Bernardet, o polemista, garantiu, na Revista de CINEMA, 22 anos atrás, que “os argentinos dão um banho nos brasileiros”

Foto: “Esperando o Messias”, de Daniel Burman

Por Maria do Rosário Caetano

Jean-Claude Bernardet foi sempre um provocador. Um acadêmico (na UnB, depois na USP) nada acadêmico. Uma alma inquieta, com perfil de polemista.

Vinte e dois anos atrás, na Revista de CINEMA, ele publicou um de seus textos mais incisivos. E deu “nome aos bois”, como fazia, inclusive, cara a cara com o criticado.

No artigo aqui republicado – “Os Argentinos Dão um Banho nos Brasileiros” (número 34, fevereiro de 2003) —, Bernardet provocava Tata Amaral, Walter Salles e Suzana Amaral. E a si mesmo, pois era autor do argumento e co-roteirista de “Através da Janela”, segundo longa-metragem da diretora de “Um Céu de Estrelas”.

No caso de Suzana Amaral, o crítico comparava a adaptação que ela fizera de “Uma Vida em Segredo”, romance do mineiro Autran Dourado, com “A Hora da Estrela”, adaptação de Clarice Lispector. No de Walter Salles, a comparação se dava entre “Abril Despedaçado”, baseado em romance do albanês Ismail Kadaré, com “Terra Estrangeira”.

Comparações feitas com argumentos, contundência, sem agressões pessoais. Os textos de Bernardet faziam (continuam fazendo) pensar. Não derramavam bilis, nem agrediam o diretor ou integrantes de sua equipe técnica e artística. Esse comentário vem a propósito dos ataques pessoais, feitos nesse exato momento, a Petra Costa, que acaba de lançar seu quarto longa-metragem, “Apocalipse nos Trópicos”. Críticos, principalmente do sexo masculino, atacam o filme por causa da voz “fanha, infantilóide e pegajosa” da realizadora mineira. Esses “atributos” foram pespegados em Petra por um crítico respeitado (principalmente nas Artes Cênicas), Edélcio Mostaço.

Bernardet quis, naquele ano de 2003, chamar atenção para o cada vez mais explícito diálogo do cinema brasileiro com a publicidade (um ano depois do triunfo do vigoroso “Cidade de Deus”, filme que projetou o cineasta e publicitário Fernando Meirelles). Tudo estava ficando bonito demais, bem feito demais. Mas faltava vida a eles, pulsão. O crítico queria ver “filme vivo, feito com as vísceras”. Não “filmes mortos”, que “ficam regozijando com sua elaboração formal e contemplando, maravilhados, a sua beleza”.

Uma variação dos “filmes mortos” reapareceria, vinte anos depois, em debate no Festival Aruanda, na Paraíba. Bernardet chamaria de “filmes funerários” as cinebiografias documentais, aquelas que só mostravam o lado bom de seus personagens-tema. Aquelas que escondem as “zonas de sombra”. O passar do tempo não domou o crítico-professor-cineasta-ator. Morreu aos 88 anos dizendo o que brotasse de suas reflexões. Doesse a quem doesse.

No caso do artigo da Revista de CINEMA, o de 22 anos atrás –, que repercutiu em textos de Otávio Frias Filho, em sua coluna na Folha de S. Paulo, e de Vladimir Safatle (Festival de Brasília 2011) –, Bernardet mostrou, além de ironia fina, sua capacidade de estabelecer comparações que calam fundo na (baixa) autoestima brasileira. Uma delas: nos colocar frente a frente com a Argentina, nosso vistoso vizinho, detentor de dois Oscar (vinte anos depois de “História Oficial”, agora temos o nosso!!!) e de cinco prêmios Nobel (zero para o Brasil). No futebol, perder para o Boca Juniors, River Plate ou para a seleção portenha dói muito mais.

Para reafirmar a índole polemizadora de Bernardet, vale registrar, também, texto que ele endereçou ao paraibano Wills Leal. No final da década de 1960, o pesquisador Leal preparou um livro sobre “O Nordeste no Cinema”. Solicitou, então, prefácio ao jovem professor da USP. O texto chegou a João Pessoa, por carta, arrasador. Bernardet detonou o futuro livro.

Wills Leal, idealizador da Roliúde Nordestina paraibana, não encontrou editor na ocasião. E, para piorar, perdeu os originais de seu estudo, homem ocupado que era, dedicado a mil ofícios (exerceu cargos políticos, como titular de Secretaria de Turismo). Em 1982, depois de localizados os originais, conseguiu parceria entre a UFPB e a UFBA que viabilizasse edição de 134 páginas.

A espinafração de Bernardet continuou na gaveta?

Não, pois o também polemista e barulhento Wills Leal a transformou em posfácio. Um posfácio no qual o autor de “Cineastas e Imagens do Povo” diz com todas as letras:

“Seu trabalho (de pesquisa) é insuficiente pelo seguinte motivo (depois você poderá dizer à vontade que o meu livro padece do mesmo defeito que o seu): o seu método de análise, em linha geral, tem 2 grandes características: 1. ele descreve (…) Me pareceu ficar sempre na paráfrase, ou seja, a transposição em palavras (…) do que está colocado no filme (…) 2. ele é ‘adjetivo’ (agora não posso continuar, tenho aula, continuo depois… Continuando): o sistema da paráfrase (que pode ser eventualmente útil num determinado momento do trabalho) nada acrescenta à obra, não explica sua significação, não enriquece a sua significação”.

O prefácio de Bernardet (que virou posfácio) ocupa cinco páginas e traz momentos luminosos. Em especial, a análise que ele faz do final de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, em tudo oposta à compreensão do pesquisador paraibano.

Estudiosos da obra crítico-analítica de Bernardet (dedicada em sua quase totalidade ao cinema brasileiro) encontrarão farto material de análise neste modesto livrinho de Wills Leal. E notarão – se leram o primeiro texto de Bernardet editado no “Suplemento Literário” (Estadão 31/10/1959) – o quanto o jovem Bernardet já defendia ideias instigantes. O filme analisado, no “Suplemento” (republicado em 13/07/2025) — “A Concha e o Clérigo”, de Germaine Dulac, com roteiro de Antonin Artaud — rendeu texto caudaloso.

À medida que o tempo foi passando, o professor uspiano tornou seus textos cada vez mais sintéticos e cortantes. Sem jamais agredir pessoas, vale repetir. Sempre se movendo no campo das ideias.

Segue abaixo a íntegra do texto no qual Bernardet compara o cinema argentino (representado por “Esperando o Messias”, de Daniel Burman, 2000) com os “filmes mortos” brasileiros. Nesse texto, que ocupou apenas uma página na Revista de CINEMA, ele trabalha outra de suas ideias fertilizadoras: o cinema lacunar. Ideia que apaixonaria e calaria fundo realizadores, principalmente, os mais jovens. Como esquecer a história da porta?

Nossos “roteiristas e diretores precisam explicar que o personagem fechou a porta, trancou-a, chamou o elevador, entrou no elevador, saiu do prédio…”. Fruam, pois, o texto inteiro.

 

OS ARGENTINOS DÃO UM BANHO NOS BRASILEIROS

Por Jean-Claude Bernardet

Assisti a “Esperando o Messias”, e saí bem, leve (teria saído melhor não fosse o cheiro gorduroso das pipocas). Não é um grande filme, é um filme médio. Sua alegoria é, para meu gosto, excessiva: uma Virgem Maria, um São José, e mais um menino na noite de Natal (contrabalançando os rituais judaicos) é interessante, é compreensível, mas é demais. No entanto, saí bem e leve por causa da forma narrativa. O filme tem agilidade, trabalha as elipses dentro e entre as cenas, tornando sua narrativa rápida, viva. Não há necessidade de longas explicações para justificar as ações dos personagens. Breves anotações, como a expressão facial de um personagem, permitem acompanhar fluentemente a ação, compreender, e se emocionar, com o quadro afetivo dos personagens e as relações entre eles, sem demora. São alusões, sugestões que dispensam pesadas análises. A narração consegue integrar elementos da vida cotidiana atual, como a crise monetária, o celular, a internet e a Telefônica, na composição dessa crônica da vida dos personagens. Um elenco homogêneo, o jovem intérprete do protagonista e as jovens atrizes têm atuações tão boas quanto o monstro sagrado Héctor Altério. E é importante que seja um filme médio e não uma exceção: é a prova de que a Argentina tem produção média viva e inteligente, o que assinalam também outros filmes, como “Nove Rainhas” ou “O Filho da Noiva”.

Saí dessa projeção com uma impressão que foi compartilhada por vários profissionais de teatro e cinema que também acabavam de ver o filme. A impressão é: os brasileiros são incapazes de fazer um filmes como “Esperando o Messias”. Como diz um amigo meu, os argentinos estão dando um banho nos brasileiros.

Esse banho deve-se em grande parte à forma da narração. A narração da maioria dos filmes brasileiros atuais é pesadona ou, como disse uma atriz na saída da projeção, tem uma narrativa atravancada. O adjetivo é excelente. Tem-se constantemente a sensação de que, para passar de uma cena à outra, roteiristas e diretores precisam explicar que o personagem fechou a porta, trancou-a, chamou o elevador, entrou no elevador, saiu do prédio… Constantemente a sensação de que qualquer ação, cometa o personagem um assassinato ou tome uma média com pão e manteiga, mil motivações psicológicas ou outras precisam ser expostas.

“Abril Despedaçado”, de Walter Salles

Esse enrijecimento da narrativa cinematográfica não ocorre em filmes incompetentes, mas justamente em filmes inclusive elaborados com cuidado. A ponto de podermos falar hoje na existência de um ‘parnasianismo’ cinematográfico brasileiro. São parnasianos filmes como “Abril Despedaçado”, “Uma Vida em Segredo”, “Através da Janela” (de que sou um dos roteiristas, baseado num argumento original de minha autoria). Parnasianos e vazios. Joguemos fora esses filmes antes que morramos asfixiados. São filmes belíssimos. Raramente ator brasileiro terá sido tão bem tratado, tão bem maquiado, tão bem penteado como o Rodrigo Santoro de “Abril Despedaçado”. A esplendorosa fotografia de “Uma Vida em Segredo” motivou notável análise de Carlos Ebert que relaciona, com razão, a fotografia de Lauro Escorel com a luz de Vermeer, a luz do interior, a luz filtrada pela janela. Mas são filmes mortos. Não estão mortos por causa de seus defeitos, porque o ator de “Através da Janela” é péssimo e a música inadequada, porque “Uma Vida em Segredo” quebra a cara na terceira parte, a partir da mais do que discutível cena que junta um cachorro com carência afetiva + a chuva + a tosse da protagonista. São filmes mortos por causa de suas qualidades.

Tem-se constantemente a impressão de que diretoras e diretores ficam nos dizendo: olhem como eu filmo bem, olhem como está lindo, olhem como construo esse plano, vejam o meu enquadramento inicial, aí a atriz se levanta, aí a câmara faz uma ligeira panorâmica etc., etc. São filmes mortos porque ficam regozijando com sua elaboração formal e ficam contemplando, maravilhados, a sua beleza. Em matéria de ‘mulher interrompida’, “A Hora da Estrela” deixa “Uma Vida em Segredo” no chinelo, como “Um Céu de Estrelas” deixa “Através da Janela” no chinelo, como muitas cenas de “Terra Estrangeira” deixam “Abril Despedaçado” no chinelo. Joguem fora seus storyboards. Injetem menos talento e mais vida nos seus fotógrafos e diretores de arte.

Encontrei Suzana Amaral na saída de “Abril Despedaçado”, que eu ainda não tinha visto. Ela estava visivelmente perturbada e irritada, e perguntou: “Pra que tanta beleza?”. Depois, pensei: Suzana deve ter visto em “Abril Despedaçado” o fantasma de “Uma Vida em Segredo”, são iguais.

Mil vezes um “Bicho de Sete Cabeças”, com todos os seus defeitos e primarismos (que não são poucos). Mas é um filme vivo, feito com as vísceras.

O despertador está tocando, tá na hora de acordar.

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