. É povoado por homens violentos, que usam armas de fogo e se nutrem de garrafas e mais garrafas de pinga. Sem esquecer o limão-e-sal, complemento permanente.

As mulheres estão presentes nos desejos e pensamentos desses seres embrutecidos e são evocadas por eles em falas rarefeitas, quase tautológicas. Há brevíssima, fugaz, aparição de Luiza (Tuanny Araújo), mulher vista de costas, afastando-se do quadro, enquanto dois homens (seu ex-marido, Totó-Ângelo Antônio, e Durval-Babu Santana, o atual) se enfrentam como dois cowboys de um Oeste sem amanhã.

Aos diálogos mínimos, o diretor-roteirista somou paisagens de horizonte infinito e imagens cor-de-terra. O filme parece adotar pegada realista. Mas o que vemos é um mundo irreal. Só há homens na narrativa. Não há mulheres, nem crianças em seus lares sujos. Nem prostitutas vendendo sexo nos puteiros de estrada.

Num filme realista, mulheres seriam abandonadas com penca de filhos e trocadas por outras mais novas. Ou seus maridos seriam vistos bebendo doses industriais de cachaça e fazendo sexo com putas baratas, a cada nova noite.

Erico Rassi, de 52 anos, escreveu e reescreveu o roteiro sozinho. E optou por recorte singular. Inseriu seus personagens num mundo isolado e de população rarefeita. Homens que só acreditam na força das armas de fogo para resolver suas perdas amorosas. Tudo embalado por românticos e lacrimosos boleros de Nelson Ned, Moacir Franco e Nilton César.

A narrativa começa com socos e pontapés de Durval desferidos contra Totó. A mulher deste, ao abandoná-lo, fora viver com o agora agressor. Totó resolve, então, contratar um pistoleiro (ou “capanga”) para dar cabo do desafeto.

Entra em cena a personagem de Rodger Rogério, pistoleiro crepuscular, que se dispõe a assumir o novo serviço. O que virá, dali em diante, evoca clássicos do western norte-americano. Mas aclimatados ao Brasil Central, subdesenvolvido, pobre, empoeirado. Sem esquecer a face rica e opulenta do celeiro do agronegócio. Veremos, de forma recorrente e subliminar, a imagem de grandes carretas, que transportam soja e milho, gerando as inacreditáveis fortunas do nosso Oeste graneleiro.

No debate do filme, Érico Rassi, apaixonado por pistoleiros (vide seu longa de estreia, “Comeback”, 2017), citou duas fontes de diálogo intencional na concepção de seu novo trabalho — “Rio Bravo” (Hawks, 1959) e  os contos do livro “Sagarana” (Guimarães Rosa, 1946). Citou também os western-spaghetti de Sergio Leoni, para ponderar que nos filmes deste diretor, a violência constitui “mecanismo de força” dos personagens. Já em “Outra Vez o Oeste” (uma variação explícita de “Era uma Vez no Oeste”), a violência é utilizada por homens brutos que não conseguem lidar com suas fragilidades. Ao serem abandonados por suas mulheres, não lhes passa pela cabeça o exercício da tolerância. Armam-se (ou recorrem a homens armados) e voltam-se uns contra os outros.

A escolha do elenco trazia duas opções das quais o diretor não abria mão: Nelson Xavier, o protagonista de “Comeback”, e o mineiro, de Curvelo, Ângelo Antônio. Afinal, um nome muito ligado a histórias de Goiás (vide “Dois Filhos de Francisco” e “O Tronco”). Caberia a eles compor a dupla de protagonistas.

Com a morte de Nelson Xavier (1941-2017), Érico ficou desolado. Ouviu muitas sugestões até decidir-se pelo cearense Rodger Rogério, que interpretara um violeiro em “Bacurau”. A escolha de Babu Santana, do baiano Antônio Pitanga (que vive um Velho isolado e cercado de centenas de garrafas de aguardente), Daniel Porpino e Adanilo brotou do desejo de trabalhar com atores de diversas regiões do país. O resultado é dos mais satisfatórios.

Todos os atores de “Oeste Outra Vez” rendem muito. No debate, Babu brincou: “havia a facilidade de não ter muito texto para decorar, pois os diálogos são rarefeitos”. Em compensação, “o número de vezes que fizemos e refizemos cada sequência, vocês nem podem imaginar. Chegamos a filmar 17 takes de uma cena, e Erico só se dava por satisfeito no último”.

O diretor brincou: “Babu está traumatizado até hoje” (as filmagens aconteceram no município goiano de São João da Aliança, na Chapada dos Veadeiros, em 2019). O ator garantiu que estava brincando, pois adorara a experiência comanda pelo cineasta goiano.

Os elogios à fotografia (de André Carvalheira, profundo conhecedor do Cerrado), à montagem (de Leopoldo Nakata, que trabalhou com Érico Rassi por dois longos anos) e à direção de arte (de Carol Tanajura) se multiplicaram no debate. Fãs empedernidos do western viram no filme “um favorito ao Kikito de melhor longa-metragem ficcional”.

Cristiane Miotto, que representou a Vietnã Filmes, a Panaceia e a Rio Bravo, trinca de produtoras parceiras, é companheira matrimonial e profissional de Erico Rassi. Ela, em parceria com Lidiana Reis, não mediu esforços para que tudo corresse bem nas locações empoeiradas e desertas de “Oeste Outra Vez”. Mas garantiu não tratar-se de uma grande produção. “Na verdade, fizemos o filme em moldes artesanais”.

Erico Rassi, que nasceu em Anápolis e estudou Publicidade em Goiânia, vive hoje em São Paulo. De publicidade. Mas sempre sonhando com o cinema e com cenários que registrem os horizontes largos do Brasil Central, onde nasceu, cresceu e cursou universidade. “Comeback” foi realizado no município anapolino. “Oeste Outra Vez”, 300 km Cerrado adentro.

O lançamento do filme está previsto para os primeiros meses de 2025. Depois de representar Goiás na disputada tela do Palácio dos Festivais, a saga dos homens brutos do Oeste percorrerá outras mostras e festivais brasileiros. Com seus personagens armados e encharcados de pinga, limão e sal.

Equipe do curta “Pastrana” © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

FLASHES

OS SEIS PRIMEIROS CURTAS — A turma do curta-metragem (competição brasileira) uniu forças, brigou e conseguiu o que queria: mostrar seus filmes na telinha do Canal Brasil, projeto nascido neste ano emergencial, mas também (e presencialmente) no Palácio dos Festivais. Conseguiu mais ainda: enviar representantes, mesmo viajando por conta própria, de ônibus, carro ou avião. As seis equipes da primeira noite dedicada ao formato curto subiram ao palco com dois ou três integrantes (cada uma). O ator (e agora diretor) Adanilo não pôde estar em Gramado para mostrar “Castanho”, nem se ver como ator no longa “Oeste Outra Vez”. Mas se fez representar pela atriz Rosa Malagueta e por seus produtores. “Toda Manaus e comunidade do Castanho está lá na Amazônia torcendo por nós”, garantiu a despachada Malagueta. Os curta-metragistas conseguiram, também, horário na apertada programação gramadiana, para debater seus filmes com o público.

DEBATE ANIMADO — Os outros curtas concorrentes da noite foram “Maputo”, de Lucas Abrahão (SP), “Ponto e Vírgula”, do carioca Thiago Kistenmacker, “A Casa Amarela”, do paranaense Adriel Nizer, “Via Sacra”, do brasiliense João Campos, e “Pastrana”, dos gaúchos Melissa Brogni e Gabriel Motta (esse, vencedor, em dezembro do ano passado, do Festival de Brasília). Não há, no regulamento de Gramado, exigência de ineditismo para essa categoria, nem incômodo em selecionar filme já laureado com o prêmio máximo em outro festival. Estão, pois, os seis na disputa pelo Troféu Kikito de melhor curta, melhor direção, roteiro, fotografia, atores etc. A safra, registre-se, é de alta qualidade. Outro programa com mais seis curtas completa a maratona.

HOMOAFETIVIDADE E ALZHEIMER — O curta “Ponto e Vírgula” mostra o amor de dois homens já sexagenários. Wilson Rabelo e Buda Lira, os protagonistas, dão um show. Mesmo caso da artista visual e performer curitibana Kátia Horn, que interpreta uma senhora com Alzheimer. Perdida, ela procura por uma casa amarela. Ninguém dá atenção à “velha doida”. Que só encontrará a solidariedade em um motoboy, que vive distante da família, interpretado por Matheus Moura. “Via Sacra” se constrói com plano-sequência que registra a saga de sua protagonista, a afro-brasileira Gleise (Gleise Firmino). Em louco périplo pela capital brasiliense, ela tem necessidade de chegar, com a maior urgência possível, a um hospital. “Maputo” reúne meninos dispostos a passar por grandes desafios e, ao superá-los, transformar-se em alguém capaz de controlar o vento. Os garotos dão conta do recado e o filme mostra engenho e arte. “Pastrana” é uma homenagem lisérgica à memória do adolescente Pastrana, que perdeu a vida praticando o que mais amava, o downhill (skate em perigosas ladeiras). A homenagem é feita por Mel Brogni, ela mesma tricampeã desse arriscado esporte, e por Gabriel Motta.

PESSOAL DO CEARÁ — O compositor Rodger Rogério, que completou 80 anos em janeiro último, tornou-se conhecido como um dos integrantes do coletivo musical Pessoal do Ceará, que sacudiu Fortaleza e o Brasil, ao longo da década de 1970, unindo Belchior, Ednardo, Fagner, Fausto Nilo, Chico Pontes e outros. Letrista inspirado, Rodger permaneceu em seu Ceará natal, enquanto seus companheiros migravam para o Sudeste. Continuou compondo e cantando nos mais diversos palcos. Um dia, a clã dos Cariry, devotado ao cinema, o convocou para o elenco de filmes como “A Saga do Guerreiro Alumioso” e “Cine Tupi” (ambos de Rosemberg) e “O Grão” (de Petrus Cariry). Novos convites viriam. Inclusive para interpretar o cantador Carranca, em “Bacurau” (Kleber Mendonça e Juliano Dornelles). Aí, o que o compositor não esperava aconteceu: foi convocado a protagonizar, junto com Ângelo Antônio, o filme goiano “Oeste Outra Vez”. E não é que se saiu muito bem! Soube  incorporar personagem dos mais difíceis — um velho pistoleiro convocado a matar desafeto de seu contratante. Um pistoleiro que porta arma de fogo, claro, jamais um violão. Um bruto do oeste empoeirado do Brasil Central, em tudo oposto ao gentil músico cearense.

ANTONIO SAURA — As atividades do Gramado Film Market seguem a todo vapor. Nessa quarta-feira, 13 de agosto, o produtor espanhol Antonio Saura, filho do cineasta Carlos Saura (1932-2023), participará do painel “Distribuição & Coproduções Internacionais”. Com ele, em mesa de negócios, que acontecerá no Museu do Festival de Gramado (das 14h às 18h) estarão Paola Wink, Jessica Luz e Fernando Muniz. Outro painel, previsto para a mesma tarde, discutirá o tema “Mercado & Festivais de Cinema” com a alemã Mariëtte Rissenbeek. Como Gramado está festejando o Bicentenário da Imigração Germânica rumo à Serra Gaúcha, um painel discutirá futuras “Coproduções entre Brasil e Alemanha” com o cineasta Ansgar Ahlers (“Os Filhos de Bach”) e as brasileiras Liliane Sulzbach e Luciana Dollabella.

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