A vida dos outros
Afora o fenômeno “Tropa de Elite”, apenas um tipo de filme parece conseguir rivalizar com as comédias entre as maiores bilheterias de longas brasileiros: a cinebiografia. Nos últimos dez anos, cada vez mais filmes biográficos têm aparecido, ainda que timidamente, em especial, na ficção. Parte deles, casos de sucesso, tal como “Dois Filhos de Francisco” (2005), que fez 5,3 milhões de espectadores; “Chico Xavier” (2010), com 3,4 milhões; “Cazuza – O Tempo Não Para” (2004) e “Olga” (2004), com 3 milhões, cada; “Bruna Surfistinha” (2a011) e “Meu Nome Não É Johnny” (2008), com 2,1 milhões; e mais recentemente “Somos Tão Jovens” (2013), com 1,7 milhão, entre outros. O retrato de persoanalidades conhecidas, em tese, atrai mais apelo popular, mesmo no documentário, um gênero, em geral, que tem bilheterias menos expressivas.
Para 2015, está programado o documentário “Elis”, de Hugo Prata, além de já ter estreado os documentários “O Sal da Terra”, de Juliano Salgado e Wim Wenders, sobre o fotógrafo Sebastião Salgado, indicado ao Oscar, que até o momento fez mais de 80 mil espectadores, e “Cássia Eller”, de Paulo Henrique Fontenelle, na casa dos 60 mil espectadores. Para os próximos anos, devem chegar ficções, como “Minha Fama de Mau”, de Lui Farias, sobre Erasmo Carlos; “Simonal”, de Leonardo Domingues, sobre o cantor Wilson Simonal; “Mariel”, de Mauro Lima, sobre o policial Mariel Mariscot; “João – O Milagre das Mãos”, de Bruno Barreto, sobre o maestro João Carlos Martins; “Vida de Palhaço”, de Daniel Rezende, sobre Arlindo Barreto, o primeiro Bozo; “Marighella”, de Wagner Moura, sobre Carlos Marighella; “Pixinguinha, um Homem Carinhoso”, de Denise Saraceni; além de projetos sobre o Chacrinha e a dupla Leandro e Leonardo, entre outros.
A popularidade sobre a vida dos outros
“Quando alguém vai ao cinema ver uma cinebiografia, acaba encontrando muito mais do que a história de uma pessoa, encontra também um pouco da história de uma época e, consequentemente, um pouco de sua própria história. Quando a cinebiografia é sobre um músico, esse potencial se multiplica pela capacidade da música nos transportar e reviver memórias que julgávamos esquecidas. Quando apresentamos a história do Arnaldo Baptista, por exemplo, estamos falando dos anos 1960, dos festivais, da ditadura, dos anos 1970”, ensaia o cineasta Paulo Henrique Fontenelle uma explicação para a possível popularidade das cinebiografias.
Ainda que haja cada vez mais cinebiografias sendo feitas, o distribuidor Bruno Wainer, da Downtown, não vê um boom. “Boom, só de comédia, mas cinebiografias, por resultados apresentados anteriormente, têm chances de sucesso, por isso sempre tem alguém apostando no gênero”, comenta. Em 2014, por exemplo, seis longas de ficção chegaram ao circuito comercial. “Tim Maia”, de Mauro Lima, por exemplo, vendeu 800 mil ingressos, mas ficou bem abaixo do esperado, conforme aponta Wainer. Outros lançamentos incluem “Getúlio”, de João Jardim, que “surpreendeu com seus 500 mil ingressos vendidos”, “Irmã Dulce”, de Vicente Amorim, com 200 mil, que se apoiou no público católico, e “Não Pare Na Pista: a Melhor História de Paulo Coelho”, de Daniel Augusto, com 93 mil espectadores. “Tudo ao final é o filme – roteiro e realização. Se há problema aí, não tem personalidade retratada que dê jeito”, complementa.
Daniel Augusto, diretor de “Não Pare na Pista”, nota um interesse maior nas biografias. “Acho que a cinebiografia é um dos modos do Brasil compreender a si próprio. Tenho a impressão de que o país quer saber mais de si mesmo”, afirma. Quanto ao público do filme, Augusto não o vê ainda como negativo. “Procurei ser fiel ao roteiro, que me pareceu interessante para leitores e não leitores do Paulo. Acho que só dá para saber com precisão quais são os resultados de um filme após três anos da estreia, depois de todas as salas de cinema, das exibições nas tevês fechadas e abertas, dos downloads na internet e das vendas de DVD”, aponta o diretor, que terá seu filme ainda distribuído comercialmente na Rússia e nos antigos países da URSS, além de Polônia, Hungria, Coréia do Sul e da antiga Iugoslávia, entre outros.
O cineasta Hugo Prata, que prepara “Elis”, sobre a cantora Elis Regina, tampouco vê um boom no gênero. “Vejo mais como o Brasil passando a limpo sua história e memória, e isso é sempre saudável para qualquer cultura. Nosso país merece e carece disso. Veja o exemplo de Getúlio Vargas e Luiz Gonzaga, fundamentais para nossa identidade cultural e histórica”, aponta.
Documentário tem vida longa em outras plataformas
No documentário, cinebiografias tendem a ser mais comuns e muitas vezes são as mais rentáveis, em especial a de músicos – caso de Vinícius de Moraes, Cartola, Tom Jobim, entre outros. Paulo Henrique Fontenelle tem se dedicado a essa vertente do documentário. Seu recém-lançado “Cássia Eller” é, até o momento, seu melhor púbico nos cinemas.
“Apesar de o documentário ter uma visibilidade menor no cinema, ele tem ganhado um alcance cada vez maior. ‘Loki’ [sobre o músico Arnaldo Baptista], por exemplo, fez 20 mil espectadores no cinema, mas, em sua primeira exibição no Canal Brasil, foi visto por mais de 250 mil pessoas. ‘Dossiê Jango’ [sobre o ex-presidente João Goulart] foi a mesma coisa, sendo bastante assistido no iTunes, na TV e no VOD. ‘Cássia Eller’ está fazendo uma excelente carreira no cinema. Acho que as formas de atingir o público estão se diversificando e se democratizando, e isso é bom para todo mundo”, pontua. Em compensação, um canal dedicado apenas a biografias, como o Bio, The Biography Cannel, fechou suas portas no Brasil por falta de interesse.
A opção por personagens famosos
Parte do potencial de público de uma cinebiografia é a escolha do personagem, que demanda ainda um interesse pela história como um todo da pessoa. “O que mais me atrai é buscar histórias que tragam inspiração e reflexão por parte do público. E isso vale desde biografados pouco conhecidos, como foi o caso de Mauro Shampoo, no meu primeiro curta [“Mauro Shampoo – Jogador, Cabelereiro e Homem”], até uma super estrela como a Cássia. No ‘Loki’, por exemplo, além de apresentar a história do Arnaldo Baptista, que é um artista fantástico que estava esquecido, é um filme que fala de superação, de amor, da valorização de nossos artistas. Assim como ‘Dossiê Jango’ ajuda as pessoas a refletirem o horror da ditadura e fazer um paralelo com o Brasil de hoje. Eu acho que o principal é que o espectador continue com o filme e refletindo sobre ele depois que deixa a sala do cinema”, explicita Fontenelle.
O processo exige bastante pesquisa por parte do cineasta e do roteirista. “Procuro ler tudo o que for possível sobre o assunto e faço um levantamento de tudo que for imagem de arquivo possível para saber com o que posso contar. Procuro também conversar bastante com o biografado ou com pessoas que conviveram com ele para que eu possa conhecer aspectos que as biografias oficiais não trazem e assim tentar captar sua essência e seu olhar para o mundo”, explica Paulo Henrique Fontenelle.
Hugo Prata chegou a Elis Regina através de uma sugestão do produtor de cinema Rômulo Marinho. Isso porque Prata vem se dedicando ao trabalho audiovisual com música, como videoclipes, show, DVDs e afins. “No cinema, gosto de dramas. E a Elis é uma personagem muito rica nesse sentido. Uma mulher forte, de personalidade controversa, um ícone que viveu e produziu sempre sob a censura do regime militar, com todas as privações e falta de liberdade de expressão daqueles tempos, mas mesmo assim conseguiu se expressar e ser uma porta-voz através da sua arte”, aponta. “Elis” conta com roteiro de Nelson Motta, “testemunha ocular dessa história”, Patrícia Andrade e Luiz Bolognesi, além de pesquisa de Denílson Monteiro.
Já Daniel Augusto, do provocativo curta “Porn Karaoke” (2011), chegou ao “Não Pare na Pista” como diretor de encomenda. O projeto foi acalentado pela produtora e roteirista Carolina Kotscho. “Conheci mais detalhadamente a biografia do Paulo pelo roteiro da Carolina. Achei que havia um material bem interessante ali: a parceria com o Raul Seixas, o culto ao Aleister Crowley, as drogas, o mergulho na contracultura, a tentativa de suicídio na adolescência, assim por diante. Além disso, sempre quis fazer um longa-metragem de ficção e o convite da Carolina foi uma oportunidade”, conta.
A polêmica sobre as biografias não autorizadas
Outro fator que influencia a escolha do personagem é a legislação que rege o país. Teoricamente, pode-se fazer um filme sobre qualquer pessoa, mas, para isso, é necessária autorização da Ancine, que exige autorização da figura pública principal retratada. Esse quesito está em consonância com a polêmica discussão nacional sobre o fim da proibição de biografias não autorizadas – que rendeu, inclusive, a apreensão e proibição de vendas do livro “Roberto Carlos em Detalhes”, de Paulo Cesar Araújo, em 2007.
Tanto Paulo Henrique Fontenelle, quanto Hugo Prata e Daniel Augusto são contra a proibição, e contam que os biografados de seus filmes sempre confiaram no material, sem qualquer exigência. “Sempre fui sincero com o biografado ou com a família sobre a necessidade de se contar a história por completo – logicamente tratando com respeito e dignidade as pessoas ou a memória delas. Essa relação de confiança é importante, e graças a ela sempre fiz os filmes da maneira que quis, sem censura. Se não fosse assim, talvez não valesse a pena fazer”, pontua Fontenelle.
O desafio da credibilidade
O principal desafio, porém, talvez seja a encenação da vida de alguém, o retrato que se faz do biografado. Isso vale tanto para a ficção quanto para o documentário. “Precisamos ser fiéis aos eventos e à essência da personagem, mas muitas vezes temos que usar a liberdade dramática para que tudo fique mais claro e objetivo. Sempre respeitando essa essência da personagem, sem ferir ou alterar os fatos, apenas embalando com um pouco de dramaturgia. Mesmo porque muitas coisas ninguém sabe como realmente aconteceu. Por exemplo: como reconstruir uma cena de Elis Regina em casa com o [Ronaldo] Bôscoli ou no estúdio com o César [Camargo Mariani]? Ninguém sabe o que foi dito lá, nem como e onde eles estavam exatamente. Nessas horas, temos que recriar a cena. E pesa também o fato de que não caberia toda a vida dela num filme de duas horas, portanto, temos que selecionar somente o que leva nossa história pra frente, dentro dos limites que nossas opções exigem. Para amarrar isso tudo, de forma que o espectador possa acompanhar, precisamos de um bocado de técnica e criatividade”, comenta Hugo Prata, que filma “Elis” entre junho e julho.
Já Daniel Augusto aponta a complexidade de formas com que se pode trabalhar uma cinebiografia. “Um filme como ‘Um Instante de Inocência’ (1996), de Moshen Makhmalbaf, é uma cinebiografia. ‘Gainsbourg’ (2010), de Joann Sfar, também é, assim como ‘J. Edgar’ (2011), de Clint Eastwood. Pela variedade dos resultados, você pode notar que os desafios não são os mesmos em cada caso. Em ‘Não Pare na Pista’, meu principal objetivo era que o filme pudesse ser visto como um filme de ficção”, conclui o diretor, com três projetos engatilhados para dirigir, o curta “O Sinaleiro”, baseado num conto de Charles Dickens, os longas “Albatroz”, com roteiro de Bráulio Mantovani, e “O Código da Vida”, repetindo a parceria com Carolina Kotscho.
Por Gabriel Carneiro
Uma materia bem oportuna e relevante.
Como produtor de “Pixinguinha, Um Homem Carinhoso”, de Denise Saraceni, que vai chegar às telas do Brasil em 2016, compartilho do otimismo do reporter sobre as excelentes oportunidades comerciais e artísticas das cinebiografias, especialmente das musicais, como as experiencias recentes tem demonstrado.
Um forte abraço, Carlos Moletta
Parabêns a cada um dos realizadores que conseguiram realizar estes trabalhos, o cinema brasileiro agradece!