Prêmio Almanaque: “Anna”
O Prêmio Almanaque deste mês vai para “Anna”, um raro filme italiano, dirigido por um cineasta (Alfredo Grifi) e um ator (Massimo Sarchielli), que ganhou sessão nobre no Olhar de Cinema, em Curitiba. Uma centena de cinéfilos se mobilizou para enfrentar as quase quatro horas deste documentário em preto-e-branco, captado em vídeo, quando esta tecnologia (anos 1970) ainda estava longe de ser garantia de qualidade. Ao apresentar o filme, o cineasta Gustavo Beck (coautor de documentário sobre Chantal Ackerman) deu seu testemunho pessoal: o público iria assistir a filme que o marcara profundamente, a ponto de constituir-se em uma de suas mais poderosas experiências cinematográficas.
Sabíamos tratar-se de filme sobre jovem italiana de 16 anos, sem-teto, drogada e grávida de oito meses, que zanzava pela Piazza Navona romana até ir morar no apartamento de um dos cineastas (Massimo, ator de imensos bigodes, roupas espalhafatosas e ideias libertárias). Se a expectativa era imensa, o depoimento de Beck serviu para potencializá-la ainda mais (e para reconhecermos, mais uma vez, a importância do projeto L’Immagine Ritrovata, da Cinemateca de Bolonha, responsável pelo restauro de “Anna” e de uma centena de filmes, cada um mais importante que o outro).
Uma obra transgressora, impensável neste nosso tempo tão moralista e regressor. Anna, a jovem sarda é linda, rebelde e mal-educada. Mantém relação complicada com Massimo, que aos 36 anos é visto por ela como “o papai”. A adolescente acabará se ligando ao eletricista do filme, Vincenzo. Ele se apaixonará por ela ao longo dos dois meses de filmagens (fevereiro-março/72). Anna ocupa o centro da exuberante narrativa e está no esplendor de sua adolescência, com seus longos e loiros cabelos infestados de piolhos. Na sequência mais tocante do filme, a vemos com seu imenso barrigão e peitos já produzindo colostro, tomando banho de chuveiro com ajuda de Massimo, o cineasta-anfitrião. Ele a ajuda a lavar os pelos (incluindo os pubianos). Os tempos moralistas de hoje levariam Massimo, Alberto e equipe para cadeia, em questão de horas. Mas, naqueles começos dos anos 1970, o mundo fervia. O pós-68 estava vivo nas palavras de militantes políticos libertários, nos sonhos coletivos dos hippies, no discurso de um cubano black que, rejeitado por Alemanha e Itália, quer ir para a África do Sul encontrar suas raízes e “dar um tiro na cara do comandante do Apartheid”. E, em especial, numa manifestação feminista, no Campo de Fiori, comandada por mulheres que enfrentam policiais armados, apenas com gestos e palavras de ordem. A relação paternal-sensual-cinematográfica de Massimo (e sua equipe de filmagem) com a rebelde Anna, ganha ainda mais força quando o filme sai do apartamento, para registar o calor das ruas, provocando debates performáticos entre hippies, anarquistas e transeuntes. Impera, em todos os momentos, um clima de liberdade total, pois os dois realizadores são tão doidos quanto seus personagens.