“Munch” e Watkins
O lançamento no mercado brasileiro do DVD da série que o britânico Peter Watkins dedicou ao pintor Edvard Munch (1863-1944), autor do seminal “O Grito”, constitui fato notável. A Versátil, com este ousado lançamento (mais de 300 minutos de duração), apresenta aos que se interessam por pintura e pelo cinema documental, filme único, obrigatório.
Realizado em 1973, “Munch” é velho conhecido da cinefilia europeia. O passar do tempo fez dele objeto de culto, festejado em sólido verbete no “Dictionaire de la Pensée du Cinéma”, organizado por De Baecque & Chevalier. Neste dicionário, há que se registrar, figuram apenas três brasileiros (o cineasta Glauber Rocha e os professores Paulo Emilio Salles Gomes e Ismail Xavier). E por que “Munch” é tão importante? Porque constitui um dos pontos altos da filmografia do octogenário Witkins, um dos renovadores da docficção ou etnoficção. Ou, ainda, docudrama, apesar do desgaste deste termo.
“Munch” constrói-se como perturbador mergulho na obra do artista norueguês, que conviveu com grupos marxistas ou anarquistas (sofreu grande influência do escritor Haens- Jaeger), padeceu com mortes constantes na família (da mãe e irmãs bem jovens) e com o fanatismo religioso do pai. Em seus filmes, Watkins faz seus “atores” desempenharem funções como se estivessem num documentário. E, muitas vezes, lançou mão de situações de evidente anacronismo. Afinal, seus “intérpretes” dão entrevistas para a TV, suporte inexistente na maioria dos períodos históricos que escolheu para suas narrativas. Para se ter ideia do que é capaz o realizador britânico – premiado com o Oscar por “O Jogo de Guerra” (1966) –, vale destacar procedimentos radicais adotados em dois de seus filmes.
Para “Punishment Park”, convocou populares a representar soldados e dissidentes, de acordo com suas maneiras de pensar. O antagonismo entre as partes poderia ter degenerado em violência real, tamanhas eram as divergências do “elenco” mobilizado. Em “Comuna de Paris” (“La Comune”), ele foi ainda mais transgressor: arregimentou, por anúncios classificados, atores de direita, que trouxessem com eles antipatia genuína pelos comunardos (esquerdistas que tomaram Paris durante 72 dias no levante de 1871).
Incansável combatente contra a hegemonia narrativa de estilo hollywoodiano, Watkins segue inquieto. Pena que sua obra, influenciada pelas ideias de Brecht, tenha chegado tão tarde ao Brasil.