Um romance de formação em meio à Natureza

Ondas fortes. O vento as sopra. É possível senti-las. É possível ouvi-las. As imagens fluem em um tom onírico. Não se trata, contudo, simplesmente de contemplação. O que fascina não é exatamente o espetáculo visual da réplica. Essas ondas e esse vento talvez sejam mais ”reais” do que as ondas e o vento que serviram de referência para essas imagens. O que vemos é algo como uma autoexpressão da natureza em movimento. Algo que nos paralisa. Algo que nos ameaça. Um sentido imanente se revela e se esconde, ao mesmo tempo. Os minutos passam. Um corpo morto emerge das águas. Quem é ele? O que teria acontecido? O filme nos sugerirá algumas respostas, embora o incidente esteja mais para uma porta de entrada narrativa para algo como o ciclo da natureza em sua violência e beleza nativas.

O que vemos é ”O Segredo das Águas”, o oitavo filme da japonesa Naomi Kawase – o primeiro que ela filma fora de sua cidade natal, Nara. Amani é uma ilha marcada por tradições seculares. Os antepassados de Kawase são de lá. Viviam imersos em uma realidade diversa da nossa, onde o conhecimento ainda se transmite oralmente e a Natureza (com N maiúsculo mesmo) e seus ciclos são como o tempo, uma espécie de absoluto. Nesta ilha, acompanhamos os dias derradeiros de Isa, uma xamã que se diz feliz com a proximidade da morte. Sua filha, Kyoko, tenta entender o que se passa e se percebe apaixonada por Kaito, um colega de escola. Ele vive o ciúme dos namorados da mãe e a distância do pai divorciado e um tanto ausente.

”O Segredo das Águas” é um Kawase puro sangue. Os personagens experimentam intensamente um abismo afetivo. Kaito e Kyoko vivem um certo espanto diante da vida, entre a assombração mais temerosa e a surpresa mais doce. Eles passarão o longa inteiro atrás de figuras desaparecidas ou em vias de desaparecimento, em busca de algum sentido. Como de costume nos filmes da japonesa, o que está em jogo são as necessidades mais elementares: a família, a possibilidade do amor, o contato com a natureza. Kaito e Kyoko terão de aceitar os outros e as coisas. Eles tomarão consciência do mundo que os rodeia. E absorverão aquilo que lhes contam. Não deixa de ser curioso. Se “Shara” (2003) era um filme em busca da vida e “A Floresta dos Lamentos” (2007) traçava o caminho inverso na direção da morte, ”O Segredo das Águas” opta por um meio termo, pela eterna continuidade, de geração em geração.

O filme estreou em Cannes no ano passado e, como era de se esperar, Kawase foi mais uma vez chamada (ou melhor, atacada) como uma espécie de diretora new age, como se o que mais a interessasse fossem questões de transcendência. Este é um mal entendido que persiste com força, infelizmente. Pois Kawase jamais se aventura ou se interroga por aquilo que transcende. Ela se detém, isto sim, em uma narrativa epidérmica, corporal, física, naquilo que fica, que resta, que continua.

“O Segredo das Águas” tem lá suas fragilidades. O romance de formação escorrega na atenção desequilibrada que dispensa a cada um de seus dois personagens e na atuação igualmente irregular de alguns atores. Os temas do filme são por vezes verbalizados em diálogos que, embora belos, entram mal nos ouvidos. Outro problema (talvez mais perigoso) se avizinha. Kawase opera a patir de um esquema diverso de filmagem. Ela quase não ensaia e trabalha sempre com poucos takes. Não é a toa que, em seus filmes, determinar onde termina a “vida” e começa a intervenção estrutural cinematográfica é muitas vezes tarefa difícil e inútil. Algo que traz ao cinema da japonesa um frescor particular. Desta vez, contudo, a constante indecisão entre a câmera na mão trêmula, a decupagem mais clássica e o interlúdio poético, soa um tanto artificial e autoconsciente. Basta, no entanto, uma sublime digressão visual na direção da natureza, inflando o campo e o fora de campo de vida e lembrando-nos dos mundos possíveis à nossa observação, para que a obra de Kawase se afirme como uma das mais originais do cinema contemporâneo.

O Segredo das Águas | Still the Water
(Japão, Espanha, França, 2014)
Direção: Naomi Kawase
Distribuição: Califórnia Filmes
Estreia: 15 de janeiro

 

Por Julio Bezerra

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