“Arca de Noé”, inspirado em poemas e canções de Vinícius, constrói-se como filme de ação frenética

Por Maria do Rosário Caetano

Os poemas que Vinícius de Moraes dedicou aos infantes e que, musicados, deram origem a dois discos de imenso sucesso (“Arca de Noé 1” e “2”) são, agora, fonte de candidato a blockbuster – o longa animado “Arca de Noé”, do brasileiro-baiano Sérgio Machado e do peruano-brasileiro Alois Di Leo.

Quem estiver esperando um filme bossa nova, no embalo de “voz-banquinho-violão-e-imagens”, vai decepcionar-se. O projeto de Sérgio Machado, que teve Walter Salles na retaguarda (tanto na fase de concepção, quanto na produção), assemelha-se às animações que batem recorde de bilheteria, mundo a fora. Tem ação incessante e frenética, diálogos rápidos e descolados, personagens buliçosos e, felizmente, muita música de qualidade.

Os protagonistas do filmes são dois ratinhos – Tom, um guitarrista talentoso e pragmático, e Vini, um poeta romântico e sonhador. Tom & Vinícius, claro. Homenagem mais que justa. Eles formam dupla carismática e caótica. Mais caóticos se tornarão quando souberem que bíblico dilúvio está por descer sobre a terra. E que as tempestades vão durar 40 dias. O ancião Noé é incumbido de selecionar um macho e uma fêmea, de cada espécie animal, e com eles abarrotar uma arca. A famosa Arca de Noé, tema de tantos filmes, inclusive hollywoodianos.

A dupla, portanto, será obrigada a separar-se. Tom conseguirá entrar na arca salvadora. Mas Vini, o poeta sonhador, ficará de fora. Por sorte, ele contará com a ajuda de uma barata muito da engenhosa e, também, com auxílio extra do Destino, para juntar-se ao amigo.

Durante a viagem da Arca de Noé, haverá brigas por espaço, por alimentos, por tudo. Um frenesi daqueles. Os animais mais fortes tentarão se impor sobre os mais fracos. Na arca, os ratinhos terão que enfrentar o Leão Baruk (voz de Lázaro Ramos), controlador como ele só. E Baruk agirá como um êmulo de Odorico Paraguaçu, pois seu palavreado é fincado na retórica e recheado de “apenasmente” e assemelhados. Deliciosas “baianices” de Sérgio Machado, que recorreu à hilária dupla Ingrid Guimarães e Heloísa Périssé para ajudá-lo no roteiro.

Num filme protagonizado por ratinhos-compositores, haveria de brotar a ideia de um concurso musical. Todos os bichos vão interessar-se pela disputa. Eis que surge a oportunidade de Tom & Vini, que são os melômanos do pedaço, se destacarem.

Essa trama renderá 101 minutos de agitação e quiprocós. E canções muito conhecidas por quem foi criança nos anos 1980. Caso de “O Pato” (não confundir com o sucesso da Bossa Nova!), aquela do “Pato pateta/ pintou o caneco/ surrou a galinha/ bateu no marreco), de “A Casa” (“Era uma casa, muito engraçada/ não tinha teto/ não tinha nada”), e da “Valsa da Menininha” (“Menininha do meu coração/ Eu só quero você a três palmos do chão/ Menininha, não cresça mais, não/ Fique pequenininha na minha canção”).

As músicas têm arranjos e intérpretes contemporâneos (ver lista abaixo). A que chama mais atenção resulta em vibrante e explosivo número carnavalesco (“Galinha D’Angola”, a cargo da usina sonora do Baiana System e de Larissa Luz). Um número, registre-se, digno de empolgar desfile na Passarela do Samba. E detalhe, Sérgio Machado ousou acrescentar música, cuja letra traz sua assinatura, às criações de Vinícius e parceiros: a nordestina “Bode Severino”, interpretada pelo paraibano Chico César.

Para dar conta desse filme censura ultralivre, mix de ação, humor e poesia musical (como os dois discos, esse longa-metragem tem a criançada como público-alvo), Machado e parceiros buscaram know how na Índia.

O gigante asiático, que produz mais de mil filmes por ano, em mais de 15 línguas, vem se transformando em potência do cinema animado. Com farta e qualificadíssima mão-de-obra, somada a alto desenvolvimento tecnológico, o “I” dos Brics (acrônimo para o bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) vem prestando serviços a animadores de todo o mundo. Com imenso atraso, produtores brasileiros descobrem esse parceiro privilegiado.

“Arca de Noé” é uma das produções mais caras da história do cinema brasileiro. Os irmãos Fabiano e Caio Gullane, que carregaram a “Arca de Noé” com feérico entusiasmo, dão o valor: US$ 6 milhões. E justificam a necessidade de quantia tão volumosa para os padrões brasileiros (nos EUA, um grande filme animado chega a custar US$ 100 milhões, mas o país dispõe do mercado planetário): “a complexidade das produções de animação”, pois “elas se processam ao longo de anos e mobilizam milhares de profissionais (os créditos do filme lembram os de épicos bíblicos em live action de Hollywood)”.

“Nosso filme” – pondera a Gullane –, “por misturar elementos 3D e 2D, nos custou anos de trabalho e mobilizou mais de 1.500 profissionais no Brasil e na Índia”.

A sorte está lançada. Resta saber se a “Arca de Noé” conseguirá singrar o tenebroso oceano da exibição comercial. Se será capaz de quebrar a escrita das animações brasileiras, sempre atormentadas por bilheterias modestas. Só Maurício de Souza e sua Turma da Mônica conseguiram êxito (relativo) nesse terreno, o cinematográfico.

“As Aventuras da Turma da Mônica”, produção de 1982, conseguiu romper a barreira do milhão de ingressos (aproximou-se de 1,2 milhão de espectadores). Mas aqueles eram outros tempos. Dessa vez, o desafio coletivo de Machado e Di Leo, Gullane, Videofilmes, dos indianos e da parceira estadunidense CMG (que ajudou na captação de recursos) assume dimensões bíblicas.

 

Arca de Noé
Brasil-Índia, 2024, 101 minutos
Direção: Sérgio Machado e Alois Di Leo
Roteiro: Sérgio Machado e colaboradores
Canções: Vinícius de Moraes e parceiros
Trilha sonora original: Mario Caldato, Beto Villares, Roberto Schiling, Érico Theobaldo e Phill Pinheiro
Direção de arte: Bruno Gondin Luna
Vozes: Rodrigo Santoro, Marcelo Adnet, Alice Braga, Lázaro Ramos, Júlio Andrade, Bruno Gagliasso, Débora Nascimento, Giovanna Ewbank, Ingrid Guimarães, Heloisa Perissé, Gregório Duvivier, Eduardo Sterblitch
Produção: Videofilmes, Gullane, CMG
Coprodução: Symbioses, Globo Filmes, Telecine e Imagem
Distribuição: Imagem Filmes

 

As canções e seus intérpretes (no filme)

.“A Casa” (abertura), “Menininha”e “Cachorrinha”- cantadas por Rodrigo Santoro e Marcelo Adnet
. “O Pato” – cantada por Baiana System e Russo Passapusso
. “Galinha D’Angola” – cantada por Baiana System e Larissa Luz
. “O Relógio”, por Rodrigo Amarante
. “A Corujinha” – cantada por Adriana Calcanhoto
. “O Leão”, por Marcelo Adnet
. “Os Bichinhos e o Homem”, cantada por Rodrigo Santoro e Céu
. (*) “Bode Severino”, cantada por Chico Cesar (esta é da lavra de Sérgio Machado, autor da letra)
. “A Casa”, interpretada, pela segunda vez, no final do filme, por Mariana de Moraes, atriz-cantora-neta de Vinícius, por Rodrigo Santoro e Marcelo Adnet

 

FILMOGRAFIA
Sérgio Machado (Salvador, Bahia, 19 de setembro de 1968)

2024 – “A Arca de Noé” (com Alois Di Leo *) – animação
2024 – “3 Obás de Xangô” (doc)
2023 – “Rio do Desejo” (ficção)
2020 – “Neojiba – Música que Transforma” (doc)
2019 – “Irmãos Freitas” (doc)
2015 – “Aqui Deste Lugar” (doc)
2015 – “Tudo que Aprendemos Juntos” (ficção)
2010 – “Quincas Berro d’Água” (ficção)
2005 – “Cidade Baixa”
2001 – “Onde a Terra Acaba” (doc)

* “Arca de Noé” é o primeiro longa de Alois Di Leo.

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