No tempo de Wenders

Nas décadas de 1970 e 80, o cineasta Wim Wenders tornou-se referência no circuito cinéfilo, principalmente por seus filmes de estrada (road movies): “Paris Texas” (1984) vem de imediato à mente. Mas o melhor Wenders é o dos anos 70, com a trilogia “Alice nas Cidades” (1974), “Movimento em Falso” (1975) e “No Decurso do Tempo” (1976). Com liberdade para criar, fora das exigências da indústria, nesses três filmes, Wenders alcança o máximo que o cinema, como expressão artística, pode oferecer: conciliar forma e conteúdo numa síntese dialética que propicia ao mesmo tempo contemplação estética e reflexão sobre o mundo e a vida. Dessa trilogia essencial, a Vinny Filmes faz o relançamento de “No Decurso de Tempo”. O mais longo dos três (169 min.), o mais refinado, no plano estético, e indagativo, no que se refere à condição existencial.

Bruno Winter (Rüdger Vogler) é um técnico que conserta projetor de filmes. Em um caminhão casa ele trafega pelas estradas da antiga Alemanha Ocidental e visita cinemas às moscas em pequenas cidades para fazer reparos técnicos. Trata-se de uma atividade quixotesca, pois os filmes projetados praticamente não serão vistos. Os diálogos de abertura e encerramento carregam uma mensagem melancólica: o cinema, como espaço de culto da arte das imagens em movimento, assemelha-se a ruínas de uma civilização perdida no tempo. Um pôster de Fritz Lang ao fundo, no diálogo final com a dona de um cinema vazio, reflete um fragmento de memória de uma época cujo sentido se diluiu com o decurso do tempo.

Em preto e branco, “No Decurso do Tempo” (Im Lauf der Zeit) atualiza certa reflexão sobre certo culto, certa ritualização em torno do cinema. Uma ritualização que diz muito sobre uma época, assim como a pintura holandesa na época de Rembrandt. Na tela, ambas, os sinais de um período áureo e os de decadência. Mas Winter não está sozinho, ele encontra na estrada – mais precisamente no rio Elba, fronteira entre as duas Alemanhas – o pediatra Robert Lander (Hans Zischler), que tenta o suicídio depois da separação da mulher. Lander, então, o acompanha no rumo incerto que trilha. Entre os dois, uma relação lacônica. Winter, solitário e fleumático, não faz perguntas; intui a condição de Lander e o acolhe. Lander, sanguíneo, não esconde o quanto a situação em que se encontra o angustia. O encontro na estrada entre esses dois homens de temperamentos distintos faz de “No Decurso de Tempo” um filme que acentua como é pouco porosa a verbalização de afetos, sensibilidades. Mas, na mesma proporção, com pequenos gestos, olhares, diz muito sobre o sentimento de cumplicidade, camaradagem nas relações humanas. Winter não se interessa pelo passado de Lander, o que o incomoda, mas lhe faz uma pergunta em tom filosófico: quem você é? E recebe como resposta: eu sou a minha história. Com isso, só a vida e o que fazemos dela é o que conta, pois a morte não existe.

Wenders, que estudou filosofia, tem domínio do tema. O roteiro, escrito por ele, evidencia a influência do existencialismo. Mas “No Decurso do Tempo” é uma obra de arte. Nesse sentido, uma poiesis para quem vê o cinema como philia (amizade, amor), palavra grega que o individualismo moderno destituiu de sentido. Uma poiesis que expressa amor pelo cinema e mostra na tela o sentido da amizade entre Winter e Lander.

 

Por Humberto Pereira da Silva

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