O afeto da memória
O que sempre diferenciou o cinema de Domingos Oliveira foi seu lado cronista de costumes, interessado em mostrar, em comédias amargas, o cotidiano da classe média carioca, em especial, seus relacionamentos amorosos. O diretor teve momentos brilhantes no seu começo de carreira, com “Todas as Mulheres do Mundo” (1966) e “Edu, Coração de Ouro” (1968), mas seu cinema ficou desleixado com o tempo. Nem mais seus roteiros, seu grande atrativo, eram bem construídos, vide boa parte dos filmes feitos pós-Retomada, quando o cineasta voltou a produzir em quantidade com baixíssimo orçamento e ancorado na camaradagem. Nesse meio do caminho, Domingos se furtou à televisão e, em especial, ao teatro, onde consolidou sua carreira de cronista, sem ter de se preocupar com características próprias ao cinema que acabavam por enfraquecer seus longas.
Talvez tenha sido o fato de ter dinheiro para, enfim, fazer um filme bem acabado – R$ 2 milhões, provavelmente, a maior verba de sua carreira no cinema – ou talvez seja um desejo de deixar um filme-testamento ou filme-legado. A questão é que “Infância” é seu melhor filme desde seu auge, há 45 anos, ainda que sua passagem pelos festivais tenha sido tímida, saindo de mãos vazia por Paulínia e levando em Gramado os prêmios de melhor roteiro, ator coadjuvante (Paulo Betti), montagem e especial do júri (Fernanda Montenegro). Baseado na peça “Do Fundo do Lado Escuro”, escrita por Domingos em 1977, “Infância” acompanha um dia numa família de classe alta decadente, no Rio de Janeiro do começo dos anos 1950. Fazem sete anos que o progenitor José morreu. Dona Mocinha (Fernanda Montenegro), a matriarca, recebe parte da família em seu casarão, no Botafogo. Enquanto esperam pelo pronunciamento do jornalista Carlos Lacerda no rádio, à noite, animam os rumos do dia o sumiço da cadela do neto Rodriguinho (Raul Guaraná), filho de Conceição (Priscilla Rozenbaum); a venda não autorizada de terrenos da família pelo procurador geral e genro Henrique (Paulo Betti); a bebedeira e separação de Orlando (Ricardo Kosovski), e seu engraçamento com a empregada (Nanda Costa).
O texto é inspirado nas memórias de Domingos, e Rodriguinho faz seu alter ego. O principal trunfo do filme é como o cineasta se apropria dessa questão. Há, no longa, uma inegável vontade de reatar nós com o passado, de sentir e ressignificar sua história. Pouco importa se os eventos que vemos ao longo da projeção são reais, se tenham de fato acontecido ou não. A memória não é o fato, é uma construção da mente que pode sofrer alterações com o passar dos anos, uma representação. As memórias enganam, mas apresentam a essência do que o passado representa para alguém. E Domingos sabe disso. Por isso, vez por outra, para além de narrar a história, Rodrigo velho se coloca em cena. Não apenas serve de ponto introdutório, ao se resguardar às fotos (reais) da mocidade, como também, vez por outra, se insere em meio às cenas, inclusive, conversando com personagens do passado.
A memória, por sua natureza imprecisa, ganha um belo tratamento visual. A fotografia e arte, por mais veristas que sejam, emulam um certo artificialismo na cor. O recurso não cai nos tons sépia ou P&B, comuns à representação do passado; passa pelo desbotado, mas com brilhos pontuais, tais quais uma fábula. O mesmo se dá na encenação, criticada pobremente por uma suposta teatralidade. As situações são absurdas e parecem deslocadas de um dia comum, mas se encaixam perfeitamente dentro da lógica do filme. A fábula não precisa ser fantástica, mas traz um toque de irrealidade. Os atores parecem, vez por outra, acima do tom, mas faz parte do jogo do passivo-agressivo proposto pelo diretor, em que, rapidamente, mudam de personalidade sem mudar o tom. Nesse sentido, Fernanda Montenegro é um caso à parte como Dona Mocinha, de longe a personagem mais interessante, entre a benevolência da avó e o punho firme da matriarca sem papas na língua.
Apostando na afetividade da memória, Domingos Oliveira faz um interessante balanço sobre um período histórico. Através de uma história aparentemente banal, centrada nas desventuras de um menino de família burguesa, presenciamos um momento político controverso para o país, com a decadência do alto escalão social e a efervescência da era Getúlio Vargas e seu posterior desmoronamento. Não interessa ao diretor se aprofundar sobre essas questões; seu papel de cronista é apontar as reações a isso, a aflição inerente em cada personagem naquele domingo de família. Por isso, a memória afetiva cai tão bem ao filme. Só com a intimidade e respeito que o diretor traz por seus personagens, até pelos mais escroques, que consegue dimensionar, com tanta ternura, os cursos de sua formação (e da formação de um país).
Assista ao trailer do filme aqui.
Infância
Brasil, 104 min., 2014
Direção: Domingos Oliveira
Distribuição: Forte Filmes
Estreia: 10 de setembro
Por Gabriel Carneiro
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