O drama de continuar vivo (e humano)

Há uma tônica que norteia o sul-coreano “Invasão Zumbi”: ser solidário, pensar no coletivo, poderá te levar mais longe do que ser individualista e tentar apenas se safar. O cineasta Yeon Sang-ho, em seu quarto longa, primeiro em live-action, dessa forma, revisita e se opõe a anos de construção do imaginário da tragédia pós-apocalíptica do cinema norte-americano.

Desde os anos 1950, com os filmes de bomba atômica, aprendemos que, no fim do mundo, a selvageria domina a civilização e, portanto, se quiser sobreviver, deve colocar-se acima de qualquer um. É o que nos mostra Ray Milland, por exemplo, em “Pânico no Ano Zero” (1962), quando o protagonista prefere agir na surdina e não conta sobre a explosão da bomba para evitar perder sua vantagem. A multidão, nesses filmes, é irracional e atrapalha. Nos filmes de zumbi, matar as pessoas próximas infectadas e seguir como se nada tivesse acontecido tornou-se receituário para permanecer vivo – o emocional é um inimigo a ser combatido, porque a vida segue.

“Invasão Zumbi” inverte essa lógica. No longa, a garota Soo-an (Soo-an Kim) sente falta da mãe e pede para seu reticente pai Seok Woo (Yoo Gong) levá-la a Busan, onde a genitora vive. Seok é daqueles pais que só trabalham e não dão muita atenção para filha. O surto da epidemia zumbi se dá justamente quando estão no trem para Busan. A estrutura narrativa e a construção do personagem perpassam os códigos do cinema clássico. Na viagem, em contato com a filha e com os demais passageiros, Seok muda.

Sang-ho enfatiza tal lógica contrapondo dois personagens. Seok e o empresário Yong-suk (Eui-sung Kim) apresentam personalidades parecidas no início. Quando as pessoas começam a matar, morrer e se transformar, Seok sai correndo com a filha nos braços para uma parte menos perigosa do trem. Atrás dele, um casal com uma moça grávida. Seok não pensa duas vezes antes de fechar a porta entre eles quando chega num lugar seguro. É a lógica norte-americana: cada um por si. Yong-suk, pouco depois, coloca seus companheiros de vagão, salvos, contra os que correm perigo. Alega não saber como estão – podem estar contaminados e tal – e, portanto, não confia neles para abrir a porta e compartilhar o espaço seguro. São todos mesquinhos, que se escondem dentro de uma percepção da barbárie, para justificarem o egoísmo, nos diz Sang-ho. O procedimento do diretor é óbvio e certeiro nesse ponto. Enquanto Young-suk continua com tal mentalidade durante o filme e é condenado por isso, Seok alcança seus objetivos ao renunciar a individualidade e abraçar o pensamento coletivo – salvar os outros é salvar a si mesmo. Em “Invasão Zumbi”, os zumbis são a multidão irracional e nada esperta que já abdicou do aspecto humano e perambula a esmo.

Assim como “O Expresso do Amanhã” (2013), filme em inglês do também coreano Bong Joon-Ho, “Invasão Zumbi” usa o mesmo dispositivo para criar um microcosmo de embate isolado por um elemento fantástico. O trem confina: ninguém entra, ninguém sai. É uma ideia bastante engenhosa quando bem utilizada, pois permite criar situações-limite que afloram certas questões centrais aos cineastas. A Yeon Sang-ho não interessa a mesma perspectiva política e social de “O Expresso do Amanhã”, um filme sobre luta de classes e exploração. Em “Invasão Zumbi”, está em jogo o lado humano e a preservação de um viés humanista, mesmo numa situação extrema, em que numerosos zumbis ágeis e famintos te perseguem e te destroem se cometer um erro.

Por isso, o cineasta não teme em apelar para o melodrama, em procedimentos clichês, mas muito eficientes, como o uso da trilha musical para acentuar o clima ou da câmera lenta nos momentos agônicos. “Invasão Zumbi” apela primeiro para a emoção e não para a razão. Quase como uma epopeia, Sang-ho abraça todas as possibilidades de criar empatia para com seus personagens. Essa entrega em relação a cenas lugar-comum para esse tipo de filme – sacrifícios, morte de figuras afetivas etc. – ajuda, justamente, a fugir do simplismo e do estereotipo da situação, e devolve o potencial dramático de um subgênero tão banalizado.

E nisso o dispositivo é muito inteligente: sem armas de fogo, trancados e sem tempo, os personagens devem constantemente se superar em artimanhas, traquitanas e estratégias para sobreviverem. Sang-ho também se aproveita do impacto das imagens do horror gore e da repulsa natural a sangue, ossos, feridas e afins para intensificar a sensação de desespero de seus personagens – e de seus espectadores. Tais artifícios apenas colaboram na construção atmosférica, aumentando a tensão e deixando tudo à flor da pele. Como se, para Sang-ho, para restaurar o humanismo, fosse preciso lembrar o por quê de querer estar vivo.

 

Invasão Zumbi | Busanhaeng
Coréia do Sul, 118 min., 2016
Direção: Yeon Sang-ho
Distribuição: Paris Filmes

 

Por Gabriel Carneiro

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