Selton Mello: o encanto no lugar do espanto

“Eu tenho a impressão de que um filme com essas características estava fazendo falta”, arrisca Selton Mello a respeito de seu segundo e mais novo filme como diretor, “O Palhaço”. E não é que talvez ele tenha razão?! Simples porém refinado, popular mas exigente, a história do palhaço em crise Benjamim, que coordena com o pai, o também palhaço Puro Sangue (Paulo José), o Circo Esperança, uma trupe itinerante no interior do país, vem conquistando fãs e prêmios por onde passa. Só em Paulínia foram ao todo quatro estatuetas (Melhor Direção, Roteiro, Figurino e Ator Coadjuvante). Não é à toa que Selton anda feliz da vida. “A direção tem me dado imenso prazer”, diz ele, “e ela veio para ficar”, completa.

Filho de bancário e dona de casa, Selton nasceu em Minas, cresceu em São Paulo e vive no Rio. Ao todo são mais de 20 anos de carreira, algumas apresentações ainda criança em shows de calouros (“Bozo” e “Bolinha” entre eles), quase 20 longas-metragens e outras tantas novelas, minisséries e peças. De uns tempos pra cá, encasquetou que precisava dizer coisas por trás das câmeras. E assim o fez, primeiro com o programa “Tarja Preta” (Canal Brasil), depois com alguns videoclipes do Ira! e o curta-metragem “Quando o Tempo Cair”. Formou-se cineasta com “Feliz Natal”, um filme pesado sobre uma família em decomposição, que operava na base da hiperatividade de seus elementos artísticos. “O Palhaço”, sua segunda investida, mostra-se um longa aparentemente mais livre e ao mesmo tempo mais firme. Um filme solar, recheado de participações inusitadas (de Ferrugem a Moacyr Franco), que dá tempo aos acontecimentos e espera que a graça surja destas situações – uma graça muitas vezes à beira nonsense.

Em entrevista à Revista de CINEMA, Selton, sempre muito simpático, às voltas com o lançamento de “O Palhaço”, falou da curiosa comicidade deste seu segundo longa. Para ele, as comédias mais recentes querem arrancar o riso do público a fórceps. Selton ainda tratou da escolha por Paulo José, sublinhou mais uma vez que o desejo pela direção se deu de maneira natural, confessou ter convidado outros atores para interpretarem Benjamim e fez comparações a “Feliz Natal”. Esperançoso em relação ao desempenho de “O Palhaço” nas bilheterias, Selton, como todo workaholic que se preze, não perde tempo e já está com algumas ideias na cabeça. “Tem que ter uma necessidade imperativa de dizer algo”, diz ele, finalizando a conversa com um aviso, “estou no aguardo desse sinal”.

Revista de CINEMA – O que o levou a este filme?

Selton Mello – A questão determinante pra mim foi o desejo de querer falar sobre identidade. Queria um filme que falasse sobre a força de nossas escolhas e de como essas escolhas nos inserem no mundo. Eu poderia falar de uma pessoa em qualquer profissão, mas queria que este fosse um filme sobre Benjamim, um palhaço em crise, que acha que perdeu a graça.

Revista de CINEMA – Como foi a experiência do segundo longa? Faço esta pergunta pois “O Palhaço” me parece um filme mais livre, com uma direção aparentemente mais confiante em suas escolhas… Como é isso?

Selton Mello – “O Palhaço” me exigiu mão firme na direção. É um filme maior que “Feliz Natal”. Queria fazer um filme legível, claro, sem afetações estéticas. Ou seja, um filme simples, mas sem ser simplório. E da forma como o filme tem conquistado as pessoas, sinto que consegui meu objetivo, que era fazer um filme que chegasse ao público pela via calorosa, pelo caminho do coração.

Revista de CINEMA – Algo que já estava presente em “Feliz Natal” e agora se torna ainda mais evidente é uma espécie de desejo de cinema. Este filme transpira uma vontade muito grande de fazer cinema.

Selton Mello – Fazer cinema pra mim é traduzir meus sentimentos, minhas aspirações, minhas fantasias e delírios, privilegiando o exercício da imaginação de uma forma consciente, cheia de paixão. Tornar-me diretor foi um processo natural que partiu de um desejo de começar a contar histórias do meu ponto de vista. E a direção tem me dado imenso prazer. Ela veio para ficar.

Revista de CINEMA – Poderia falar um pouco sobre o processo de confecção do roteiro?

Selton Mello – O roteiro foi escrito por mim e Marcelo Vindicatto. Nós nos debruçamos sobre inúmeras pesquisas do universo circense e depois nos sentimos livres para escrever algo bem original.

Revista de CINEMA – E a opção de atuar no filme? Você chegou a convidar outros atores?

Selton Mello – Sim. Convidei Rodrigo Santoro e Wagner Moura. Ambos adoraram o roteiro, mas estavam envolvidos em outros projetos. E os dois foram unânimes em dizer que era eu quem deveria fazer o papel de Benjamim. Aos poucos, a ideia foi tomando corpo. E agora eu percebo que dirigir e atuar é algo orgânico para mim.

Revista de CINEMA – É verdade que foi a produtora Vânia Catani quem sugeriu o Paulo José para o filme? Como foi isso?

Selton Mello – A Vânia apontou o óbvio, que às vezes nos escapa. Paulo José era perfeito para o papel: o ator de “Macunaíma” e da dupla Shazan e Xerife como um velho palhaço. Paulo José é o ator mais importante do cinema brasileiro ao lado do gigante José Dumont. Os dois levam José no nome e enchem os olhos do público.

Revista de CINEMA – O seu personagem é inspirado em um grande palhaço brasileiro, não é? Poderia falar um pouco sobre ele?

Selton Mello – Na verdade somente o nome é uma homenagem ao Benjamim de Oliveira, um menino negro escravo do século 19 que fugiu com o circo e se tornou um dos nomes mais importantes do circo no Brasil.

Revista de CINEMA – Poderia falar um pouco sobre o Kuxixo, o palhaço que ajudou na preparação do Pangaré e do Puro Sangue?

Selton Mello – Kuxixo é um grande palhaço que atualmente trabalha no circo do Beto Carreiro. Com ele aprendi gagues físicas e a linguagem do picadeiro. Ele foi fundamental para o processo de criação do palhaço Pangaré.

Revista de CINEMA – Como se deu o processo de pesquisa para o filme? Os atores chegaram a realizar cursos de circo?

Selton Mello – Sim. Tivemos o auxílio luxuoso de Alessandra Brantes, ex-artista de circo, pesquisadora do tema. Ela nos trouxe vasto material, entre livros e teses, além de termos feito entrevistas e conversado com palhaços e artistas de circo. Ficamos envolvidos com a pesquisa por um ano.

Revista de CINEMA – “Feliz Natal” é um filme de performance, em que todos os atores tinham seus momentos de solo. Em “O Palhaço” chamam mais atenção as participações especiais de figuras com forte significado no imaginário do espectador. Como foi isso?

Selton Mello – Gosto de misturar nomes consagrados com desconhecidos. Gosto também de colocar atores em papéis inusitados, como fiz com o Lucio Mauro, em “Feliz Natal”. Lucio Mauro está mais associado a papéis cômicos, e em “Feliz Natal” ele fez lindamente um personagem dramático, um pai rodrigueano. Em “O Palhaço” trouxe atores consagrados, pelos quais tenho profunda admiração, como Jorge Loredo e Moacyr Franco, para brilharem em singelas participações. São escolhas que povoam minha memória afetiva.

Revista de CINEMA – Sua relação com os atores e a equipe técnica mudou depois que você passou para trás das câmeras?

Selton Mello – Não. Acho que continua tudo igual. Sempre fui muito interessado na parte técnica, mesmo bem antes de dirigir. Já existia esse desejo incontido que aos poucos se configurou como uma nova forma de me expressar.

Revista de CINEMA – Você me parece um cineasta que acredita antes de tudo na capacidade do cinema de tocar as pessoas. O que acha? Isto talvez o distinga dentro do cenário brasileiro contemporâneo.

Selton Mello – É verdade. Eu tenho imenso prazer em devolver o espectador diferente na saída da sala de cinema. Utilizar o cinema como uma fonte de reflexão, um espaço para se enxergar na tela e remexer suas certezas, suas aspirações mais profundas. O cinema é feito do mesmo material dos sonhos. O cinema é o sonho personificado. E jamais deve perder de vista essa capacidade grandiosa.

Revista de CINEMA – A sua carreira sempre esteve entre a comédia e o drama. Agora, na direção, é curioso como você sai de um filme pesado como “Feliz Natal” e faz um outro mais solar como “O Palhaço”. Como foi isso?

Selton Mello – Foi bastante natural. Somos muita coisa ao mesmo tempo. Somos sombrios e luminosos, brilhantes e ignorantes, capazes e inaptos. Como diretor, eu tenho interesse em não calcificar uma tendência, ser capaz de caminhar por vários gêneros e tons. Antes de tudo, é preciso dizer sempre algo que seja muito verdadeiro. Se disser de forma autêntica, genuína, ele encontrará olhos que reconhecerão esse movimento.

Revista de CINEMA – “Feliz Natal” era um filme que funcionava quase sempre na catarse, no jogo constante com os diversos elementos cênicos. “O Palhaço” é um filme aparentemente mais simples. É bem objetivo, direto ao ponto, embora seja sutil. O que acha?

Selton Mello – Era meu desejo fazer um filme luminoso, que enchesse o peito de quem assistisse. A trama é simples, mas com muitas camadas de entendimento. Tentei algo que fosse popular e ao mesmo tempo sem fazer concessões do ponto de vista cinematográfico. Um filme refinado esteticamente, mas com grande poder de comunicação. Sinto falta de mais filmes assim. E a julgar pela reação do público por onde o filme passou, parece que os espectadores também estavam doidos para se deparar com um filme que causasse esse encantamento. O encanto no lugar do espanto.

Revista de CINEMA – Eu queria que você falasse um pouco da comicidade do filme. É curioso como o humor do longa está milhas distanciado do que se esperaria de uma comédia a priori. A câmera filma os atores frontalmente, dá tempo aos acontecimentos, e espera que a graça surja dessas situações. Uma graça quase nonsense.

Selton Mello – Eu deliberadamente desejei fazer um filme que fosse engraçado sem forçar barra alguma. As comédias estão arrancando o riso a fórceps nos últimos tempos. Aos poucos você vai entrando na atmosfera de “O Palhaço”, e quando menos espera está rindo e se comovendo com a trama do Benjamim e sua trupe. Eu respeito a inteligência e a sensibilidade do público e o resultado não podia ser melhor.

Revista de CINEMA – Você nasceu em Passos, uma cidade do interior de Minas, e desde menino esteve envolvido no mundo artístico. Você se identifica de alguma maneira com esses personagens?

Selton Mello – Sim, eu me identifico bastante com Benjamim. Faço isso há 30 anos e sempre acho que devia desistir de tudo. E essa insatisfação é na verdade o combustível que me faz seguir adiante.

Revista de CINEMA – Como tem sido a recepção de “O Palhaço”?

Selton Mello – Linda demais. As pessoas riem, choram, encantam-se. Eu tenho recebido um retorno muito afetuoso do público e da imprensa em geral. Eu tenho a impressão de que um filme com essas características estava fazendo falta.

Revista de CINEMA – Você já está trabalhando em algum outro projeto?

Selton Mello – Algumas ideias como diretor andam tirando meu sono, mas não me decidi ainda qual delas eu levarei adiante. Estou saboreando a estreia de “O Palhaço”, e deixarei que o próximo filme se apresente naturalmente na minha cabeça. Tem que ter uma necessidade imperativa de dizer algo. Estou no aguardo desse sinal.

 

Por Julio Bezerra

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