Dos excessos nos detalhes

Na cinematografia brasileira atual, que pouco se preocupa com filmes voltados para o público infanto-juvenil, há de se exaltar a existência de um filme como “O Escaravelho do Diabo”, que envolve uma trama de mistérios e assassinatos, entre o policial e o horror. O filme é baseado no romance de Lúcia Machado de Carvalho, originalmente publicado como folhetim na revista “Cruzeiro” em 1956 e republicado na série Vaga-Lume, da editora Ática, nos anos 1970, quando se tornou um best-seller. A história acompanha Alberto (Thiago Rosseti), um garoto de 13 anos, que após descobrir seu irmão assassinado, embrenha-se numa investigação ao lado do delegado Pimentel (Marcos Caruso).

O roteiro de Melanie Dimantas e Ronaldo Santos é bastante arguto ao modernizar e atualizar a trama dos anos 1950 para os dias atuais, aproveitando as benesses da informática, dos celulares, entre outros, bem como pontuais alterações no encaminhamento da história, mesmo na resolução – muito melhor, aliás, do que no livro original. A comparação com este, porém, parece pouco proveitosa. “O Escaravelho do Diabo”, o filme, é um belo projeto infanto-juvenil. Traz ao seu público alvo uma história de violência, com um enredo policial muito bem construído e uma história instigante – um serial killer que só mata ruivos de nascença, avisando-lhes da sina através de um escaravelho enviado num pacote sem remetente. O encaminhamento da investigação segue a estrutura dos romances de Agatha Christie – ou mesmo dos noir –, em que a cada assassinato, uma nova pista é descoberta, chegando ao assassino e seu motivo apenas na conclusão da trama. No longa, vez por outra, cenas aparentemente desconexas ajudam a pensar a lógica do quebra-cabeça, em que aos poucos vai se montando a história.

O problema é que falta a “O Escaravelho do Diabo” sutileza. O diretor Carlo Milani, egresso da TV, que faz sua estreia no cinema, sabe construir seus personagens pela mise-en-scène, passeando com a câmera de forma a revelar novas informações e a reforçar outras. Por vezes, a câmera se fixa nos rostos dos atores, ainda que trabalhe pouco com closes. Milani trabalha bem uma ideia de cinema clássico, com um registro naturalista de encenação, apostando no diálogo com o público. São nos detalhes que Milani erra a mão, fazendo de seu “O Escaravelho do Diabo” um tanto desconjuntado. A falta de sutileza do filme tem pouco a ver com diretores naturalmente excessivos, como José Padilha ou Roland Emmerich, que optam por narrativas absurdas, quase surreais, em diversos momentos – ou seja, diretores que propositalmente optam pela falta de sutileza para enfatizar certas questões que lhe são caras em suas temáticas.

Em Milani, parece simplesmente lhe faltar mão, uma insegurança, uma necessidade de reforçar certos aspectos e garantir que está sendo entendido. Essa explicitação talvez seja fruto de nossos tempos, em que para alcançar um grande público precise abrir mão dos subentendidos, das aberturas para o público construir o entendimento com o filme, dialogar com ele. “O Escaravelho do Diabo” entrega tudo ao público; a própria construção narrativa, de soltar pistas aos poucos, é quase uma farsa, nesse sentido. A começar com a escolha de um protagonista adolescente – diferentemente do livro. É entendível dentro de uma lógica mercadológica, aproximando o espectador em potencial de seu protagonista. Mas nisso o filme resvala em uma série de problemas juvenis trabalhados a exaustão no audiovisual recente, incluindo na novela “Malhação”, que pouco dizem, a não ser para dar uma falsa noção de família, namoro etc. Alberto é mais inteligente que toda polícia, mas não consegue demonstrar como se sente a uma garota. O filme apreende uma noção do que seria o jovem do século XXI, atestando, inclusive, uma superioridade dele, moderno, tecnológico, contra o velho, arcaico, analógico. Para tal, ele precisa esmiuçar dúvidas, certezas, não só no diálogo, como na imagem – por exemplo, não basta a garota dar a entender que gosta de Alberto, ela precisa explicitar verbalmente e o filme precisa filmar os dois se beijando, algo implícito logo no início da cena que se arrasta para não criar qualquer dúvida.

Talvez o que mais incomode, nesse sentido, porém, seja o retrato do serial killer. Ao longo do filme, Milani mostra flashes do assassino em seu habitat, com seus escaravelhos. Não vemos seu rosto, apenas pedaços de seu corpo. As cenas não fazem parte do raccord natural do filme, são completamente desconexas da narrativa. Fazem parte do quebra-cabeça. Tais segmentos são acompanhados por uma voz over, em tese com pensamentos do assassino, transparecendo sua lógica codificada tal qual uma doutrina mística. Na tentativa de antecipar o mistério, Milani compõe cenas que não têm qualquer função narrativa, não ajudam a construir o personagem e se repetem. O filme, assim, se excede para além do necessário.

“O Escaravelho do Diabo”, ao menos, mantém algum vigor, muito por conta da trama, mas também por Milani saber dosar as cenas de violência e de gore, mostrando vez por outra o sangue, mesmo que optando por desfoques, planos associados à morte (como o cabo da espada, p.e.) ou cortes rápidos. Poderiam ter mais ousadia, mas, em tempos moralistas, era de se esperar algo mais limpo, menos mundano – assim como é a construção da cidade Vale das Flores, completamente idealizada, sem problemas de qualquer sorte, para além do assassino. É um caminho interessante para filmes infanto-juvenis no Brasil, talvez só não precise subestimar o público.

Assista ao trailer do filme aqui.

 

O Escaravelho do Diabo
Brasil, 90 min., 2016
Direção: Carlo Milani
Distribuição: Paris Filmes/Downtown
Estreia: 14 de abril

 

Por Gabriel Carneiro

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