“Jesus Kid” dialoga com o western spaghetti e com a chanchada

Por Maria do Rosário Caetano

O Festival de Gramado mostrou, na última noite de suas mostras competitivas, programação das mais ecléticas. A começar pelo longa brasileiro “Jesus Kid”, de Aly Muritiba, comédia metalinguística em diálogo aberto com o western spaghetti e com a chanchada satírica. Depois, o público assistiu a um sensível drama laboral argentino, “Planta Permanente” (“Emprego Estável” em tradução livre), de Ezequiel Radusky, narrativa de corte kenloachiano.

Os dois curtas da noite vieram da Paraíba e do Paraná (mesma origem de “Jesus Kid”). A ficção curitibana “Da Janela Vejo o Mundo”, de Ana Catarina Lugarini, acompanha a relação de uma senhora idosa com as redes digitais. Já “A Fome de Lázaro”, de Diego Benevides, filmado em Cachoeira do Índios, a 320 km da capital paraibana, é um documentário sobre banquete oferecido a cães de rua. Em inversão impressionante, registrada com respeito e poesia pelo filme, os pratos principais são oferecidos à matilha e quem se alimenta das sobras são os anfitriões.

“Jesus Kid” é o quinto longa-metragem do baiano-paranaense Aly Muritiba, ex-agente penitenciário que iniciou-se no cinema com documentários e ficções de corte dramático (caso de “A Gente”, “Para minha Amada Morta” e “Ferrugem”).

Dessa vez, o cineasta atuou, em certa medida, como diretor convidado. O ator Sérgio Marone, o “Jesus Kid”, adquiriu os direitos de adptação do livro de Lourenço Mutarelli, que dá nome (e matéria-prima) ao filme. Ele contou, em debate mediado por Roger Lerina, que desejava ter no cinema oportunidades similares às que tinha (tem) na TV. Entendeu, que se ficasse em casa esperando bons papeis, eles não apareceriam. Por isso procurou o escritor Mutarelli para obter os direitos de adaptação de “Jesus Kid”. Além de interpretar o vistoso cowboy, atuou também como um dos produtores.

Aly Muritiba teve liberdade para fazer o filme do jeito que desejasse. Escreveu o roteiro e, depois das eleições de 2018, que elegeram o ex-capitão Jair Bolsonaro à presidência da República, sentiu necessidade de contextualizar a narrativa. No debate, ele detalhou: “o livro do Mutarelli não trazia uma contextualização histórico-política. Senti, porém, no pós-Eleições, que tinha que alterar o roteiro. Foi o que fiz”. Radicado na “República de Curitiba”, o cineasta pressentiu, de certa forma, o que iria acontecer. A trama parece realizada em 2021.

As filmagens aconteceram em 2019, portanto, no primeiro ano do Governo Bolsonoro. Coube a Paulo Miklos interpretar o escritor Eugênio, alterego de Lourenço Mutarelli, e à jovem Maureen Miranda dar vida à loura oxigenada Nurse (Enfermeira), que cuida de um milionário em estado quase vegetativo.

Ao ator Sergio Marone, conhecido como galã de telenovelas, coube interpretar um cowboy dos mais sedutores. Ele é a Criatura que alimenta os livros (pulp fiction western) de seu Criador (Eugênio). Personagens do universo audiovisual-publicitário e político-militar circundam os protagonistas.

O filme tem uma grande cidade e um hotel de luxo como cenários. Tal qual o escritor de “Barton Fink” (irmãos Coen, 1991), vivido por John Turturro, o brasileiro Eugênio é convidado a enclausurar-se, por três meses, tempo necessário à escrita do roteiro de um filme. Como vive momento difícil, pois as histórias de “Jesus Kid” não estão vendendo bem – ele é obrigado a aceitar as condições dos contratantes (um cineasta afetado e produtor ligado à publicidade e servil a quem estiver no comando político e empresarial do país).

No hotel (locação das mais caprichadas), surge o faz-tudo Arlindo (Leandro Daniel), que servirá – como nas chanchadas – de fonte (e escada) ao tom pastelão que, algumas vezes, o filme abraça. “Jesus Kid” faz rir em certos momentos, mas não resultou em comédia que mereça o qualificativo de hilária. Fica no meio do caminho.

O que o longa curitibano tem de melhor são seus dois protagonistas – o Criador e a Criatura. Eugênio, perturbado por perseguidores implacáveis, vê-se tomado por seu exuberante cowboy (no que ajuda a excelente caracterização física e canastrônico–voluntária de Marone).

O ator, que de Kid não tem nada, mede 1m93 (a mesma altura de John Wayne). Fica ainda maior de botas e chapéu de vaqueiro. Os tons de sua pele, dourados, e sua juventude viril deixam Eugênio ainda mais desajeitado. Para agravar, o medo e as angústias do escritor só aumentam. Primeiro pela pressão sofrida por parte dos agentes da nova moral político-religiosa-policial-empresarial trazida pelo novo presidente da República (nunca nominado). Segundo, pela pressão de seus contratantes, o produtor e o cineasta.

O diálogo com o western spaghetti explicita-se na trilha sonora (à moda de Ennio Morricone), na iluminação (Jesus Kid traz a virilidade e beleza de Giulianno Gemma) e nos enquadramentos. Embora Aly Muritiba tenha dito, em entrevista ao Canal Brasil, que seu filme “começa em tom de Jim Jarmush, passa pelos irmãos Coen e termina à moda Tarantino”, essa ambiciosa proposta não se cumpre.

E por que? Porque o filme vê o Brasil de hoje povoado por personagens de chanchada. Lá estão o empresário que emula, com seu espalhafatoso terno verde-amarelo, o dono de uma rede de lojas, e os patos-símbolo de federações patronais. E também um ideólogo (de nome Olavo), que anuncia as novas diretrizes “estéticas” para o fazer artístico. E, ainda, um Super-Sérgio, “herói” que encapa livro lido avidamente por Arlindo.

Sim, Aly Muritiba embriagou-se em citações aos filmes dos três realizadores norte-americanos. E também, nos westerns spaghetti do mestre Sergio Leone. Mas a seiva que, no fundo, no fundo, o nutriu foi a da chanchada satírica de Carlos Manga. Em especial “Nem Sansão, Nem Dalila” e “O Homem do Sputnik”. Mas os filmes do velho Manga eram bem mais engraçados.

Louve-se, porém, a intenção do diretor de abordar, no calor da hora, o Brasil de nossos dias. Se tivesse filmado em 2020 ou 2001, anos de pandemia, talvez tivesse realizado um filme tão sombrio quanto “Barton Fink”. Como filmou no primeiro ano do governo Bolsonaro, Muritiba teve o mérito de enxergar a comédia pastelão da qual nos tornamos atônitos (e involuntários) protagonistas.

“Jesus Kid” conta com eficiente fotografia de Rodrigo Carvalho, ótima direção de arte de Alex Rocca e envolvente trilha de Daniel Simitan. Sem falar nos valores de produção. A Grafo Audiovisual, empresa curitibana, mais uma vez, mostrou sua expertise. De causar inveja a muitos produtores do eixo Rio-São Paulo.

Se “Jesus Kid” levou Aly Muritiba a abandonar (temporariamente) os dramas sociais de seu início de carreira, o mesmo não acontece com o argentino Ezequiel Radusky, o diretor de “Planta Permanente”.

Depois de um drama sob a égide (não panfletária) da luta de classes (“Los Dueños”, menção especial na Semana da Crítica, em Cannes 2013), Ezequiel, que é também roteirista e ator de teatro, continuou atento às questões do mundo do trabalho.

Para se entender o concorrente argentino – quarto e último longa da enxuta competição latino-americana de Gramado – faz-se necessário decifrar seu título.

O que significa “Planta Permanente”? Uma planta que resiste a tudo e que a protagonista leva de volta ao lar? Metaforicamente, sim. Mas o significado primeiro e essencial da expressão designa o “Trabalho Estável”. Ou seja, aquele de que desfrutam funcionários públicos concursados. Têm, por direito, estabilidade no emprego.

Quando “Planta Permanente” começa, duas amigas, Lila (Liliana Juarez) e Marcela (Rosario Blefari) trabalham como faxineiras numa repartição pública. Lila, boa cozinheira, explora informalmente o “comedor” (“The Lunchroom”, nome internacional do filme), que fornece refeições aos colegas.

Certo dia, uma nova gestora (a atriz e cineasta uruguaia Verónica Perrota) chega para modernizar a instituição pública. Manda limpar cômodos entulhados e põe fim ao “comedor” improvisado. Marcela estimula a amiga (e comadre) Lila a sugerir, à nova gestora, a criação de uma lanchonete (ou refeitório) de verdade, que possa alimentar os funcionários.

A proposta é aceita, mas Lila e Marcela se desentendem. A primeira assume, sozinha, a tarefa. E, para tanto, contrai empréstimo, pois necessita comprar freezer e outros equipamentos obrigatórios. Até que um dia…

Para não dar spoiler, interrompe-se aqui a sinopse do substantivo e delicado filme do diretor argentino de 40 anos, um norteño nascido em San Miguel de Tucumán.

A narrativa de “Planta Permanente” é densa, as personagens são bem construídas e o elenco tem alto rendimento. Em especial Lila, a faxineira-cozinheira. Rosario Blefari e Verónica Perrota também estão ótimas. Um detalhe: os amantes do Minimalismo Melancólico uruguaio hão de reconhecer em Pato, funcionário da área de RH (recursos humanos), o ator Horacio Camandule, revelado no fascinante “Gigante” (Adrián Biniez, 2009), que causou sensação em Gramado.

No debate do filme, Ezequiel Radusky contou que o roteiro de “Emprego Estável” teve oito versões e colaboração das atrizes. Ele só se deu por satisfeito com sua narrativa, quando incorporou sugestão do cineasta e roteirista uruguaio Gonzalo Delgado, que escreveu e dirigiu “Os Golfinhos Vão Para o Leste” com Verónica Perrota. Delgado sugeriu que houvesse uma grave desavença entre as duas amigas (e comadres) Lila e Marcela.

“O desentendimento entre as duas foi muito importante para a narrativa e agredeço a sugestão do colega uruguaio”, registrou. Quem assistir ao filme, entenderá a razão do diretor argentino, que foi capaz de absorver sugestões e realizar um filme de alma feminina. Um filme sintonizado com as trágicas modificações sofridas pelo mundo do trabalho nessa fase de triunfo acachapante do neo-liberalismo.

Junto com o chileno “Gran Avenida”, o argentino “Planta Permanente” constituiu o que de melhor nos foi apresentado pela compacta mostra hispano-americana de Gramado.

“A Fome de Lázaro” confirma Diego Benevides como um dos grandes talentos do jovem cinema paraibano. E um dos poucos que cultivam a tradição documental herdada de Linduarte “Aruanda” Noronha. São benevidianas duas preciosidades do gênero (“O Guardador”, que realizou na UFPB, onde estudou, e “A Queima”).

O tema do quarto curta de Diego Benevides poderia ter resultado em narrativa mondo cane. Ou seja, metafórica e literalmente um filme sensacionalista (protagonizado por cães).

O que vemos? Uma família de um pequeno povoado realizando suas refeições. Até que um dia, os preparativos são destinados a alimentar os cachorros de rua e domésticos, que convivem, ali, com os humanos e se alimentam de sobras. Não no dia de São Lázaro. Neste dia, os humanos oferecerem aos cães os melhores pratos e… comem seus restos.

Tal prática nasceu da promessa de uma senhora muito religiosa. Doente, ela foi aconselhada a prometer a São Lázaro que cozinharia saboroso almoço para os cães. A prática tornou-se corrente no sertão da Paraíba, na região de Monteiros, e sobrevive ainda. Para documentá-la, Benevides e sua pequena equipe aproximaram-se de seus personagens, até estabelecer relação de convivência e respeito. O resultado está na tela. Um filme de muitas qualidades, sem nenhum sensacionalismo ou tom condenatório. O que se quer é entender a relação daqueles sertanejos com a fé.

O paranaense “Da Janela Vejo o Mundo”, de Ana Catarina Lugarini, dialoga com o cinema documental, embora sua narrativa seja ficcional. A avó (na vida real) da cineasta, gosta de usar as redes sociais. A diretora resolve, então, convidá-la a protagonizar um filme. Duas amigas chegam para interpretar mãe e filha (neta da protagonista). Na tela, só as três mulheres. A mais velha é vista quase sempre sozinha. A filha trabalha muito e dispõe de pouco tempo para estar com ela. A neta aparece para dar um jeito no computador, que parou, mas logo vai embora.

“Da Janela…” mostra o mundo digital como capaz de abrir novas vitrines para os anos finais dos mais velhos. Nem sempre, porém, consegue colocar termo à solidão. Presa às suas memórias, a protagonista evoca um de seus prazeres. E ele tem a ver com a areia do mar.

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