Longa paraibano, protagonizado por Jean-Claude Bernardet, divide o público em Brasília
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília
O Cine Brasília estava lotado na terceira noite de sua mostra competitiva. Muitos espectadores ficaram de fora, pois os ingressos esgotaram-se meia hora antes. Os curtas “Vento Virado”, de Leonardo Cata Preta, protagonizado por Paulo André (ator do Teatro Galpão, que pode ser visto nos cinemas no longa “O Homem das Multidões”) e “Geru”, de Fábio Baldo e Tico Dias, foram prestigiados por sala lotada. O cinema, que tinha 606 lugares, depois de ampla reforma, conta agora com 720 assentos.
Quando se iniciou a sessão de “Pingo d’Água” – fecho da “Trilogia Sem Cor” do paraibano Taciano Valério (iniciada com “Onde Borges Tudo Vê” e sequenciada com “Ferrolho”) – a imensa plateia estava atenta. Com o desenrolar do filme, construído a partir de improvisos realizados em Tiradentes-MG, Campina Grande-PB e, principalmente, São Paulo (nas cercanias e em um apartamento do niemárico Edifício Copam), alguns espectadores se impacientaram e partiram em retirada. Isto porque o filme se compõe de fragmentos aparentemente desconexos. Quem ficou até o final, assistiu à mais completa entrega do voluntariamente ex-crítico, ex-ensaista-pesquisador e ex-professor da USP e UnB, Jean-Claude Bernardet. Quase octogenário, Bernardet, nascido em agosto de 1936, está empenhado em aprofundar sua experiência como ator. E seu empenho é a alma do filme. Ele está em quase todas as cenas e locações onde PINGO D’AGUA foi realizado e ainda emprestou seu apartamento para a logística da produção e filmagens. Duas sequências do filme, as que mais atenção chamaram, o mostram rastejando no chão de uma biblioteca até atravessar uma estante de livros; e na outra – que causa ansiedade no espectador – o vemos contorcendo seu corpo magro a ponto de colocá-lo inteiro dentro de uma mala, cujo ziper é integralmente fechado.
Embora “Pingo d’Água” seja um filme de ficção, ele traz muito das vivências reais de seus atores: Everaldo Pontes, Walter Bahia, Melissa Gava, Verônica Cavalcanti, Paulo Phillipe, entre outros. Bernardet, dentro de seu apartamento no Copam, conta – para a câmara – não ter mais interesse em escrever críticas, nem estudar filmes alheios. Quer, isto sim, fazer filmes, ser ator. Ele explica que isto aconteceu desde que enfrentou problemas de visão. Problemas que prejudicaram o ato de leitura, fundamental para quem construiu carreira como um dos mais instigantes estudiosos do cinema, em especial o brasileiro. Para dar mais concretude ao seu personagem, Bernardet mostra seu atual processo de leitura, que exige o uso de poderosa lupa para aumento das letras.
Outra face de Bernardet aparece em sequência rodada na Paraíba. Ele e Everaldo Pontes representam dois artistas da noite que se embrenham numa mata para preparar espetáculo de variedades. Acabam não ensaiando, mas sim vivenciando relacionamento que parece retirado do “Esperando Godot”, de Beckett.
O agora ator convicto, que se define como “mau dançarino”, dança e até canta em francês. Seu parceiro no filme, Everaldo Pontes, de sólida carreira no teatro (com o Grupo Piolim), no cinema (no papel título do “São Jerônimo”,que lhe rendeu um Troféu Candango) e nos shows de variedade, se entrega com prazer à improvisação. E, de certa forma, nos faz lembrar sua performance em “Super-Barroco”, o belo curta-metragem de Renata Pinheiro que ele protagonizou.
A fotografia de “Pingo D’Água” assinada por Breno César tem momentos de grande beleza. E o ator Walter Bahia passa grande força em seus improvisos. No debate, marcado por questionamentos ao terceiro longa de Taciano, que daria “mais prazer a quem o fez que a quem o vê”, Bernardet o definiu como “um filme sem significados”. Walter discordou. E deu seu testemunho: “Tudo o que criamos, coletiva ou individualmente, para ‘Pingo d’Água’ tem muito significado”.
No final do debate, Rangel Júnior, reitor da UEPB (Universidade Estadual da Paraíba), compositor e colaborador da trilha sonora do filme, contou que foi professor de Taciano Valério no curso de Psicologia. E que recebeu do ex-aluno o pedido para que compusesse um forró e até um tango para certo trecho da narrativa. O forró foi feito e ganhou o título de “Absurdo”. O tango foi improvisado em pleno processo de filmagem e resultou num híbrido. Sanfona e violão geraram um “tango matuto nordestino”. A UEPB apoiou a produção do filme, que contou também com coprodução da Cavideo, de Cavi Borges.
UM SÁBADO BRASILIENSE – Hoje, dois longas-metragens 100% brasilienses movimentarão a quinta noite do festival. Às 18h00, no Cine Brasilia, a Mostra Candanga, promovida há 19 anos pela Câmara Distrital, apresentará o mais recente filme de André Luiz Oliveira, autor de “Meteorango Kid”, Prêmio do Juri Católico no Fest Brasilia/1969, “A Lenda de Ubirajara”, “Louco por Cinema” (vencedor do Fest Brasília/1994), e de “Sagrado Segredo”, sobre a Via Crucis encenada em Planaltina. O novo filme de André – ZIRIG DUM – A ARTE E O SONHO DE RENATO MATOS – tem um dos mais estimados cantores e compositores candangos como foco. Renato Matos, de alma reggueiro-MPB, é autor de canções que estão enraizadas no imaginário afetivo do brasiliense.
Depois, às 20h30, será a vez de BRANCO SAI, PRETO FICA, segundo longa-metragem do goiano-ceilandense Adirley Queiroz. O filme já passou pelos festivais de Tiradentes, Curitiba e Vitória. Em Tiradentes, ganhou menção honrosa. Em Vitória, conquistou os prêmios de melhor roteiro e contribuição artística por seu desenho de som. Adirley venceu o Fest Brasília com seu primeiro e mais conhecido curta, “Rap, o Canto da Ceilândia”, e lá ambientou praticamente toda a sua obra cinematográfica: o belo “Dias de Greve” (curta), o média “Fora de Campo” (sobre os boleiros que não conhecem a fama), o longa ” A Cidade É Uma Só?” e o novíssimo BRANCO SAI, PRETO FICA. Adirley atua no coletivo CeiCine (Ceilândia+Cinema). E faz questão de reafirmar seu pertencimento à geografia que abriga seu projeto audiovisual.