Eva Wilma e o cinema

Por Maria do Rosário Caetano

A atriz Eva Wilma, que morreu vítima de câncer na noite de sábado, 15 de maio, teve na televisão o principal veículo de difusão de seu imenso talento. No cinema, deixou trabalho memorável em “São Paulo: Sociedade Anônima” (Luiz Sérgio Person, 1965), e filmes significativos, como “Cidade Ameaçada” (Roberto Farias, 1960), “A Ilha” (Walter Hugo Khouri, 1963) e “Feliz Ano Velho” (Roberto Gervitz, 1987), no qual interpretou personagem inspirada em Eunice Paiva, viúva do desaparecido político Rubens Paiva e mãe do escritor Marcelo Rubens Paiva.

Eva Wilma Riefle Buckup Zarattini nasceu em São Paulo, em dezembro de 1933, e iniciou-se na carreira artística como bailarina do Teatro Municipal. Aos 22 anos, estrelou, ao lado do primeiro marido, John Herbert, a série “Alô, Doçura”, exibida pela TV Tupi. O sucesso foi imenso e transformou o casal em verdadeiros superstars. O programa permaneceu no ar de 1953 a 1964. Portanto, por longos onze anos.

A fama da jovem atriz tornou-se tão evidente, que foi ela convidada a integrar o elenco de três produções cinematográficas no ano de 1953. Mais tarde, seria testada para o elenco de “Topázio” (Alfred Hitchcock, 1969). Não foi escolhida, mas passou pelo olhar (e crivo) cortante do mestre do suspense. Para consolar-se, Eva costumava lembrar que “Topázio” não integrava os grandes momentos do diretor britânico. Depois, ironizava ao confessar: “digo isso para me consolar”.

Eva Wilma atuaria em algumas produções latino-americanas e seria dirigida por Luiz Alcoriza, colaborador de Luis Buñuel (em “Jogo Perigoso”, 1967). Curioso lembrar que atuou, sob direção do argentino Roman Vañoli Barreto, na coprodução portenho-brasileira “Chico Viola Não Morreu”. Esse musical melodramático contou a história de Francisco Alves (1898-1952), o Rei da Voz. Nas décadas de 1930 e 40, o cantor conheceria fama similar à desfrutada por Roberto Carlos na segunda metade do século 20. Seria o rei das multidões. A morte precoce do Chico Viola (aos 54 anos), vítima de acidente automobilístico na Via Dutra, deixaria o país em transe.

A cinebiografia de Francisco Alves foi escrita pela rainha do melodrama brasileiro, a cineasta e atriz Gilda de Abreu. Diretora de “O Ébrio” (1946), cinebiografia do marido, Vicente Celestino, Gilda foi credenciada a escrever o roteiro de “Chico Viola Não Morreu” pelos produtores. Afinal, estes esperavam repetir o sucesso da obra celestínica, que – presume-se – venderia 8 milhões de ingressos. O que não aconteceu.

O filme “Chico Viola”, lançado em 1955, portanto ainda no calor da hora, narra a história de garoto pobre, que tinha o dom do canto. Aos 20 anos fugiria de casa, agregando-se à trupe de um circo e tornando-se acompanhante de bela cantora, Marina (Inalda Carvalho). Com a morte do pai, Chico regressaria à casa materna e se empregaria em humildes funções. Mas cantar era seu maior sonho. Um dia reencontrou Marina, já famosa. Foram viver juntos, mas ela o abandonou. Ele, então, conheceu Maria, personagem de Eva Wilma, o grande amor de sua vida. No auge da fama, a morte o surpreenderia quando seu carro, um Buick, seria atingido, perto de Pindamonhangaba, por um caminhão Austin.

Antes de “Chico Viola Não Morreu”, a jovem Eva Wilma atuou em “Uma Pulga na Balança” (Luciano Salce), O Homem dos Papagaios (Armando Couto) e “O Craque” (José Carlos Burle), todos de 1953, e em “A Sogra” (Armando Couto, 1954). Integraria, ainda, o elenco de “Se a Cidade Contasse”, de Tito Batini, filme comemorativo do quarto centenário da cidade de São Paulo, celebrado em 1954. Faria mais um filme sob a direção do inquieto Burle, “O Cantor e o Milionário” (1957).

Roberto Farias escalou Eva Wilma para o drama policial “Cidade Ameaçada”, sobre o “bandido” Promessinha. As aspas se devem à natureza do roteiro, escrito por Alinor Azevedo, um humanista mais interessado em compreender as condicionantes sociais do crime e o papel da imprensa na fabricação de facínoras. O filme participou do Festival de Cannes.

Eva Wilma com Reginaldo Faria em “Cidade Ameaçada”

Walter Hugo Khouri, que fazia questão de ter belas mulheres em seus elencos, escalou Eva Wilma para protagonizar “A Ilha” (1963), ao lado de Luigi Picchi. O filme se passa em ilha do litoral sul de São Paulo. Um milionário convida amigos para desfrutar de um final de semana em sua propriedade. No local, diz-se, há um tesouro enterrado. Tempestade romperá as amarras do barco que os trouxera à ilha e todos serão obrigados a permanecer ali. O isolamento acabará por revelar o verdadeiro caráter de cada um dos presentes (no elenco, os críticos Ely Azeredo e José Júlio Spiewak, o escritor José Mauro de Vasconcelos e o futuro cineasta Gustavo Dahl somam-se a Elizabeth Hartman, Mario Benvenutti, Lyris Catelani, Ruy Afonso e Laura Vernay).

No mesmo ano de “A Ilha”, Eva Wilma atuaria em “O Quinto Poder” , de Alberto Pieralisi. Além de “Jogo Perigoso”, parceria México-Brasil, a atriz paulistana integraria os elencos de “Noites Quentes em Copacabana” e “Convite ao Pecado”, ambos dirigidos pelo alemão Horst Hachler.

Eva Wilma em “A Ilha”

No final da década de 1960, depois do sucesso de “Os Paqueras” (Reginaldo Faria, 1969), a comédia de costumes, com ingredientes picantes, ganharia força hegemônica no cinema brasileiro. Eva Wilma atuaria em duas delas – “A Arte de Amar Bem” (no primeiro episódio – “A Inconveniência de Ser Esposa”) e em “Cada um Dá o que Tem” (segundo episódio – “Cartão de Crédito”). Integraria, ainda, o elenco do filme infantil “O Menino do Arco-Íris”, sobre a infância do Menino Jesus, de Ricardo Bandeira (1979).

Integrante do primeiro time de maiores e mais festejados talentos da Rede Globo (a TV Tupi, de Assis Chateaubriand, desmantelava-se), Eva Wilma mal tinha tempo para o cinema. Mesmo assim, atuaria em mais cinco filmes: “Asa Branca, um Sonho Brasileiro” (Djalma Limongi, 1981), “Feliz Ano Velho” (Gervitz, 1987), “Veias e Vinhos” (João Batista de Andrade, 2006), “O Signo da Cidade” (escrito por Bruna Lombardi e dirigido por Carlos Alberto Riccelli, 2007), e “A Guerra dos Vizinhos” (Rubens Xavier). Neste longa-metragem, ela dividiu o protagonismo com Karim Rodrigues e Vera Mancini. As três interpretaram Adélia, Beatriz e Dircinha Coleratti, o terror da vizinhança, por causa das ofensas por elas proferidas. As barulhentas senhoras seriam condenadas, pela Justiça, a prestar serviços comunitários.

Eva Wilma participou de diversas montagens teatrais. O ator Paulo Betti destaca uma delas, produzida pela Casa da Gávea, mantida por ele e sócios: “Querida Mamãe”, de Maria Adelaide Amaral. Sob direção de José Wilker, Eva interpretou a mãe da personagem de Eliane Giardini.

“O diretor teatral Antunes Filho”, lembra Betti, “notara haver grande semelhança física entre Eva e Eliane”. Semelhança que chegou ao palco, onde as duas atrizes puderam mostrar seus grandes talentos.

Eva Wilma e Eliane Giardini em “Querida Mamãe”

A televisão, não há dúvida, foi o veículo que ofereceu a Eva Wilma suas maiores personagens. Ela protagonizou telenovelas como “Mulheres de Areia”, no papel das gêmeas Ruth e Raquel (versão da TV Tupi), e “A Indomada”, na pele da megera Maria Altiva Pedreira de Mendonça (na Globo). Foram muitos os folhetins que a tiveram em seus elencos (“A Viagem”, na versão original, e “O Barba Azul”, na Tupi), “Transas e Caretas”, “Plumas e Paetês”, “Pátria Minha”, “Elas por Elas”, “Pedra sobre Pedra”, “O Rei do Gado”, “Roda de Fogo”, “Sassaricando”, “Ciranda de Pedra”, “Mico Preto”, “Esperança”, “Champagne”, “Fina Estampa”, “Verdades Secretas” (todas na Globo). Além casos especiais e participação em um episódio de “A Grande Família” (“Uma Estranha no Ninho”).

Por fim, há que se registrar que, como cidadã, Eva Wilma exerceu intensa luta pela liberdade de expressão e manifestação do pensamento. Participou da Passeata Contra a Censura, em cordão formado com Tônia Carrero, Odete Lara, Norma Bengell e Cacilda Becker. Foto famosa registra o quinteto, de mãos dadas, sob cartaz que assinalava a presença do meio artístico “Contra a Censura, pela Cultura”.

A atriz continuou defendendo as liberdades democráticas e os direitos de sua categoria profissional. Ao casar-se com o ator Carlos Zara (1930-2002), Eva tornou-se cunhada do ex-guerrilheiro Ricardo Zarattini (1935-2017), que, depois da anistia, militaria no PDT brizolista e no PT (Partido dos Trabalhadores), pelos quais seria eleito deputado federal.

O biógrafo de Ruth Escobar, Álvaro Machado, contou no Facebook, que Eva Wilma foi uma das fontes de seu livro (“Metade é Verdade – Ruth Escobar”, Edições Sesc) e que, em 2019, ela participou de encontro com o presidente da Fecomercio, Abraão Szajman, ao lado dos atores Juca de Oliveira, Denise Fraga, Sérgio Mamberti e do gestor do Sesc, Danilo Miranda, para reivindicar apoio à reabertura do TBC, teatro de imensa importância na história cultural de São Paulo.

Dois cineastas que escalaram Eva Wilma para seus elencos, deram depoimento à Revista de CINEMA, sobre a experiência de trabalhar com a atriz.

João Batista de Andrade, diretor (e escritor) mineiro-paulista, 81 anos: “Muito de tristeza e um pouco de alegria, é o que sinto nesse momento em que sabemos da morte de Eva Wilma. Alegria por ter me tornado amigo dela durante e a partir do filme ‘Veias e Vinhos’, adaptado do belo romance homônimo de Miguel Jorge, meu querido e talentoso amigo goiano. Vivinha, como a chamávamos, interpreta um dos personagens marcantes da trama. No elenco, pessoas maravilhosas, como Simone Spoladore, José Dumont, Celso Frateschi, Leonardo Vieira, Leopoldo Pacheco, Ailton Graça. E Eva Wilma, com sua sensibilidade e experiência que, de uma forma ou de outra, passava para todos nós. O filme era de baixíssimo orçamento, o que sempre trava bastante as possibilidades de criação. Era, para dizer a verdade, um orçamento compatível com curta-metragem, embora o projeto merecesse uma produção maior. A qualidade do desempenho dos atores e atrizes tornava-se fundamental em tais circunstâncias. Eva Wilma era sempre uma referência, tanto pelo seu carisma e pela qualidade de seu trabalho, quanto por sua experiência. E jamais se queixou das baixíssimas condições de produção, fazendo o que podia para valorizar o filme. Uma das mais belas sequências de ‘Veias e Vinhos’ foi criação dela. Eva fazia a avó dos personagens meninos, que se espantavam, vendo-a conversar com o avô, já morto. A morte da personagem se dá quando um dos meninos a vê numa dessas conversas com o avô (Leopoldo Pacheco) e assiste ao momento em que ela se imobiliza, morre. Seria o momento do encontro dela com o avô, num plano imaginário. E Eva Wilma propôs que o encontro fosse lúdico, feliz. Filmei, então, os dois se abraçando, caminhando e se distanciando da câmera, em passos de dança, felizes. É assim que vejo Eva Wilma partir agora, como uma pessoa amiga e de um talento extraordinário, que nos deixa fortes representações, personagens marcantes”.

Roberto Gervitz, brasileiro nascido em Nova York, 63 anos: “Eva Wilma estava em cartaz com a peça ‘Quando o Coração Floresce’, drama sentimental, de Aleksei Arbuzov, sobre casal de idosos. Ela contracenava com seu companheiro Carlos Zara. Eu conhecia o trabalho de Eva principalmente das novelas, nas quais acabavam lhe dando personagens parecidos. No cinema, havia atuado em ‘São Paulo S.A.’, um dos nossos maiores filmes, mas já fazia tempo. Saí da peça com a certeza que o papel de Lúcia, personagem inspirado em Eunice Paiva, era para ela. Quando ela aceitou o papel, depois de ler o roteiro de ‘Feliz Ano Velho’, a minha felicidade foi imensa. Atriz de grande talento, inteligência e sensibilidade, mulher de personalidade forte e íntegra, Eva marcou a sua participação especial em uma das cenas que eu considero das mais belas, graças à sua esplêndida atuação. Trata-se de uma grande manifestação pela anistia em que Lúcia, em uma mesa compartilhada com Therezinha Zerbini, relaciona o medo de viver e o medo infligido à sociedade pela ditadura militar que resultam em vazio e imobilidade. Eva tinha plena consciência de que aquela era a ‘sua’ cena. Muito concentrada, viveu o momento de maneira absoluta – era ela quem falava por meio de Lúcia. Fizemos apenas duas tomadas. Eu me lembro do silêncio que tomou o auditório repleto após o final desta cena. A última vez que nos vimos foi na exibição do filme restaurado, durante a Mostra Internacional de Cinema em 2018, muita emoção. Lembrarei sempre de Eva Wilma com enorme admiração, gratidão e afeto”.

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