Cinema e TV brasileiros perdem Aurora Duarte, Chica Xavier e Gésio Amadeu

Por Maria do Rosário Caetano

Aurora Duarte, Chica Xavier e Gésio Amadeu são as perdas das artes audiovisuais nessa primeira quinzena do mês de agosto, em tempo de pandemia.

A atriz, produtora e diretora fluminense, que adotou o Recife e depois São Paulo, Aurora Duarte faleceu no último dia 6, em São Paulo, aos 83 anos (ou 85, a julgar-se por registros de livros como o “Dicionário de Curtas e Médias-Metragens Brasileiros” e o “Dicionário de Astros e Estrelas”, ambos de Antônio Leão).

Chica Xavier, mais conhecida por seu trabalho em 40 telenovelas e minisséries da Rede Globo, morreu no último dia 8 de agosto, aos 88 anos. A atriz baiana, nascida em Salvador, fez carreira no Rio de Janeiro. Mãe de santo nos rituais de umbanda, Francisca Xavier Queiroz de Jesus não desempenhou grandes papeis no cinema. Só colocou seu nome em nove longas e curtas-metragens, entre eles “Assalto ao Trem Pagador” (Roberto Farias, 1962), secundando duas divas negras, Luíza Maranhão e Ruth de Souza, “Um Virgem na Praça” (1973), “Uma Mulata para Todos” (1975), ambos de Roberto Machado, “A Deusa Negra” (Ola Balogum, 1978), “Inocência” (Walter Lima Jr, 1983), “A Partilha” (Daniel Filho, 2001) e o espírita “Nosso Lar” (Wagner de Assis, 2020).

O mineiro Gésio Amadeu, que fez carreira em São Paulo, morreu em 5 de agosto, aos 73 anos. Como Chica Xavier, ele não desempenhou papeis de protagonista. Essa realidade, registre-se, marca a trajetória de muitos artistas afro-brasileiros. Mas Gésio ficará na memória de muitas crianças (pelo Tio Barnabé do “Sítio do Pica-Pau Amarelo” e pelo Chico, cozinheiro gente boa de “Chiquititas”). E dos adultos por telenovelas como a revolucionária “Beto Rockfeller” (Bráulio Pedroso, 1968), que somou-se a “Sol de Verão”, “Éramos Seis”, “O Direito de Nascer”, “Os Imigrantes”, “Ana Raio e Zé Trovão”, “A Viagem”, “Sangue do meu Sangue”, “Renascer”, “Terra Nostra”, “Essas Mulheres”, “Paraíso”, “Araguaia” e “Sinhá Moça”. Neste folhetim, protagonizado por Lucélia Santos, ele contracenou com duas lendas da interpretação brasileira, Grande Otelo e Ruth de Souza.

O primeiro longa-metragem de Gésio Amadeu foi “A Moreninha” (Glauko Mirko Laurelli, 1970). Este filme, que será exibido pelo Santos Film Festival, em comemoração aos 50 anos de seu lançamento, baseia-se em livro homônimo de Joaquim Manoel de Macedo e teve Sonia Braga como protagonista. Vieram, depois, papeis pequenos em “Longo Caminho da Morte”(Júlio Calasso, 1972), “Eles Não Usam Black-Tie” (Leon Hirszman, 1982), “O Medium, a Verdade sobre a Reencarnação” (Paulo Figueiredo, 1980), “As Vidas de Maria” (Renato Barbieri) e “Histórias e Estórias” (Vicentini Gomez, 2017). Gésio atuou, também, nos curtas “O Anônimo”, “Porto das Monções” e interpretou um acordeonista no saboroso “PRKadeia”. O ator registrou seu testemunho nos documentários “Na Rota dos Orixás – Atlântico Negro” (Renato Barbieri, 1998) e “Pitanga” (Beto Brant e Camila Pitanga, 2016). Seu último trabalho no cinema deu-se em “Doutor Hipóteses, uma Alma Perdida na Pandemia” (Vicentini Gomes, 2020). O ator foi vítima da Covid-19.

Aurora Duarte iniciou-se no rádio na capital pernambucana. Sonhava em ser atriz. Quando Alberto Cavalcanti (1897-1982) mobilizou, no Recife, jovens para o elenco de “O Canto do Mar”, a moça foi selecionada para interpretar a namorada de rapaz de família pobre, cujo pai tem problemas mentais, a mãe é lavadeira e a irmã se prostituirá, se preciso for, para ter acesso a bens de consumo.

Recriação brasileira de “En Rade” (“À Deriva”), que Alberto Cavalcanti realizara em 1927, em Marselha (o brasileiro foi educado na Suíça e na França), “O Canto do Mar” resultou em fracasso comercial e seu autor foi acusado de denegrir o Brasil, “explorando suas misérias”. Mas diretor e filme tinham prestígio. Cavalcanti, nunca é demais lembrar, era nome de ponta no cinema de vanguarda internacional e no Brasil dirigira a ambiciosa Vera Cruz.

A jovem atriz conheceria, apesar dos percalços, fama repentina, pois “O Canto do Mar” participou do Festival de Cannes e rendeu ao cineasta o prêmio de melhor direção no Festival de Kalovy-Vary, na Tchecoeslovaquia socialista.

Aurora Duarte tomou o filme como poderoso cartão de visita e colocou o pé na estrada. Radicou-se, brevemente, no Rio de Janeiro e seguiu para São Paulo, ainda na década de 1950. Viveu na capital paulista até sua morte.

A jovem, que integrara a Associação de Cinegrafistas Amadores do Brasil e realizara um curta, “A Sereia e o Mar”, teve que se virar para dar sequência à carreira. Tornou-se produtora e batalhou por papeis de peso em filmes de aventura, incluindo nordesterns (os faroestes cangaceiros). Mas só conseguiu somar nove longas-metragens em mais de 70 anos de carreira.

Como diretora e produtora, Aurora realizou onze filmes curtos, a maioria destinada ao cumprimento da Lei de Obrigatoriedade de Exibição do Curta-Metragem, implantada no final dos anos 1970 e ignorada a partir da posse do presidente Fernando Collor de Mello (em 1990). Em maior parte, seus filmes registram temas oficiais, de forma acadêmica. Ou seja, homens da área das Ciências e movimentos artísticos (“Chagas”, “Flor Cinzenta”, “Os Jesuítas e a Arquitetura Religiosa Paulista do Séc. XVII”, “Pennacchi”, “Porta para o Mistério”, “Rimas para a Liberdade”, “Território do Poeta”, “Comando e Direção de Veículo”, “Vital Brasil e o Instituto Butantã”, “Helenos” e “A Flor de Ingrid”).

Depois do sucesso de “O Canto do Mar”, Aurora Duarte conseguiu emplacar quase um filme por ano. Fez “Os Três Garimpeiros” (Gianni Pons, 1954), com três astros-protagonistas (Milton Ribeiro, Alberto Ruschel, ambos de “O Cangaceiro”, e Hélio Souto) e Adoniran Barbosa em papel de coadjuvante. Seguiram-se “As Armas da Vingança” (Alberto Severi e Carlos Coimbra, 1955), “Fronteiras do Inferno”, título menor (“de encomenda”) da importante filmografia de Walter Hugo Khouri (1929-2003), e “Crepúsculo de Ódios”(Carlos Coimbra, 1959).

O maior sucesso comercial viria com o nordestern “A Morte Comanda o Cangaço” (1960), de Carlos Coimbra, no qual contracenou, mais uma vez, com Milton Ribeiro e Alberto Ruschel. No elenco de apoio, Ruth de Souza, Edson França, Marlene França (nenhum parentesco) e participações de Luiz Gonzaga, Venâncio e Corumba e Volta Seca.

Por razões inexplicáveis do destino, o maior sucesso comercial da carreira da atriz não lhe abriria novas portas. O ostracismo tornar-se-ia marca indelével em sua longa trajetória artística (dos anos 1970 até sua morte). Ela só voltaria a atuar, 13 anos depois, em “Uma Nega Chamada Tereza” (Fernando Coni Campos, 1973), protagonizado por Jorge Ben, autor da música que lhe servira de origem. Aurora assumiu a tumultuada produção do filme ao lado do segundo marido, o editor Massao Ono (1936-2010).

Outra década seria necessária para que ela atuasse em novo filme – “Noites Paraguayas” (1983), de Aloysio Raulino. Uma produção de baixo custo, objeto de estima de alguns, mas retumbante fracasso de público.

Hiato de grandes dimensões, Aurora conheceria a seguir: mais de trinta anos separam seu filme derradeiro – o cearense “A Lenda do Gato Preto”, filmado por Clébio Viriato Ribeiro em Quixadá – da solitária aventura de Aloysio Raulino (1947-2013) no longa-metragem. “Gato Preto” foi exibido em sessão paralela no Cine Ceará e nem conseguiu estreia no circuito comercial.

A atriz, que não tinha parentes próximos, morreu no Hospital Central da Santa Casa de Misericórdia, na capital paulista. Deixou um livro, “Aurora Duarte – Ponta de Faca”, publicado pela Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial de São Paulo (2010), editada por Rubens Ewald Filho. A publicação está esgotada, mas pode ser lida gratuitamente no espaço digital da editora do Estado de SP.

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