Mostra de Cinema de Gostoso premia “Aqui Não Entra Luz”, sobre trabalhadoras domésticas, e o potiguar “Pupá”, retrato de apontadora do jogo do bicho
Foto © Helena Wolfenson
Por Maria do Rosário Caetano, de São Miguel do Gostoso (RN)
A Mostra de Cinema de Gostoso, em São Miguel do Gostoso, no litoral do Rio Grande do Norte, entregou o Troféu Cascudo, tributo ao folclorista Luiz da Câmara Cascudo, aos filmes escolhidos como os melhores dessa edição pelos júris do público e da imprensa.
Os vencedores, segundo o júri popular (cabe a ele a escolha, pois não há júri oficial), foram “Aqui Não Entra Luz”, de Karol Maia, sólido registro de memórias e afetos de trabalhadoras domésticas, e “Pupá”, de Osani, retrato de apontadora do jogo do bicho.
Os dois filmes são documentários comandados por mulheres. O primeiro, um longa-metragem de produção mineiro-paulista traz a assinatura de cineasta que conhece em profundidade o tema escolhido, pois é filha de trabalhadora doméstica. E sua mãe, uma das cinco personagens que protagonizam o filme.
O segundo, um curta realizado em Acari, no sertão potiguar, registra a vida cotidiana de Pupá, mulher do povo, que se divide entre o trabalho doméstico e o de cambista do Jogo do Bicho, além de dedicar-se ao fabrico de “lambedores” (xaropes caseiros feitos com ervas medicinais).
Karol Maia, com curso superior em Rádio e TV, iniciou a feitura de “Aqui Não Entra Luz” com recursos vindos do Projeto Rumos, do Itaú Cultural. Sua intenção era buscar, no trabalho doméstico, os rastros deixados pela escravidão. Em especial, no espaço arquitetônico (e nos quartinhos de empregada, aqueles “onde não entra luz”).
Um primeiro corte do filme foi entregue ao Projeto Rumos. Mas a diretora desejava realizar novos mergulhos no tema e, por isso, organizou um croundfunding (vaquinha), que mobilizou 1.300 doadores. Com esses novos recursos, Karol prosseguiu captando novos materiais. E aproveitou para registrar imagens dela com a mãe, num passeio praieiro. Era seu desejo colocá-las no filme. Mas a questão continuava em aberto, pois a mãe não mostrava entusiasmo pela ideia.
Num terceiro momento, ao receber financiamento público, Karol Maia pôde buscar, em quatro estados brasileiros (Minas Gerais, Rio de Janeiro, Maranhão e Bahia), as personagens que se somariam à sua mãe, representante (caso aceitasse) do ofício doméstico na metrópole paulistana.
Consolidaram-se, nessa terceira fase, os reveladores testemunhos da mineira Rosarinha, da pernambucana-carioca Cris, da maranhense Mãe Flor e da baiana Marcelina. Esta, líder sindical, dedicou boa parte de sua vida à luta pelos direitos das trabalhadoras domésticas. Além de salários, reivindicou o sagrado direito à casa própria. Em especial, para profissionais que (ainda) moram em minúsculos quartinhos, por não terem para onde ir.
Karol Maia dedicou os últimos oito anos de sua vida profissional a “Aqui Não Entra Luz”. Até se dar por satisfeita. Ou seja, chegar ao corte final e ser selecionada pelo IDFA (Festival Internacional de Documentários de Amsterdã), premiada no Festival de Brasília (melhor direção e Troféu Zózimo Bulbul) e, agora, na Mostra de Gostoso. Nessa longa caminhada, a cineasta conseguiu convencer a mãe a participar do filme. E a aceitação se deu sob condicionante: que aparecessem juntas, mãe e filha, conversando sobre o trabalho da primeira, responsável pela faxina de escritório paulistano, e da cineasta, a primeira da família a cursar uma universidade.
O resultado desses oito anos de trabalho intenso (três deles dedicados à montagem) aparece, vigoroso e amadurecido, na tela. E com a capacidade de envolver o espectador pela qualidade dos testemunhos colhidos com as domésticas (todas grandes narradoras) e na articulação de múltiplos assuntos. A arquitetura das casas brasileiras aparece ao longo dos 78 minutos do filme, no contraste entre mansões (de cinco ou mais dormitórios, piscina, área de lazer, jardins) e o cubículo de quem mora onde trabalha.
O curta-metragem premiado pelo júri da imprensa — “Laudelina e a Felicidade Guerreira”, da carioca Milena Manfredini — também tem uma trabalhadora doméstica como protagonista — a mineira Laudelina de Campos Mello (1904-1991), nascida em Poços de Caldas, filha de doméstica, que se dedicaria, pela vida inteira, ao mesmo ofício. Primeiro em sua cidade natal, depois em Campinas, onde se transformaria em liderança trabalhista, inscrevendo seu nome na história de pioneiro Sindicato de Trabalhadoras Domésticas.
O público poderá assistir ao longa laureado pelo júri da imprensa — “A Natureza das Coisas Invisíveis”, de Rafaela Camelo — a partir dessa quinta-feira, 27 de novembro, quando de seu lançamento em 40 cidades (Circuito Vitrine-Petrobras).
O longa brasiliense, um drama poético, banhado em leve atmosfera fantasmagórica, mostra o encontro de duas meninas, Glória e Sofia, primeiro num hospital, depois num sítio bucólico nos arredores de Brasília. Elas estabelecerão amizade fraterna, viverão experiências cotidiano-lúdicas e descobertas emocionais oriundas de perdas e lutos.
Inspirada pelo impressionante “Yi Yi” (“As Coisas Simples da Vida”, 2000), do taiwanês Edward Yang, a cineasta brasiliense mergulha, com fina sensibilidade, nas vidas emaranhadas de seus personagens (as cinco protagonistas são mulheres). Embora venha conquistando importantes prêmios de recorte ‘queer’ (tema abordado na narrativa com imensa sutileza), a realizadora de Brasília prefere definir seu filme como “um drama familiar”.
Após a arrastada cerimônia de entrega de (apenas) dez prêmios — agravada por deslocamentos infindáveis e agradecimentos longuíssimos — veio a boa surpresa da noite: o público assistiu ao documentário “Dona Onete – Meu Coração nesse Pedacinho Aqui”, de Mini Kerti, produção da carioca e badalada Conspiração Filmes.
Melhor escolha para levantar o astral da plateia não poderia haver. A longa cerimônia de premiação — que nem as luminosas presenças de Tânia Maria (a Dona Sebastiana de “O Agente Secreto”) e de Matheus Nachtergaele, o mais nordestino dos paulistanos, conseguiram dinamizar — dava lugar a uma eufórica celebração amazônica, cheia de cores, cantos, tiradas de humor e paisagens exuberantes.
Diretora do ficcional “Muitos Homens num Só”, premiado no Festival de Recife, da série “Andre Midani – Do Vinil ao Download” (parceria com Andrucha Waddington), “Contratempo” (
Ionete da Silveira Gama, a Dona Onete, de 86 anos, só se tornou cantora aos 72, portanto, já mais entrada nos anos que Clementina de Jesus (1901-1987). Professora, poeta, ex-secretária municipal de Cultura de Igarapé-Miri, sindicalista e folclorista, ela é cultora apaixonada da História e dos Estudos Paraenses.
A futura cantora Dona Onete — nos mostrará o filme — viveu casamentos nos quais os homens ditavam as regras e criou os filhos, mas, já na terceira idade, resolveu se libertar. Largou o primeiro e, depois, o segundo marido, dedicou-se à inserção do Sindicato dos Professores de seu estado CUT (Central Única dos Trabalhadores) e botou a boca no mundo.
A septuagenária compositora e cantora se entregou, de corpo, alma e sensualidade maliciosa, ao “carimbó chamegado”. Com a Conspiração na retaguarda, Mini Kerti pôde realizar uma superprodução amazônica, rodada quase toda em externas (barcos, matas, igarapés, rios, espaços de aglomeração urbana, como o Mercado do Ver-o-Peso). Imagens internas só foram captadas em casas ultracoloridas (dela e de amigas ou parentes) e no majestoso Teatro da Paz.
O material colhido é tão exuberante, que a recorrência a imagens de arquivos pôde ser parcimoniosa. O que fica nas retinas dos espectadores são os registros contemporâneos. O colorido dos filmes de Almodóvar perde em intensidade e variedade. E não se trata de “cosmética da fome”, nem de edulcoração de ambientes populares (pobres ou remediados). Os figurinos de Dona Onete são coloridíssimos. Seu visual se compõe com cabelos enfeitados com grandes flores, vestidos multicores e maquiagem forte, dominada pelo batom vermelho.
Seus encontros — com Gaby Amarantos, Jaloo, Fafá de Belém, Dira Paes e grandes músicos e coletivos do carimbó e da guitarrada — transbordam em cantos melodiosos e muita alegria. O resultado é um fascinante e saboroso retrato dessa artista septuagenária-octogenária, que veio ao mundo para, com sensualidade e malícia, “quebrar as barreiras da moral e do pudor”. Fecho de ouro para a Mostra de Cinema de Gostoso.
Confira os premiados:
. “Aqui Não Entra Luz”, de Karol Maia (MG-SP) – melhor filme (júri popular)
. “Pupá”, de Osani (RN) – melhor curta (júri popular)
. “A Natureza das Coisas Invisíveis”, de Rafaela Camelo (DF) – melhor longa (Júri da Imprensa)
. “Laudelina e a Felicidade Guerreira”, de Milena Manfredini (RJ) – melhor curta (Júri da Imprensa)
Prêmios Dot e Mistika
. “Aqui Não Entra Luz”, de Karol Maia (MG-SP) – Premio DOT (R$30 mil em serviços)
. “Ressonância”, de Anna Zêpa (RN) – Prêmio DOT (curta-metragem, R$8 mil em serviços)
. “Morte e Vida Madalena”, de Guto Parente (CE) – Prêmio Mistika (R$30 mil em serviços)
. “A Nave que Nunca Pousa”, de Ellen Morais (PB) – Prêmio Mistika (R$8 mil em serviços)
Prêmios de finalização (O2 Pós e Secretaria de Cultura do Estado do Rio Grande do Norte)
. “Almeidinha”, de Gustavo Guedes e Júlio Castro (RN) – R$30 mil em serviços
. “Paradiso”, de Davi Revoredo (RN) – R$25 mil em serviços

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