Espanha visceral

O primeiro filme do diretor catalão Bigas Luna é “Tatuagem” (1976), que não revela, contudo, qualidades que chamem a atenção; é só em seu segundo filme, “Bilbao” (1978), que ele surpreende e desponta no cinema espanhol, logo após a queda do franquismo, como cineasta promissor, tanto quanto perturbador. Na sequência, ele fez “Caniche” (1979) e “Os Olhos da Cidade São Meus” (1987). Com esses filmes, ele se impôs na Espanha, ao lado de Pedro Almodóvar, como um dos grandes realizadores da nova geração. Eclipsado por Almodóvar, Bigas Luna caiu no esquecimento nos últimos anos. Mas o lançamento do DVD de “Bilbao”, pela Lume Filmes, é uma boa oportunidade para traçar comparações. De fato, nos primeiros filmes de Bigas Luna, um cinema com liberdade criativa, feito com poucos recursos, tanto quanto imune a clichês e conveniências que chocam, mas agradam na justa medida – isso em grande parte justifica por que Almodóvar se sobressaiu nos anos seguintes. “Bilbao” instiga a pensar, no contraste com Almodóvar, nos rumos tomados pelo cinema espanhol nas décadas recentes.

Uma tendência que se anuncia nesse primeiro filme importante de Bigas Luna é sua disposição para hiperbolizar temas asquerosos, indigestos, grotescos, macabros. E com isso desvelar, à consciência do espectador supostamente sadio, o lado sádico, pervertido, patológico da condição humana. Com ironia perversa, ele joga no limite extremo de nossas pulsões, instaura incerteza sobre o Outro – tão próximo – e sobre nós mesmos, num mundo em que palavras como crueldade e submundo só têm sentido como figuras de linguagem.

Inevitável que se veja nele um digno herdeiro de uma tradição espanhola que vem das pinturas de Diego Velásquez ou de Francisco Goya. Como estes artistas espanhóis referenciais, Bigas Luna exibe tanto um mundo de imprecisões representativas (aquele que pinta está dentro e fora da tela) quanto de pesadelo (Cronos, o tempo, devora seus próprios filhos). Esses são elementos importantes para se assistir a “Bilbao” com a devida atenção.

A trama é centrada em torno de um psicopata, Leo, que vive com uma mulher mais velha, Maria, e é sustentado por um tio rico, dono de um matadouro. Nas primeiras sequências, percebe-se que o casal tem uma convivência sadomasoquista. Leo sente nojo por ela e a despreza sexualmente; mas percebe-se igualmente que ela alimenta a situação e exerce forte domínio sobre ele. A convivência deles é interposta pela presença de Bilbao, uma striper e prostituta que será alvo de fetiche de Leo.

Ao mesmo tempo em que rejeita a presença de Maria, Leo persegue de modo obsessivo os movimentos de Bilbao. Ele assiste às suas apresentações, se apraz com o gozo da plateia, segue-a até a casa dela e acompanha, pelo lado de fora da janela, sua intimidade. Todas as ações dela, assim como suas intenções e seu cotidiano, são narradas por uma voz em off. Com essa estratégia narrativa, Bigas Luna perscruta a pisque de um psicopata e antecipa o desenlace macabro e insólito para o qual os três personagens são conduzidos.

“Bilbao” é uma experiência visceral e extrema. Um filme, portanto, para o qual não se coloca o aconchegante clichê da agradabilidade, ou das conveniências estilísticas. Nele, uma rudeza e crueza para sondar, tanto quanto exibir, o submundo das perversidades e da patologia num nível que o eleva à condição de obra de arte. Realizado num momento de democratização do país, com “Bilbao”, Bigas Luna mostra o filme mais instigante da Espanha no final dos anos de 1970.

 

Por Humberto Pereira da Silva

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